Acórdão nº 5868/19.4T8CBR.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 06 de Outubro de 2020
Magistrado Responsável | ARLINDO OLIVEIRA |
Data da Resolução | 06 de Outubro de 2020 |
Emissor | Court of Appeal of Coimbra (Portugal) |
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra C (…), residente (…), intentou a presente ação especial de destituição de titulares de órgãos sociais contra L (…), residente (…) , pedindo que se determine a destituição do requerido do cargo de gerente da sociedade comercial por quotas S (…), Lda.
Alegou para tanto, em síntese útil, que autor e réu são os únicos sócios e gerentes da sociedade S (…), Lda., obrigando-se esta com a assinatura de um dos gerentes, e que desde há alguns meses que o réu, que se pretende desvincular da empresa e vender a sua quota na sociedade, vem descurando a gestão da sociedade e a negligenciar os seus deveres de gerência.
Invocou, mais concretamente, que o réu, para além de ter proposto a venda da sua quota a funcionários da empresa, se passou a ausentar da empresa por longos períodos, pagou no mês de julho os salários dos funcionários depois de estes já terem sido pagos pelo autor, deixando a sociedade com saldo inferior a € 1000,00, obrigando o autor a pedir a devolução das quantias indevidamente pagas, fez pagamentos a fornecedores e a trabalhadores quando tal matéria é da competência do autor, e a partir de 24 de setembro passado deixou de ir à empresa.
Mais invocou que o réu se recusou a formalizar garantias financeiras necessárias para que a sociedade beneficiasse de financiamentos, destinados à aquisição de equipamento e à criação de quatro postos de trabalho, no âmbito do Quadro Portugal 2020 na ordem dos € 130.000,00, financiamentos estes há muito solicitados e fundamentais para a atividade da sociedade. Com essa recusa, que inviabilizou os financiamentos, colocou a sociedade em problemas, nomeadamente perante o fornecedor do equipamento, comprometendo a sua credibilidade, e irá obrigar a sociedade a recorrer à banca, com o inerente acréscimo de custos. Acrescentou que a empresa pretende candidatar-se a um concurso público que a Universidade de (...) irá abrir em breve, para o que necessitará de um conjunto de documentação pessoal dos gerentes e das respetivas assinaturas, sendo expectável que o réu, à semelhança do que anteriormente fez, se recuse a facultar documentação ou a assinar contratos.
Considerando o risco de a sociedade ser impedida de concorrer ao concurso público a que se pretendia candidatar, e de perder definitivamente os projetos desenvolvidos durante os últimos dois anos, bem como outros concursos ou ajustes diretos que pudessem surgir, pediu ainda que, a título antecipatório, com caráter urgente e dispensa da respetiva audição, se decidisse a imediata suspensão do réu das funções de gerente, sendo a final decretada a sua destituição.
* Dispensada a audição prévia do réu, e realizadas as diligências necessárias, foi determinada a sua imediata suspensão, a título cautelar, das respetivas funções de gerente.
* Regularmente citado, o réu deduziu contestação, na qual pugnou pela improcedência do pedido, tendo para o efeito refutado a versão dos factos apresentada pelo autor, e sustentado que foi antes este quem sempre negligenciou os seus deveres enquanto sócio e gerente, recusando-se a capitalizar a empresa e rejeitando todas as propostas do réu para reduzir custos e colmatar a débil situação da empresa. Acrescentou que se recusou, conjuntamente com a sua mulher, a assinar os documentos relativos ao financiamento por prudência e contenção, já que entendia que a empresa não tinha condição para cumprir com o serviço da dívida, e que foi alvo de ameaças físicas e verbais, sendo essa a razão pela qual deixou de ir à empresa, continuando, não obstante, a velar pelos negócios até à sua suspensão.
Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com recurso à gravação da prova nela produzida, finda a qual foi proferida a sentença de fl.s 130 a 140, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e, a final, se decidiu o seguinte: “Pelo exposto, julgo procedente a presente ação e, consequentemente, determino a destituição do réu do cargo de gerente da sociedade S (…), Lda. Condeno o réu no pagamento das custas do processo (art. 527.º do Código de Processo Civil).”.
Inconformado com a mesma, dela interpôs recurso o réu L (…), recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo – (cf. despacho de fl.s 194), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões: 1. O presente recurso tem por objeto a douta sentença proferida pelo Juízo de Comércio de Coimbra – Juiz 3 ao julgar procedente a ação especial de destituição de gerente.
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A douta sentença recorrida não poderá manter-se no que toca à condenação por ela decretada do Réu, ora Recorrente, no domínio da sua ação, por violação dos deveres de gerência.
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Desde logo, porque a mesma padece de um claro erro de julgamento – art.º 607/3 CPC – na interpretação dos factos e respetiva subsunção dos mesmos à descrição abstrata dos normativos jurídicos, ficando, com isso, afetada e viciada a decisão proferida pela douta sentença.
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Efetivamente, o Tribunal a quo imputou ao recorrente a violação de um dever de gerência – dever de lealdade -, não obstante fê-lo com base num comportamento que o recorrente adotou enquanto atuava na qualidade de sócio, e não na qualidade de gerente. Ora, somos, portanto, de concluir estar em causa um erro na aplicação do art.º 64º CSC, porquanto o mesmo apenas se aplica nos casos em que o gerente/administrador atue precisamente nessa qualidade.
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Logo, a não assinatura dos contratos de financiamento e o seu consequente aval configura um ato pessoal e não um ato de gerência.
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Mais se acrescenta que a instância inicial seguiu, acriticamente, o entendimento do Recorrido, tendo o silogismo judiciário sido construído com base numa única premissa: que os contratos de financiamento que o recorrente se recusou a assinar eram, de facto, benéficos para a empresa e para a consequente prossecução do plano de negócios.
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Contudo, através da factualidade dada como provada, os dados recolhidos não nos permitem concluir pela indispensabilidade daquele financiamento. Assim, pura e simplesmente não sabemos se o mesmo era benéfico para a empresa – basta lembrarmo-nos que a mesma já estava endividada, tendo o recorrente alertado várias vezes para essa situação – nem sequer sabemos se existia, efetivamente, um plano de negócios. Certo é, apenas, que o financiamento serviria para pagar maquinaria adquirida imprudentemente pelo recorrido.
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Do exposto, cremos que, salvo o merecido respeito, toda a argumentação do Tribunal a quo para fundamentar a sua decisão “cai por terra” e peca por falta de prova.
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O recorrente revelou-se, desde sempre, um “gestor criterioso e ordenado”, cumprindo os seus deveres enquanto sócio e enquanto gerente. Veja-se, por exemplo, que foi o recorrente quem suportou a totalidade do capital social (5.000,00 €); bem como foi ele quem, em finais de 2018, capitalizou a empresa em 7.152,66 € e avalizou responsabilidades no montante de 200.000,00 €, por força do endividamento que a empresa já vinha apresentado em relação a fornecedores, 10. Ainda em função daquele endividamento, atente-se que foi o recorrente quem propôs um plano de redução de custos, que passaria inclusive pela redução da remuneração de gerente, plano que não foi bem aceite pelo recorrido. Aqui se denota o temor pela perda dos benefícios pessoais e prebendas alcavalas que desde a constituição da S (…), Lda. tem usufruído de forma ilícita, em prejuízo da performance financeira da empresa e da sua manutenção futura – olhemos, a título de exemplo, para os gastos da empresa com carros que são utilizados pelas suas filhas –.
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Pelo contrário, o recorrente, ao mostrar-se disposto a reduzir a sua remuneração, evidencia um sentido de compromisso e de lealdade ímpar para com a sociedade, pelo que não compreendemos a decisão tirada na douta sentença.
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Foi face àquela indiferença e despreocupação do recorrido com o futuro da empresa – tanto que nunca a capitalizou – que surge a proposta de venda da sua participação social. O recorrente não se revia naquele modelo empresarial e, apesar de toda a afeição que nutre pela sociedade, não queria fazer parte do problema, apresentando-se, assim, como solução. Tal, demonstra a correção e transparência do recorrente durante toda esta contenda.
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Ainda assim, retenha-se, em agosto de 2019, e apesar de todas as quezílias e de não receber a sua remuneração desde julho, o recorrente interrompeu as suas férias para negociar e estabelecer um acordo de pagamento prestacional com a (…), uma vez que esta quis operar a resolução de um contrato de manutenção, tendo a mesma advertido por carta para o acionamento de uma dívida em Tribunal cujo montante ascendia a 6.385,83 €. Após as negociações, o recorrente conseguiu fixar a dívida no valor de 2.903,04 €. Ora, custa-nos a compreender como é que tal não foi devidamente tido em conta pelo Tribunal a quo.
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E se, face ao exposto, já pudemos inferir pela inexistência da violação do dever de lealdade que, erroneamente, foi imputado ao Réu, ora recorrente, pelo Tribunal a quo, então, muito menos poderemos falar em justa causa de destituição.
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Ora, “é justa causa a situação que, atendendo aos interesses da sociedade e do gerente, torna inexigível àquela manter a relação orgânica com este, designadamente porque o gerente violou gravemente os seus deveres, ou revelou incapacidade ou ficou incapacitado para o exercício normal das suas funções 6”.
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Deste modo, a justa causa de destituição analisa-se em dois pressupostos: por um lado, é necessário que o facto praticado pelo recorrente seja ilícito e, por outro, culposo. Estaremos, desde logo, perante uma ilicitude quando haja a violação grave dos deveres...
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