Acórdão nº 2037/19.7T8VIS.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 14 de Janeiro de 2020
Magistrado Responsável | MARIA JOÃO AREIAS |
Data da Resolução | 14 de Janeiro de 2020 |
Emissor | Court of Appeal of Coimbra (Portugal) |
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção): I – RELATÓRIO A..., divorciada, veio apresentar-se à insolvência, formulando pedido de exoneração do passivo restante, alegando factos tendentes a justificar a concessão deste benefício e requerendo que lhe seja fixado um rendimento disponível no valor equivalente a 1.450,00€, com base no seguinte condicionalismo sócio-económico.
Declarada a insolvência da Requerente, o Administrador da Insolvência pronunciou-se no sentido de nada ter a opor ao requerido.
Notificados os credores para se pronunciarem sobre o pedido de exoneração do passivo restante, - o credor E... deduziu oposição à concessão do benefício, alegando, em síntese, que o instituto é contrário à lei fundamental por desonerar a devedora das obrigações que assumiu e pôr em causa o princípio da igualdade, que o seu crédito resulta de contrato resolvido em 2012, que a insolvente absteve-se de se apresentar à insolvência “nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica” e que se encontra impossibilitada de cumprir as obrigações vencidas desde 2012; - o Banco ..., S.A. também deduziu oposição à admissibilidade do mesmo, alegando, em síntese, que a admissão do pedido causa-lhe prejuízos e que o instituto traduz-se num “benefício desmedido a devedores sobreendividados e conscientemente colocados em tal situação”.
O Juiz a quo proferiu despacho a declarar encerrado o processo de insolvência, deferindo liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, determinando a cessão do rendimento disponível que a insolvente venha a auferir, com exclusão do montante mensal correspondente a 1,9 do salário mínimo nacional que para cada ano seja legalmente determinado.
Inconformada com tal decisão, a Requerida dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões: ...
Termos em que deve ser julgada procedente, porque provada, a presente alegação, alterando-se o valor do rendimento indisponível da recorrente de 1,9 salários mínimos nacionais para 2,2 salários mínimos nacionais.
* Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr. artigos 635º e 639º do Novo Código de Processo Civil –, a questão a decidir é uma só: 1. Se é de alterar a decisão recorrida que excluiu do rendimento disponível o equivalente a 1,9 do salário mínimo nacional, por se afigurar insuficiente.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO O Tribunal a quo deu como provado os seguintes factos, com interesse para a decisão recorrida e que não foram objeto de impugnação: 1) A insolvente nasceu no dia 15 de janeiro de 1971, é divorciada e do respetivo assento de nascimento não consta que já beneficiou da exoneração do passivo restante (págs. 3 a 5 do requerimento com a ref.ª ...).
2) M... e A..., nascidas respetivamente a 25 de julho de 2008 e 9 de julho de 2010, estão registadas como filhas da requerente e de M..., encontrando-se regulado o exercício das responsabilidades parentais nos termos do qual ficaram a residir com a mãe, ficando o pai obrigado a pagar a pensão de alimentos de duzentos euros para cada uma das filhas (docs. 3, 6 e 7 da p.i.).
3) A requerente e filhas vivem em casa arrendada em (....) , cuja renda mensal é de €350,00 (doc. 11 e 12 da p.i. e relatório do A.I.).
4) A insolvente é professora do ensino secundário, exerce funções no ... e aufere o vencimento mensal líquido de cerca de €1.400 (doc. 8 da p.i. e relatório do A.I.); 5) O incumprimento do crédito de que é titular o credor E... ocorreu em 2012 (relatório do A.I. e falta de oposição ao alegado pelo credor).
6) O endividamento da insolvente resulta maioritariamente das responsabilidades assumidas enquanto fiadora/avalista da sociedade V..., Lda. e de contrato de mútuo com hipoteca, contraído juntamente com o ex-cônjuge (relatório do A.I.).
7) O Sr. Administrador da Insolvência apresentou a lista de créditos reconhecidos junta ao apenso A que não foi impugnada, cujo teor se dá por reproduzido.
8) A insolvente não tem antecedentes criminais (ref.ª ...).
O procedimento de exoneração do passivo restante, introduzido na nossa legislação pelo CIRE (aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18 de Março, e objeto de sucessivas alterações), corresponde à Discharge na lei norte americana e à Restschuldbefreiung da lei alemã[1], traduzindo uma ideia de “fresh start” em que ocorre a extinção das dívidas e a libertação do devedor por forma a que este não fique inibido de começar de novo e poder retomar a sua atividade económica.
Os diferentes regimes de tratamento do sobre-endividamento da pessoa singular podem agrupar-se em duas categorias: i) o modelo (puro) do fresh start e ii) o modelo derivado do earned start ou da reabilitação.
“O primeiro baseia-se na ideia de que a liquidação patrimonial e o pagamento das dívidas devem ter lugar ter lugar no curso do processo de insolvência, sendo que, uma vez concluído, restem ou não dívidas por pagar, o devedor deverá ser libertado de forma a poder retomar, com tranquilidade, a sua vida. O modelo da reabilitação assenta ainda no fresh start mas desenvolve um raciocínio diferente: o raciocínio de que o devedor não deve ser exonerado em quaisquer circunstâncias pois, em principio, os contratos são para cumprir (pacta sunt servanda). Em conformidade com isto, o devedor deve passar por uma espécie de período de prova, durante o qual parte dos seus rendimentos é afetada ao pagamento das dívidas remanescentes. Só findo este período, e tendo ficado demonstrado que o devedor merece (earns) a exoneração, deverá ser-lhe concedido o benefício[2]”.
Temos assim alguns ordenamentos jurídicos que concedem um perdão imediato e incondicional do remanescente...
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