Acórdão nº 255/10.2T2AVR-E.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 18 de Janeiro de 2011

Data18 Janeiro 2011
ÓrgãoCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra: I. No processo de insolvência n.º 255/10.2T2AVR em que é insolvente “I (…) SGPS, S.A.”[1], pendente no Juízo de Comércio de Aveiro, da Comarca de Baixo Vouga, a credora “A (…) Holding, LLC”, veio requerer, em 27.5.2010, a apensação de todos processos de insolvência relativos às sociedades do “Grupo I (…)”, alegando, em síntese: - As sociedades (…), SGPS, S.A., (…), SGPS, S.A., (…) Lda. e (…) S.A., formam um grupo societário constituído por domínio total no qual a primeira das sociedades controla as restantes.

- As várias sociedades têm sede no mesmo local, administrações comuns e o Administrador da Insolvência é o mesmo em todos os processos do grupo.

- O próprio Administrador da Insolvência, conhecendo todos os processos e todas as sociedades, é peremptório ao afirmar, nos vários relatórios de insolvência que apresentou, que as sociedades em questão constituem um grupo societário e que foi também devido à má prestação de umas sociedades que as outras se tornaram insolventes.

- Tendo em conta que estamos perante um grupo societário constituído por domínio total, resulta do art.º 501º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) que a sociedade dominante responde com o seu património perante os credores das sociedades dominadas.

- Com as declarações de insolvência das sociedades dominadas, cessa a relação de grupo destas com a sociedade dominante, deixando o património daquelas de ser considerado no activo desta. No entanto, apesar da cessação da relação de grupo, e da separação e individualização dos patrimónios das várias sociedades, não termina a responsabilidade da sociedade-mãe para com os credores das sociedades-filhas – art.º 501º do CSC.

- A apresentação à insolvência, de forma separada, ainda que simultânea, de várias sociedades de um mesmo grupo apenas aproveita aos credores das sociedades dominadas, uma vez que estes vêem os credores da sociedade dominante serem excluídos do concurso ao património da sua devedora, ao passo que continuam a poder concorrer, em pé de igualdade, com os credores da sociedade dominante, ao património desta.

- Este resultado é contrário às disposições do CSC e do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)[2], colidindo com a boa fé, aqui materializada no princípio par conditio creditorum, segundo o qual o processo de insolvência deve ser norteado pela igualdade de tratamento entre credores.

- É exactamente para prevenir estas manipulações do sistema, e a prevalência do critério da personalidade jurídica sobre o critério da unidade patrimonial, que o legislador do CIRE atribuiu ao Administrador da Insolvência um poder/dever de apensar os processos de insolvência que digam respeito a várias sociedades constituídas em relação de domínio total – art.º 86°, n.° 2, do CIRE.

- Todos os processos de insolvência relativos às sociedades do Grupo I (…) deveriam ser apensados procedendo-se a uma liquidação conjunta do património do grupo, única forma de cumprir o princípio da igualdade de tratamento entre credores que norteia a legislação do CIRE.

- O poder de o Administrador da Insolvência requerer ao Tribunal a apensação de processos é um verdadeiro dever, verificados que estejam os pressupostos acima expandidos, como se verificam no caso em apreço.

- A Requerente já por diversas vezes interpelou o Administrador da Insolvência, pedindo-lhe que requeresse a apensação dos processos; no entanto, este não desenvolveu qualquer diligência nesse sentido.

- Se considerarmos que o requerimento de apensação de processos é um poder discricionário do Administrador da Insolvência, será forçoso considerar que este não tem legitimidade exclusiva para requerer a apensação de processos.

- Nessa situação deverá ser aplicado subsidiariamente, por força do art.º 17º do CIRE, o art.º 275° do CPC, nos termos do qual o requerimento de apensação dos processos pode ser requerido por qualquer parte com interesse atendível na acção.

- Caberá posteriormente ao juiz, como cabe sempre, ordenar, ou não, a apensação.

- Não é possível interpretar o art.º 86°, do CIRE, no sentido em que o requerimento de apensação de processos de insolvência é da exclusiva responsabilidade do Administrador da Insolvência.

- Tal entendimento violaria o art.º 2° do CPC, por remissão do art.º 17° do CIRE, uma vez que impediria a ora Requerente de ver analisada em juízo a sua pretensão de que sejam apensados os processos.

- Tal interpretação do art.º 86° do CIRE, considerando que o Administrador da Insolvência tem, em exclusivo, o poder discricionário de requerer a apensação dos processos, é também inconstitucional, por violação do art.º 20° da Lei Fundamental, porquanto impede que a ora Requerente aceda ao direito e aos tribunais para ver analisada uma sua pretensão e sindicada a actuação de um órgão da insolvência que não é um órgão de soberania.

- Por essa mesma razão, o art.º 86° do CIRE, nessa mesma interpretação, viola também, o art.º 202° da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual cabe aos tribunais - por serem órgãos de soberania - administrar a justiça em nome do povo e assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.

- Os processos de insolvência visam garantir a igualdade de tratamento entre credores - a decisão de apensar, ou não, processos de insolvência relativos a sociedades em relação de domínio total pode ter, e tem, o maior impacto nas quantias que cada um dos credores vai receber a final, aquando da liquidação do património da, ou das, sociedades.

- Trata-se, por isso, de uma situação de direitos e de interesses legalmente protegidos. E, nos termos da Constituição, cabe ao Tribunal, e não a um Administrador da Insolvência, decidir acerca desses direitos e interesses, de acordo com a Lei.

- É manifesto que não se pode interpretar o art.º 86° do CIRE como tratando-se de um poder discricionário do Administrador da Insolvência, sem que os interessados tenham qualquer possibilidade de reagir contra a omissão deste - uma vez que se o Administrador da Insolvência requerer a apensação, essa será apreciada pelo Tribunal, que decidirá em conformidade com a lei.

- O problema coloca-se assim na situação de o Administrador da Insolvência não requerer a apensação de processos, cortando pela raiz toda e qualquer possibilidade de os interessados verem o Tribunal pronunciar-se sobre o caso, sem que essa omissão seja susceptível de recurso ou análise por um Tribunal.

- É por isso que, verificadas as condições exigíveis para a apensação de processos, o Administrador da Insolvência tem um dever, e não um mero poder, de requerer ao Tribunal a apensação de processos. Em última análise, caso o Tribunal conclua que a apensação não é devida, indeferirá o requerimento. Só assim se pode cumprir a lei e a Constituição, deixando ao Tribunal o poder de decidir sobre direitos e interesses legalmente protegidos, como o são os direitos dos credores.

- Considerando-se que o art.º 86° do CIRE estabelece um verdadeiro dever de o Administrador da Insolvência requerer ao Tribunal a apensação de processos, o problema coloca-se quando, como sucede no caso em apreço, o não o faça.

- Nestes casos em que o Administrador da Insolvência não cumpra os deveres que por lei lhe cabem, deve ser o juiz a providenciar esse cumprimento.

- Com efeito, a actividade do Administrador da Insolvência deve ser fiscalizada pelo juiz, nos termos do disposto no art.º 58° do CIRE.

- O Administrador da Insolvência não é um órgão omnipotente e está, também ele, sujeito à legalidade. Daí que, em última análise, o juiz possa destituir o Administrador da Insolvência.

- No caso em apreço, é manifesto que o Administrador da Insolvência tinha o dever de requerer a apensação dos processos de insolvência das sociedades do Grupo I.... Não o fez porque, propositadamente, pretende evitar uma liquidação conjunta do património do grupo, o que levaria a que todos os credores fossem tratados por igual.

- Estando o Administrador de Insolvência a violar um dever que lhe incumbia, vem a ora Requerente, na qualidade de parte interessada e afectada pela omissão, requerer a apensação de processos, ao abrigo do art.º 275° do CPC, subsidiariamente aplicável por força ao art.º 17º do CIRE.

- Atentos estes factos, deve o Tribunal ordenar a apensação dos processos e a liquidação conjunta dos patrimónios das várias sociedades, uma vez que “só assim se realiza o objectivo material do artigo 86º/2 de garantir a igualdade dos credores”.

- Caso o Tribunal entenda que não o pode fazer, esbarraremos novamente na negação à ora Requerente do acesso ao Direito, nomeadamente no direito de ver analisada e decidida a sua pretensão de, enquanto credora, ser tratada em igualdade de circunstâncias com os demais credores.

[3] Sobre este requerimento, depois de exercido o contraditório, recaiu o seguinte despacho (de 14.6.2010): “Requerimento da credora A (…) Holdings, LLC, em que requer a apensação de todos os processos de insolvência das sociedades do Grupo I (…), nos termos do disposto no art.º 275.º do C.P.C., por remissão do art.º 17.º do CIRE, a fls. 790 e ss. – ref.ª 4688140, e respostas de fls. 825 – ref.ª 4742535; fls. 845 e ss. – ref.ª 4751703; 851 e ss. – ref.ª 4757402; e de fls. 863 e ss.: Indefiro a requerida apensação de processos, nos termos do disposto no art.º 275.º do C.P.C., por o entender que tal norma é inaplicável aos autos, uma vez que o CIRE prevê normas expressas que regulamentam a matéria em causa nos artigos 85.º e 86.º, pelo que são inaplicáveis (subsidiariamente) as normas do C.P.C. (ex vi do disposto no art.º 17.º do CIRE), cabendo, antes, de acordo com aquelas normas do CIRE (artigos 85.º e 86.º) ao Sr. Administrador de Insolvência requerer a apensação de processos.

Notifique.” Inconformada, a A (…) Holding, LLC interpôs o presente recurso de apelação formulando as seguintes conclusões (reformuladas, mas ainda extensas[4]): 1ª - A...

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