Acórdão nº 152/09.4GDCBR.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 26 de Janeiro de 2011

Magistrado ResponsávelEDUARDO MARTINS
Data da Resolução26 de Janeiro de 2011
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

A - Relatório: 1.

Nos Autos de Instrução n.º 152/09.4GDCBR, do Tribunal de Instrução Criminal de Coimbra, Secção Única, foi proferida, em 21/6/2010, decisão instrutória de não pronúncia quanto ao arguido J...

, pelo crime de furto de uso de veículo, p. e p. pelo artigo 208.º, do Código Penal.

  1. Inconformado com essa decisão, em 13/7/2010, recorreu o Assistente F...

    , defendendo a revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra no sentido da pronúncia do arguido, pela prática do crime p. e p. pelo artigo 208.º, do C. Penal, com o consequente envio do processo para julgamento, sem prejuízo de, previamente, poder vir a ser considerado que existe nulidade do inquérito, ao abrigo do disposto no artigo 120.º, n.º 2, al. d), do CPP.

    Apresentou as seguintes conclusões: 1. O ora Recorrente vem interpor recurso da decisão proferida sobre a matéria de direito pelo tribunal a quo, por discordar quanto ao teor do douto despacho de não pronúncia proferido.

  2. Resulta da decisão de não pronúncia do tribunal a quo que o furto de uso ocorre quando alguém arbitrariamente retira coisa alheia móvel infungível para dela se servir momentaneamente, restituindo-a na íntegra.

  3. Aponta o tribunal a quo como ponto de coincidência entre o furto simples e o furto de uso um acto material de subtracção da coisa.

  4. Foi, assim, entendimento do tribunal a quo que um dos elementos típicos do furto de uso de veículo é o acto material de subtracção de uma coisa. Subtracção esta idêntica à subtracção do furto simples.

  5. No caso em apreço, o tribunal a quo, no seu despacho de não pronúncia, entendeu que não houve subtracção, ou seja, o veículo foi entregue voluntariamente pelo ofendido ao arguido para reparação, considerando ser bastante para se concluir que não se verifica o crime em causa de furto de uso de veículo.

  6. Não exigem, porém, os elementos do tipo do crime previsto e punido pelo artigo 208.º, do C. Penal, tal elemento (subtracção).

  7. Discorda o ora Recorrente quanto à qualificação jurídica imputada aos factos participados e indiciados.

  8. Há indícios da prática do crime de furto de uso de veículo no caso em apreço, uma vez que para que o crime se verifique é apenas necessário que o arguido, estando apenas autorizado a deter o veículo, o utilize sem consentimento do proprietário, nomeadamente enquanto meio de transporte, passe da disponibilidade do proprietário para a do agente do crime.

  9. Ora, o Recorrente entregou o seu veículo ao Arguido para que este reparasse, não lhe conferindo qualquer autorização para que circulasse com o veículo na via pública, advertindo-o, inclusive, que não tinha seguro válido.

  10. O Arguido apenas se encontrava autorizado a deter o veículo para um determinado fim, neste caso, para o reparar.

  11. Com tal comportamento, o Arguido utilizou o veículo em proveito próprio, sem para tal estar autorizado pelo seu legítimo proprietário, ou seja, o aqui Recorrente.

  12. Incorre, assim, no crime de furto de uso o agente que esteja apenas autorizado a deter o veículo, mas que o utiliza sem consentimento do proprietário.

  13. Para que estejamos perante o crime p. e p. pelo artigo 208.º, do C. Penal, basta que se verifiquem os seguintes elementos: utilização de um meio de transporte alheio, sem autorização de quem de direito – que se verificam no caso em análise.

  14. Basta que a utilidade do veículo passe da disponibilidade do proprietário para o agente do crime, desde que sem autorização de quem de direito, não sendo necessário o elemento de subtracção, diferentemente daquele que foi o entendimento do tribunal a quo.

  15. Assim, face ao exposto, tendo em consideração as circunstâncias do caso, nomeadamente os testemunhos aduzidos em sede de instrução e transpostos em parte para a decisão recorrida, dúvidas não restam de que resultam indícios suficientes de que o Arguido se constituiu como autor material de um crime de furto de uso de veículo, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 208.º, do C. Penal.

  16. Pelo que o Ministério Público não poderia ter proferido despacho de arquivamento nos presentes autos, imediatamente após a apresentação da queixa, sem que tenham sido realizadas quaisquer diligências probatórias, violando, deste modo, os artigos 276.º, 277.º, n.º 1, 120.º, n.º 2, al. d), do CPP.

  17. Efectivamente, o Ministério Público arquivou o Inquérito após o mesmo ter sido aberto, não realizando as diligências requeridas pelo Recorrente.

  18. Deveria o Ministério Público averiguar o mérito da causa, o que não sucedeu, uma vez que existiam factos que poderiam, em abstracto, integrar um ilícito criminal, como é o caso.

  19. Verifica-se, deste modo, insuficiência do inquérito que constitui causa de nulidade, conforme sufraga o disposto no artigo 120.º, n.º 2, al. d), do CPP.

  20. Pelo que, também no que toca a este ponto, o tribunal a quo não andou bem, considerando não existir qualquer nulidade, uma vez que as diligências de prova efectuadas pelo Ministério Público ocorreram após o arquivamento dos autos e impunha-se-lhe que procedesse primeiro à investigação dos factos, uma vez que o procedimento não era legalmente inadmissível, como impõem os artigos 267.º e 277.º, n.º 1, ambos do CPP.

    **** 3.

    O arguido, em 10/8/2010, apresentou resposta ao recurso, defendendo a sua total improcedência.

    Apresentou as seguintes conclusões: 1. O recorrente interpôs recurso da decisão proferida pelo tribunal a quo quanto à matéria de direito.

  21. Recorre da parte da decisão em que aquele tribunal não considerou haver qualquer nulidade respeitante à decisão de arquivamento dos autos tomada pelo M.P. em sede de Inquérito, sem ter procedido a diligências que o recorrente considerava essenciais.

  22. O M.P. pratica os autos e assegura os meios de prova necessários à investigação da existência de um crime, de quais os seus agentes, de qual a responsabilidade destes e à descoberta e recolha das provas em ordem à decisão final (de acusação ou arquivamento), cfr. artigos 262.º, n.º 1, 267.º a 271.º, do CPP, 4. Sendo livre de promover as diligências que entender necessárias ou convenientes à realização das finalidades do inquérito.

  23. Dispõe o artigo 120.º, n.º 2, al. d), do CPP: “Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais: a insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.” 6. No caso em apreço, o M.P. não omitiu qualquer acto obrigatório, não podendo nós, aqui, cair no âmbito de aplicação do artigo 120.º, n.º 2, al. d), do CPP.

  24. O M.P., do simples confronto entre os factos participados e a lei praticou os actos a que estava obrigado, concluindo que não haveria qualquer hipótese de subsumi-los num determinado crime, pelo que arquivou (e, no nosso entender, bem) o inquérito, sem mais, não sendo preciso ordenar quaisquer outras diligências para a descoberta da verdade material.

  25. Pois os factos não se enquadravam no tipo legal de crime, previsto no artigo 208.º, do C. Penal.

  26. Tal é o entendimento doutrinal e jurisprudencialmente aceite.

  27. Assim sendo, não havia qualquer necessidade de proceder/obter outros meios de prova, pois, in casu, não havia qualquer crime a apreciar.

  28. Tendo andado bem o M.P. ao promover o arquivamento dos autos, sem mais, não cometendo qualquer nulidade, 12. E o TIC, ao considerar que não houve qualquer nulidade na fase de inquérito, referente ao artigo 120.º, n.º 2, al. d), do CPP.

  29. No que concerne à decisão de não pronúncia e à qualificação jurídica do crime, começamos pelo ponto comum, entre os casos de furtum rei e furtum usus: a subtracção do bem, neste caso, de um veículo, 14. O que não aconteceu.

  30. O recorrente entregou livremente o veículo ao arguido que o veio a restituir.

  31. O arguido não o subtraiu da esfera jurídica do recorrente ilegalmente, não se apropriou do veículo fraudulentamente.

  32. Ao contrário do que vem alegado pelo recorrente, é necessária a subtracção do veículo, para se considerar que existe crime de furto de uso.

  33. Ainda que assim não se entenda, o que não se concede, estriamos, no máximo, segundo os factos alegados pelo recorrente, perante uma situação que configuraria abuso de uso, o que não é punido pela nossa legislação.

  34. Consideramos que o que aqui está em causa é uma mera questão contratual cível, nunca uma questão penal.

  35. Tendo em atenção tudo o que foi alegado, nunca poderá o arguido ser pronunciado pelo crime p. e p. pelo artigo 208.º, do C. Penal.

    **** 4.

    O Digno Magistrado do Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, em 14/9/2010, defendendo a sua improcedência total e, sem apresentar conclusões, defendeu, em resumo, o seguinte: 1. A insuficiência do inquérito (ou da instrução) a que se refere a al. d), do n.º 2, do artigo 120.º, do CPP, é uma nulidade genérica que só se verifica quando se tiver omitido a prática de um acto que a lei prescreve como obrigatório (caso do interrogatório do arguido). A omissão de diligências não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito por insuficiência, pois a apreciação da necessidade dos actos de inquérito é da competência exclusiva do Ministério Público.

  36. No caso em apreço, tendo o Ministério Público considerado que os factos denunciados pelo assistente não constituíam crime, não lhe competia realizar diligências de investigação nem constituir o denunciado como arguido.

  37. Os factos apurados nos autos não integram a prática do crime de furto de uso de veículo, por falta do elemento típico da infracção, “a prévia subtracção do veículo”.

  38. A factualidade denunciada pelo assistente configura antes um caso de abuso de uso que não é punível criminalmente.

    **** 5.

    O recurso foi, em 17/9/2010, admitido. Instruídos os autos e remetidos a este Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, em 6/10/2010, emitiu douto parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso, salientando que, a propósito da...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT