Acórdão nº 533/16.7T8FND.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 13 de Novembro de 2018

Magistrado ResponsávelALBERTO RUÇO
Data da Resolução13 de Novembro de 2018
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)
  1. Relatório a) A Autora, ora recorrida, instaurou a presente ação declarativa de condenação contra Ré, sob a forma de processo comum, com o fim de obter desta o pagamento de uma indemnização que fixou em €15.000,00, que a ressarcisse de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais que padeceu na situação de pós-operatório até à presente data, em resultado do acidente que descreveu nos autos (queda em consequência de piso molhado, não sinalizado, nas instalações do hipermercado K.... do x... ), mais juros moratórios legais a contar da citação da Ré.

    A Ré, demandada como seguradora relativamente à responsabilidade civil resultante do sinistro em causa, contestou alegando, em síntese, que já tinha indemnizado a Autora de todos os danos, consoante recibo de quitação assinado pela mesma, devendo a ação improceder.

    No final foi proferida a seguinte decisão: «Pelo exposto, julgo a acção parcialmente procedente e, consequentemente, condeno a requerida a pagar à autora as seguintes importâncias: i) - Indemnizar (compensar) a Autora na quantia de €5.000,00 (cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros desde a data da sentença, até integral e definitivo pagamento; ii) - Indemnizar a Autora a título de danos patrimoniais futuros, no valor de €8.000,00 (oito mil euros), acrescidos de juros vencidos a partir da data da citação, contados à taxa legal, e vincendos até integral e definitivo pagamento.

    Custas a cargo da autora e da ré na proporção do decaimento (sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que beneficia a autora).

    1. É desta decisão que vem interposto o recurso da Ré cujas conclusões são as seguintes: (…) c) A recorrida não contra-alegou.

  2. Objeto do recurso Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões que este recurso coloca são as seguintes: 1 – Em primeiro lugar, a Recorrente coloca várias questões relativas à impugnação da matéria de facto.

    Pretende que sejam adicionados à matéria de facto os seguintes factos: «Que os contactos encetados com a Seguradora e negociações envolvidas foram sempre, e unicamente, realizados pela mandatária da Autora».

    Que o conteúdo da declaração foi explicado à sinistrada pela sua mandatária

    .

    Que a Autora sabia que, ao assinar o referido documento e recebendo a indemnização correspondente, estava a exonerar a Ré de quaisquer ulteriores pagamentos quanto a danos patrimoniais futuros

    .

    Que o recibo de indemnização final assinado pela Autora valorou expressamente os danos patrimoniais futuros

    .

    Pretende ainda que seja declarado não provado o facto provado sob o n.º 40 em que dá como assente que a Autora sente dificuldades acrescidas e limitações nas atividades do seu dia-a-dia, o que lhe provoca desgosto, irritação e perda do gosto de viver, devendo tal facto ser considerado como não provado.

    2 - Em segundo lugar, argumenta que o tribunal a quo concluiu pela invalidade da cláusula inserida no recibo de indemnização final, pela qual a Ré se exonerava de qualquer ulterior indemnização à Autora, à luz do disposto no artigo 8.º als. a) e b), do DL n.º 466/85, qualificação que deve ser afastada por se tratar de cláusula que foi negociada com a Autora, através da sua advogada, além de que esta última não pode ser considerada «consumidora».

    3 - Em terceiro lugar, cumpre verificar se a assinatura feita pela Autora no recibo de indemnização final constituiu uma remissão abdicativa, a qual, nos termos do artigo 863.º do Código Civil, teve e tem a virtualidade de extinguir todas as obrigações decorrentes da relação extracontratual em apreço, incluindo os danos patrimoniais futuros que a Ré pôde prever e considerar na contra proposta para a indemnização final.

    Ou se tal cláusula padece de nulidade, como se refere na sentença recorrida, por contrariar o disposto no artigo 809.º do Código Civil.

    4 - Em quarto lugar, analisar-se-á a argumentação da recorrente que sustenta que os danos não patrimoniais alegadamente sofridos pela Autora, nomeadamente «desgosto, irritação e perda do gosto de viver» perante uma mera queda num supermercado, não são objetivamente graves, como exige o disposto no artigo 496.º do Código Civil, porque não se retira da matéria de facto a gravidade, consequências, duração e dimensão do estado de «desgosto, irritação e perda do gosto de viver» da Autora.

  3. Fundamentação a) Impugnação da matéria de facto (1) A recorrente pretende que sejam adicionados à matéria de facto os seguintes factos: «Que os contactos encetados com a Seguradora e negociações envolvidas foram sempre, e unicamente, realizados pela mandatária da Autora».

    Trata-se de um facto instrumental destinado a permitir a compreensão ou apreensão daquilo que ocorreu historicamente.

    Que o conteúdo da declaração foi explicado à sinistrada pela sua mandatária

    .

    Trata-se de um facto essencial na perspetiva da sua relevância tendo em conta o regime das cláusulas contratuais gerais.

    Que a Autora sabia que, ao assinar o referido documento e recebendo a indemnização correspondente, estava a exonerar a Ré de quaisquer ulteriores pagamentos quanto a danos patrimoniais futuros

    .

    Trata-se de um facto essencial na perspetiva da sua relevância tendo em conta o regime das cláusulas contratuais gerais.

    Estes factos, nesta formulação, não constam da contestação ou outros articulados, muito embora se refira na contestação que do documento foi assinado pela Autora e que consta do mesmo a referida exoneração da Ré com base no recebimento daquela indemnização Repete-se «nesta formulação» porque nos articulados não é feita referência à intervenção de uma senhora advogada como mandatária da Autora nos contactos com a seguradora Ré e que terá esclarecido a Autora quanto ao significado do documento.

    Quanto aos factos complementares e instrumentais, o juiz pode declara-los provados ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Civil, onde se determina que «2- Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:

    1. Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;…».

      A questão que se coloca é esta: na hipótese do juiz não ter declarado provado um facto, poderão as partes, mais tarde, em recurso, requerer que o Tribunal da Relação o considere provado, alegando que resulta da instrução da causa? Afigura-se que a resposta deve ser negativa, pelas seguintes razões: (I) Se se tratar de um facto essencial, imprescindível à decisão de mérito, o artigo 5.º do Código de Processo Civil veda ao tribunal a possibilidade de julgar provado na sentença um facto essencial não alegado, o mesmo valendo para a fase de recurso.

      Se se trata de facto instrumental ou complementar, tal pretensão processual não cabe na previsão do artigo 640.º do Código de Processo Civil, relativa à impugnação da matéria de facto.

      Com efeito, relativamente à impugnação da matéria de facto, o artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, dispõe do seguinte modo: «1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

    2. Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».

      Ora, no caso contemplado na pergunta acima formulada, se alguma falta processual existiu, consistiu numa omissão, isto é, o juiz devia porventura ter declarado provado um certo facto instrumental ou complementar, não alegado, mas não o fez.

      Porém esta situação, eventualmente ([1]) omissiva, não preenche o conceito de «ponto de facto incorretamente julgado» referido na al. a), do n.º 1, do artigo 640.º do Código de Processo Civil, conceito que pressupõe apenas os factos declarados «provados» ou «não provados» exarados na decisão recorrida, únicos que poderão ter sido «incorretamente julgados».

      A al. b), do n.º 2, do mesmo artigo, reforça esta ideia ao determinar que a parte deve especificar os meios de prova «que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida».

      Pressupõe-se também aqui que tenha existido uma decisão sobre «algo».

      No caso dos autos, há uma omissão e esta, por definição, salvo se fundamentada, não é uma decisão.

      A decisão é aquela ação do juiz que necessariamente declara um facto ou como «provado» ou, então, como «não provado», e só nestes casos faz sentido a lei referir-se a decisão «diversa da recorrida».

      Afigura-se, por conseguinte, que o Código de Processo Civil não permite à parte que, em sede de recurso da matéria de facto, possa provocar uma decisão do Tribunal da Relação no sentido deste tribunal emitir decisão declarando, pela primeira vez no processo, «provado» ou «não provado» um facto instrumental que, segundo o recorrente resultará da instrução da causa, mas que não tinha sido alegado ([2]).

      (II) Em segundo lugar, há que notar que os factos instrumentais não interessam, em regra, à decisão de mérito, mas apenas à formação da convicção relativamente aos factos essenciais, pelo que, tendo em conta o que fica dito, conclui-se pela inadmissibilidade da parte provocar no Tribunal da Relação o conhecimento de um (eventual) facto instrumental, no sentido de o considerar «provado», quando tal facto não foi alegado nos articulados, nem objeto de decisão por parte do juiz.

      (III) Quanto aos factos complementares, qualificação que não respeita aos factos acima mencionados, dada a sua...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT