Acórdão nº 69/09.2TBTND-B.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 07 de Outubro de 2020

Magistrado ResponsávelFONTE RAMOS
Data da Resolução07 de Outubro de 2020
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

* Sumário do acórdão: 1.

A extinção da acção executiva poderá ocorrer em qualquer estado do processo por acto voluntário do executado ou de terceiro, de índole extrajudicial, sem a participação do agente de execução (art.º 846º do CPC).

  1. Junto ao processo documento que comprove o pagamento de determinada quantia, realizado por terceiro, terá lugar a liquidação da responsabilidade do executado (quanto a custas ou, após a venda ou adjudicação de bens, também quanto aos créditos reclamados para serem pagos pelo produto da venda desses bens) e a eventual e subsequente extinção da execução (art.ºs 847º e 849º do CPC).

  2. As regras de imputação do cumprimento previstas nos art.ºs 783º e 784º do CC não derrogam as normas especiais (adjectivas) aplicáveis à acção executiva.

    * Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: I. Na execução para pagamento de quantia certa[1] movida por I (…) A. G.

    [2], contra E (…), L (…), C (…) e C (…), veio A (terceiro) requerer a sua extinção pelo pagamento que alegou ter acordado e efectuado à exequente em finais de 2017, pretensão indeferida por despacho de 21.12.2019 - por se considerar que o “recibo apresentado” pelo requerente não traduz, “sem qualquer dúvida, o pagamento da quantia exequenda” -, determinando-se o prosseguimento da execução.

    Inconformado, o requerente apelou formulando as seguintes conclusões: 1ª - A I (…) nunca foi parte no processo n.º 666/15.7T8VIS, não existe nos autos qualquer documento que titule qualquer cessão de créditos do Banco (...) para a I (...) no âmbito desse processo e nunca no âmbito das negociações do crédito levadas a efeito a I (…) informou quem quer que fosse que a operação n.º 953907713 se referisse ao processo 666/15.7T8VIS e não a este processo 69/09.2TBTND.

    1. - Face à evidência da matéria dos autos, à documentação junta e aos despachos judiciais de 23.4.2019 e 21.10.2019, a decisão de que se recorre não deixa de constituir uma decisão surpresa com violação do princípio do contraditório.

    2. - Uma vez que a sentença proferida abstém-se de conhecer do mérito da causa declarando a existência de uma suposta operação n.º 953907713, relacionando-a com um processo que quer o crédito quer o credor não existem, sem que às partes tenha sido dada a oportunidade de debater essa questão.

    3. - A decisão proferida, além de não ser processualmente admissível, está em total desacordo com a realidade objectiva e é, portanto, juridicamente errada, gerando, por conseguinte, nulidade processual susceptível de influir no exame e decisão da causa.

    4. - Decidindo como decidiu a senhor juiz a quo fez má interpretação dos factos e do Direito, violando, nomeadamente os art.ºs 3º, n.º 3 e 195º do Código Processo Civil (CPC) e 20º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

    5. - O despacho de que se recorre parte das erradas premissas de que na documentação relativa às negociações “a referência feita pela exequente” é “a operação relativa a outro processo executivo” e que “o recibo junto menciona operação de cessão de créditos que não corresponde aos presentes autos”.

    6. - O Tribunal a quo fez uma errada interpretação dos documentos (certidões judiciais) e dos factos que os mesmos corporizam, ignorando os princípios da boa-fé negocial, da imputação do cumprimento, permitindo que a exequente aja em manifesto abuso de direito.

    7. - O crédito do outro processo executivo 666/15.7T8VIS não existe, a I (...) não era parte nesse processo e não existia qualquer crédito ou credor nesse processo à data do início das negociações com a I (…) (27.12.2017), como se alcança designadamente da certidão da sentença proferida em 09.10.2017.

    8. - O recorrente, tal como o Tribunal a quo, ainda hoje não viu qualquer documento que se refira à alegada secreta operação n.º 953907713, da qual apenas conhece a sua referência, como tudo resulta objectivamente dos autos.

    9. - Perante estes factos e as decisões transitadas em julgado o Tribunal a quo teria que ter concluído pela inexistência do crédito do processo 666/15.7T8VIS e pela falsidade da alegação da I (…) da sua titularidade.

    10. - O Tribunal ignorou os princípios da boa-fé negocial que devem estar presentes em qualquer negociação.

    11. - Perante o circunstancialismo dos autos, existindo sentença proferida em 09.10.2017, transitada em julgado e referente ao processo 666/15.7T8VIS, a negar a existência de crédito, alguém, perante uma proposta concreta de pagamento do processo 69/09.2TBTND, pretender alterar o sentido daquela decisão judicial, pretendendo levar ao engano outrem, afirmando depois de concluída a negociação e cumprido o acordo que estava a pagar os créditos do outro processo (666/15.7T8VIS) exibe e ostenta gritante má-fé negocial, que o Tribunal não poderia nem pode deixar de sancionar.

    12. - Má-fé essa que não se coíbe de manter nos autos, quando afirma em 11.11.2019 que “é titular do crédito accionado no âmbito do Processo n.º 666/15.7T8VIS”, quando nunca aí foi parte ou interveio por qualquer forma e, além do mais, não existe qualquer crédito, como resulta da certidão do processo 666/15.7TVIS.

    13. - Daí que o Tribunal não só deveria ter proferido despacho a deferir o requerido, como e também deveria ter sancionado tais comportamentos e, ao não o fazer e ao permitir que a execução prossiga o Tribunal a quo está a validar e a permitir, em claro e evidente abuso de direito, que a exequente prossiga com a execução.

    14. - A conduta da exequente ao nunca questionar a designação do pagamento, ao imputá-lo a um crédito inexistente e de que nunca foi titular e ainda assim prosseguir com a execução, constitui abuso de direito, nos termos do disposto no art.º 334º do Código Civil (CC), na modalidade de venire contra factum proprium, porquanto se verifica a existência dum comportamento anterior do agente suscetível de basear uma situação objetiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e actual) ao agente; a boa-fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma atividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objetiva de confiança e o “investimento” que nela assentou”.

    15. - O despacho em recurso apesar de referir que de toda a documentação junta relativa às negociações existiu sempre a referência pelo requerente a este processo de execução, não retirou daí as consequências jurídicas resultantes das regras da imputação do cumprimento.

    16. - O Tribunal a quo reconhece e consta de todos os documentos que corporizam as negociações, que sempre o recorrente fez questão de designar expressamente que pretendia negociar e pagar o crédito destes autos (69/09.2TBTND) (art.º 783º, n.º 1 do CC).

    17. - Assim, terá que se entender que o devedor designou expressamente a dívida que pretendia pagar (art.º 783º, n.º 1 do CC).

    18. - Atento o disposto no art.º 784º do CC só se o recorrente não tivesse feito a designação do que pretendia pagar, é que o credor poderia imputar esse pagamento na dívida vencida, mas a dívida vencida que teria que existir, para além da que foi paga.

    19. - A única dívida existente e confirmada por sentença e despacho transitados em julgado em 09.10.2017 e 27.5.2013, era aquela que o recorrente designou (a destes autos).

    20. - Ainda que não tivesse existido designação de pagamento e embora não tenha sido invocada pela recorrida nos autos, temos por certo que, atentas as regras normais da vida em sociedade, só por manifesta “estultícia” é que um mandatário que interveio num processo (666/15.7T8VIS) e que obteve ganho de causa por duas vezes (em 27.5.2013 e 09.10.2017) possa vir a propor a alguém que nunca foi parte em qualquer um desses processos o pagamento de um crédito que as duas decisões transitadas em julgado em que interveio declararam não existir! 22ª - Assim, mesmo que fosse invocada tal “estultícia” (que não foi), nunca esta poderia merecer acolhimento do Tribunal atentas as normais regras de experiência do julgador e o normal da vida em sociedade.

    21. - Atentas as regras da imputação do cumprimento o Tribunal a quo, face à designação expressa feita pelo recorrente em todas as comunicações de negociação, teria que necessariamente ter concluído que houve acordo de pagamento da execução destes autos (69/09.2TBTND) e que esse acordo foi aceite e integralmente cumprido e, nesse sentido, deveria ser extinta a execução (pelo pagamento), como se espera venha a suceder com a procedência deste recurso.

    22. - Foram violados no despacho recorrido, designadamente e entre outros, os art.ºs 227º, 334º, 342º, 783º e 784º, do CC, 3º, n.º 3, 195º e 615º alíneas b), c) e d) do CPC e 20º da CRP.

    Remata pugnando que se revogue o despacho recorrido e ordene a extinção da execução.

    A exequente respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

    Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa decidir, principalmente, se a importância que a exequente recebeu do requerente se destinava a pagar a quantia reclamada na execução...

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