Acórdão nº 476/03.4TAGRD.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 18 de Maio de 2010

Magistrado ResponsávelLUÍS RAMOS
Data da Resolução18 de Maio de 2010
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

- 21 - Acordam em conferência na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra No processo supra identificado foi proferido despacho em que se declarou cessada a contumácia e determinou o arquivamento dos autos com base no entendimento de que a conduta do arguido D. que vinha acusado da prática de um crime de burla para obtenção de serviços, previsto e punido pelo artº 220º, nº 1, alínea c., do Código Penal, se encontra actualmente despenalizada.

Inconformado com o decidido, o MP interpôs recurso no qual apresentou as seguintes conclusões (transcrição): 1ª. Não se pode concordar, com o teor da decisão proferida pelo M.mo Juiz, a qual, em nosso sentir, é passível de reparo negativo pois que a conduta do arguido é uma conduta criminal e como tal terá de ser havida; 2ª As condutas contra-ordenacionais não merecem o mesmo valor ético jurídico das condutas criminais; 3ª A conduta em apreço nos autos cai no campo criminal e não no campo contra-ordenacional.

  1. São diferentes os campos de aplicação das condutas contra-ordenacionais e criminais.

  2. Mantém-se em vigor a previsão contida no artº 220° n° l-c) do CPenal de 1995, que não foi alterada com a revisão de 2007; 6ª A decisão ora em apreço violou as disposições dos artºs 220° nº l-c) do CPenal, os art°s 7°, 14° e 15° do Decreto-Lei 28/2006, os art°s 1 ° e 2° do Decreto Lei 433/82, de 27-10 e o art° 3° nº 2-b) do Decreto-Lei 108/78, de 24-5.

Termos em que, Deverá ser concedido provimento ao recurso ora interposto, e ser revogada a decisão ora em recurso e substituída por outra que mantenha a situação de contumácia do arguido nos presentes autos, prosseguindo estes os seus legais trâmites, como é de Justiça e Direito Não houve resposta.

O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.

Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta pela improcedência do recurso.

No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal não houve resposta.

Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a conferência.

Cumpre conhecer do recurso Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso.

É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras).

Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir.

Questões a decidir: descriminalização do artº 220º, nº 1, alínea c., do Código Penal na parte referente a transporte ferroviário Com interesse para a decisão, há que ter em conta o seguinte: 1) Em 16 de Dezembro de 2003 o Ministério Público deduziu contra o arguido D a acusação que se passa a transcrever: “No dia 25 de Março de 2003, o arguido foi encontrado a viajar no comboio n.º 515, na linha da Beira do Norte, procedente de Lisboa, Santa Apolónia, com destino à Guarda.

Para o efeito, o arguido não adquiriu na bilheteira o respectivo bilhete ou título de transporte, porquanto era sua intenção não pagar o preço daquela viagem.

O revisor do comboio exigiu ao arguido o pagamento do preço do bilhete correspondente à viagem, no valor de € 52,00. Porém, o arguido não o efectuou o pagamento daquela quantia, tendo afirmado não ter dinheiro para o fazer.

Por essa razão, foi o arguido notificado de que tinha o prazo de oito dias para proceder ao pagamento do preço de bilhete, sob pena de ficar sujeito ao pagamento do décuplo daquela importância - € 520,00.

O arguido não pagou aquela quantia no prazo legal, nem fez até hoje, pelo que, até á presente data o dito pagamento do preço da viagem se encontra por realizar.

Ao actuar da forma descrita, agiu o arguido de forma voluntária, livre e consciente, com intenção de não pagar o preço da referida viagem, bem sabendo que a mesma implicava o pagamento do preço do respectivo bilhete e que, deste modo, causava um prejuízo à denunciante.

Não ignorava que a sua conduta era ilícita e punível.

Desta forma, cometeu o arguido, em autoria material, um crime de burla para obtenção de serviços, p. e p. no art. 220°, nº 1, al. c) do C. Penal, revisto pelo D.L. 48/95, de 15/3.” 2) Em 26 de Fevereiro de 2004 foi proferido despacho designando data para julgamento 3) Em 9 de Julho de 2004 foi o arguido declarado contumaz 4) Em 26 de Janeiro de 2010 foi proferido o despacho sob recurso e que passamos a transcrever: Encontra-se o arguido D acusado da prática no dia 25 de Março de 2003, em autoria material e na forma consumada de um crime de burla para obtenção de serviços, previsto e punido pelo artigo 220º, n.º 1, al. c), do Cód. Penal, tudo ns termos da acusação deduzida a fls. 43 e 44, que aqui se dá como pressuposta.

Foi o mesmo arguido entretanto declarado contumaz por não se ter revelado possível notificá-lo da data designada para julgamento, situação essa que presentemente se mantém.

Ora, é nosso entendimento que a infracção em causa se encontra hoje descriminalizada desde data posterior aos factos pelos motivos que passamos a expender em seguida, podendo esta figura ser apreciada e decidida a qualquer momento do procedimento, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 2º, n.º 2, do Cód. Penal.

Com efeito, nos termos daquele referido artigo 220º, n.º 1, al. c), do Cód. Penal, na parte que nos interessa, “Quem, com intenção de não pagar, utilizar meio de transporte (...) sabendo que tal supõe o pagamento de um preço e se negar a solver a dívida contraída é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 60 dias.”.

Conforme resulta, muito sucintamente, do que escreve Almeida Costa (“Comentário Conimbricense do Código Penal”, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, tomo II, págs. 275 e seguintes e 322 e seguintes), o bem jurídico aqui protegido consiste no património globalmente considerado, tratando-se de um crime de dano, que apenas se consuma com a produção de um resultado, que consiste no prejuízo efectivo (ou empobrecimento) no património do ofendido, e não necessariamente no enriquecimento no agente do crime. Em termos muito genéricos, o tipo objectivo preenche-se com a utilização pelo agente de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa em erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios. A nível subjectivo, trata-se de um crime meramente doloso, uma vez que não se encontra prevista a punibilidade a título de negligência.

Revertendo ao caso concreto, recorde-se que se encontra alegado na acusação, em termos gerais, que o arguido, de forma voluntária e consciente, acedeu a transporte colectivo (comboio) sem ser detentor de bilhete que lhe permitisse envidar tal viagem, sabendo que tal supunha o pagamento de um preço, agindo com intenção de não pagar o mesmo e, apesar de instado para o efeito, recusou-se ainda assim, a pagar o devido, assim como não o fez posteriormente. Pareceriam assim de forma fácil e simples integrados todos os elementos objectivos e subjectivos do ilícito penal em apreço.

No entanto, a questão assume contornos mais complexos quando se confronta a disposição de índole penal referida com o regime constante do Decreto-Lei n.º 108/1978, de 24 de Maio, em vigor à data da prática dos factos (ainda que já não na actualidade, conforme mais adiante se analisará). De facto tal diploma legal, ainda que anterior ao Código Penal de 1982, visou estabelecer normas relativas ao sistema de cobrança nos transportes colectivos de passageiros, de forma a garantir, entre o mais, o respeito da obrigação legal de pagar o preço do transporte, estabelecendo o sancionamento com o pagamento de multas (cfr. o respectivo preâmbulo).

Com efeito, estabelecia o respectivo artigo 2º, n.º 1, que “A utilização de transportes colectivos de passageiros só pode ser feita por quem tenha um título de transporte válido”, rezando o subsequente...

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