Acórdão nº 185/20.0GAMTR.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 10 de Outubro de 2022
Magistrado Responsável | FÁTIMA SANCHES |
Data da Resolução | 10 de Outubro de 2022 |
Emissor | Tribunal da Relação de Guimarães |
Acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães: I. RELATÓRIO 1.
No processo comum singular, com o NUIPC185/20.0GAMTR, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, no Juízo de Competência Genérica de Montalegre, foi proferida sentença, em 08-02-2022, com o seguinte dispositivo (transcrição): «Em face do exposto, decido: a) Condenar a arguida R. M. pela prática, em autoria material, de um crime de coação, p. e p. pelo artigo 154.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros), o que totaliza a quantia de € 700,00 (setecentos euros); a) Condenar a arguida no pagamento das custas processuais criminais, fixando-se em 2 (duas) UC’s a taxa de justiça inicial.» 2.
Inconformada com a decisão, interpôs recurso a arguida R. M., rematando as suas alegações com as seguintes conclusões e petitório (transcrição): «1ª- O Tribunal a quo, qualificou erradamente os factos praticados pela arguida, ao considerar que a conduta desta integra o crime de coação, previsto e punido no nº1 do Art. 154º do Código Penal.
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- A ponderação, análise crítica dos factos, à luz do direito penal positivo, impunham uma qualificação jurídica diferente da que alcançou o Tribunal recorrido e a consequente absolvição da arguida. O facto praticado pela arguida não corporiza qualquer crime tipificado na lei penal portuguesa, nomeadamente o previsto no Art. 154º do Código Penal.
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- O facto praticado pela arguida recorrente – disse para a ofendida «cala-te senão levas duas bofetadas no focinho que nem te vejo», e ao mesmo tempo que ergueu no ar a mão direita, imediatamente depois de a ofendida sua sobrinha, se ter intrometido num diálogo que a recorrente mantinha com terceira pessoa (a A. M., também sua sobrinha), não consubstancia o tipo legal de crime previsto no nº1 do Artigo 154º do Código Penal – Coação, ou qualquer outro ilícito.
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- No contexto em que foi proferida é uma afirmação inócua, à luz do direito penal positivo, não se integra em qualquer dispositivo legal do ordenamento jurídico português.
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- O normativo do Art. 154º do C. Penal pressupõe a perda de liberdade de determinação, o constrangimento, em consequência de violência ilegítima, física ou moral. O crime de coação consuma-se no momento em que alguém é violentado a fazer, a omitir ou a suportar o que não quer.
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- É elemento típico do crime de coação o emprego de violência ou ameaça com um mal importante. Exige-se que a força física ou a pressão moral tenham “potencialidade causal para compelir a pessoa à prática do ato ou à omissão ou a suportar a atividade.” 7ª.- A ameaça de um mal importante inclui necessariamente uma “ameaça grave”, isto é a ameaça com a prática de um crime punível com pena de prisão superior a 3 anos (Acórdãos do STJ de 20.02.1997, e de 5.04.2000, e do TRP de 21.9.2011).
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- O desferir de duas bofetadas na cara de um adulto integraria o crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo Art. 143º do Código Penal, cuja moldura penal tem como limite máximo os 3 anos de prisão.
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- O que a ofendida E. M. diz na participação de fols. 6 e na acusação se relata, confirmado no despacho de pronúncia, no circunstancialismo concreto nelas descrito, a conduta que atribuem à arguida não tem potencialidade para constranger e afetar a liberdade de determinação da ofendida. A ofendida não deixou de fazer algo e também não foi forçada a fazer ou a tolerar algo contra a sua vontade.
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- Nada foi dito ou feito pela arguida idóneo a causar intimidação, a provocar privação da liberdade de determinação à ofendida. Resulta da própria versão da ofendida, que esta seguiu o seu caminho, na companhia da mãe e irmã S., sem qualquer receio.
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- A acusação, a pronúncia e os factos julgados provados na sentença recorrida, não contém qualquer facto, praticado pela arguida, que represente para a ofendida um mal importante e seja idóneo a causar constrangimento.
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- A conduta da arguida descrita nos factos provados da sentença recorrida não é ilícita porque não se enquadra em nenhum tipo legal de crime definido e previsto no ordenamento jurídico-criminal português.
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- Dispõe o Art. 1º do Código Penal que “Só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática.” Este princípio da legalidade criminal está consagrado na Constituição da República, no nº1 do Art. 29º, que diz: «Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.».
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- Por força deste princípio da legalidade, nenhum magistrado pode infligir penas a um cidadão com fundamento em facto que não esteja tipificado, definido e qualificado como crime.
Perante os factos provados, ao condenar a arguida pela prática do crime de coação, o Tribunal recorrido violou o princípio constitucional da legalidade, previsto no Art. 29º, nº1 da Constituição da República.
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- O Tribunal recorrido errou na qualificação jurídica do facto praticado pela arguida recorrente, violou o princípio da legalidade ao condenar a arguida por prática de facto que não está tipificado como crime.
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- Ao condenar a recorrente o Tribunal a quo violou, além das normas suprarreferidas, também os Art. 410º nº 1 do C. P. Penal, e os Art.s 1º e 154º do Código Penal e o Art. 29º, nº1 da Constituição da República. 212º, do C. Penal.
Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, proferindo-se douto acórdão que revogue a decisão recorrida e absolva a recorrente do crime de coação, tudo em conformidade com as conclusões supra alegadas.» 3.
Ao recurso interposto pela arguida respondeu o Ministério Público, sintetizando a sua posição nas seguintes conclusões (transcrição): «1. A Recorrente, inconformada com a sentença proferida pelo Tribunal a quo, dela interpôs recurso, invocando, em síntese, que a ponderação e análise critica dos factos impunha qualificação jurídica diferente da que alcançou o Tribunal recorrido e a consequente absolvição da arguida, já que a conduta levada a cabo pela mesma não corporiza qualquer crime tipificado na lei penal, nem tampouco o crime de coacção, previsto e punido pelo artigo 154.º, do Código Penal.
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Ora, da leitura do citado artigo 154.º, n.º 1, do Código Penal, resulta que os elementos objectivos do tipo da coacção consistem em constranger outra pessoa a adoptar um determinado comportamento, seja a praticar uma acção, a omitir determinada acção ou a suportar uma acção.
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Os meios de coacção são, pois, a violência ou a ameaça, sendo que a ameaça enquanto meio do crime de coacção tem que ter por objecto um mal importante.
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De harmonia com a doutrina e jurisprudência dominantes, o mal importante tanto pode ser ilícito como não ilícito e a ameaça tem de ser adequada a constranger o ameaçado de modo a prejudicar a sua liberdade de determinação (vide, na doutrina, Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal – Tomo I, Cimbra Editora, 2012, e, na jurisprudência, Ac. TRE de 25-10-2016, R. Maria Leonor Botelho, Ac. TRP de 27-11-2013, R. Maria Dolores da Silva e Sousa ou Ac. TRG de 04-05-2009, R. Carlos Barreira).
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Numa palavra, a ameaça com mal importante é aquela que é idónea a perturbar um homem sensato na sua liberdade de decisão, independentemente de se traduzir na ameaça da prática de crime.
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No caso dos autos, resultou provado que a arguida “voltou-se para aquela E. M. e, em voz alta, na presença de todos os que ali se encontravam e com foros de seriedade, disse para a mesma: «cala-te senão levas duas bofetadas no focinho que nem te vejo»” e que, reforçando aquilo que vinha de dizer, ao mesmo tempo, “ergueu no ar a sua mão direita, com a palmada da mão aberta, inculcando naquela E. M. e nas demais pessoas ali presentes a perceção de que, caso aquela dissesse mais alguma palavra, a arguida lhe desferiria efectivamente duas bofetadas.” 7. A conduta da arguida, designadamente, as palavras que proferiu conjugadas com o gesto que as acompanhou, traduz inequivocamente a intenção de provocar medo e receio na ofendida e é objectivamente adequada a constrangê-la a permanecer calada, como efectivamente sucedeu.
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Com efeito, revisitando sumariamente os elementos do tipo acima descritos, verificamos que, de facto, a arguida constrangeu a ofendida, por meio de ameaça com mal importante – o de lhe desferir duas bofetadas –, obrigando-a a adoptar um comportamento omissivo – o acto de não mais falar.
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Assim, a apreciação conjunta dos factos trazidos a julgamento e a prova sobre eles produzida não permite outra conclusão senão a de que se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo do crime de coacção, p. e p. pelo artigo 154.º, n.º 1, do Código Penal, e que, nessa conformidade, não foi violada qualquer norma legal.
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A sentença recorrida não merece qualquer reparo ou cesura, tendo apreciado e qualificado correctamente a factualidade que resultou demonstrada pela prova produzida em julgamento, de tal modo que deve manter-se inalterada.» 4.
Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-geral Adjunto, emitiu parecer, concluindo da seguinte forma (transcrição): «Ora, no nosso modesto entendimento, afigura-se-nos que a conduta da arguida não preenche a tipicidade do crime de coação.
Desde logo, constata-se que, à data dos factos, a arguida tinha 63 anos de idade e a ofendida 20 anos, pelo que dificilmente se concebe que as características físicas da recorrente fossem de molde a conduzir ao constrangimento pretendido. E, ainda que o fossem, sempre seria de concluir que a vítima possuía competências técnicas para resistir à hipotética violência, quer pela sua própria estrutura física, quer por ali se encontrarem outros familiares seus que a poderiam socorrer, em caso de necessidade.
Por outro lado, não se alcança que tenha sido proferida qualquer ameaça de um mal futuro. Pelo...
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