Acórdão nº 99/20.3T8CMN.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 07 de Outubro de 2021

Magistrado ResponsávelJOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Data da Resolução07 de Outubro de 2021
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam os Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães Relatório M. L., residente na Rua …, n.º …, …, requereu inventário facultativo junto do Cartório Notarial de Dr. B. C., sito em …, por óbito de sua mãe, E. F., falecida em -/012019, com última residência sita na Rua ..., n.º .., Caminha, indicando para o cargo de cabeça de casal o seu irmão, J. C., residente na Rua ..., n.º … Caminha.

Tomou-se compromisso e declarações ao cabeça de casal J. C., em 09/07/2019.

Em 21/11/2019, o cabeça de casal J. C. apresentou relação de bens em que relaciona duas frações autónomas (verbas n.ºs um e dois) e um “estabelecimento comercial instalado no rés-do-chão do prédio urbano sito na Rua ..., em Caminha, composto pelos bens constantes do inventário adrede junto”, que relaciona como verba n.º 3.

Entretanto, a inventariante e o cabeça de casal requereram, em 20/02/2020, ao abrigo do n.º 3 do art. 12º da Lei n.º 117/2019, de 13/09, a remessa dos presentes autos de inventário à Comarca de Viana do Castelo, Juízo de Competência Genérica de Caminha.

Por despacho proferido pela Senhora notária em 09/03/2020, deferiu-se ao requerido e remeteu-se o presente processo de inventário ao Juízo de Competência Genérica de Caminha.

Notificada a inventariante para, no prazo de trinta dias, reclamar, querendo, contra a relação de bens apresentada pela cabeça de casal, esta, por requerimento entrado em juízo em 02/07/2020, reclamou dessa relação, requerendo a eliminação da verba n.º 3, alegando, em síntese, não aceitar “o relacionamento do estabelecimento como verba autónoma e, como tal, passível de objeto de licitação, ou de preenchimento, de forma autónoma à verba n.º1”, porquanto o estabelecimento em causa encontra-se instalado no rés-do-chão do prédio relacionado sob a verba n.º1, pelo que caso seja objeto de relacionamento e licitação autónomas, tal irá implicar que se constitua um direito real de uso sobre esse rés-do-chão, o que levará à desvalorização do prédio.

Mais argumenta que “o dito estabelecimento sempre foi explorado pela inventariada e seu falecido marido como parte integrante do prédio onde se encontra instalado”, tendo sido adquirido pela inventariada por óbito de seus pais e “não goza de valor económico relevante, como resulta do que consta do inventário adrede junto à relação de bens, não tendo dignidade necessária à sua discriminação como verba autónoma, ou da sua licitação autónoma do prédio onde se encontra instalado”, uma vez que “há muito que não tem movimento económico relevante, sendo despiciendo e até ridículo o vertido em sede de IRS ao longo dos últimos anos”.

O cabeça de casal opôs-se à reclamação apresentada, sustentando que sendo o estabelecimento comercial uma unidade jurídica, este tem de ser objeto de relacionamento e licitação autónomas no âmbito do processo de inventário.

Por decisão proferida em 16/12/2020, a 1ª Instância julgou a reclamação apresentada improcedente, constando essa decisão do seguinte: M. L., interessada e inventariante, deduziu reclamação quanto à relação de bens, ao abrigo do disposto no art.º 1104º do CPC, por pretender ver reconhecida a sua pretensão de não ser admitida a licitação em separado da verba 3 correspondente ao estabelecimento comercial instalado no rés-do-chão da verba nº 1, essencialmente, por a requerida se opor à constituição do direito real de gozo que dessa licitação ou adjudicação emergiria, no caso de o licitante ou adjudicante não ser a mesmo a licitar a verba nº 1, situação que conduziria à desvalorização do imóvel aí descrito (neste sentido e entre outros, Acórdão do STJ de 16/03/2017, 7º secção, processo nº 185/12.3TBSBR.G1.S1- www.dgsi.pt, Acórdão STJ de 12.12.2013, Processo nº1355/11, Sumários, 2013, p 787).

O cabeça de casal, J. C., respondeu a esta reclamação, alegando, em súmula, que como consta da verba 3 da relação de bens apresentada, existe um estabelecimento comercial instalado no rés-do-chão do prédio urbano sito na Rua ... em Caminha, correspondente à verba 1 da relação de bens, composto pelos bens constantes do inventário adrede junto. Atendendo a que o estabelecimento comercial é uma realidade que envolve um conceito normativo, cuja identidade se revela através da funcionalidade económica e destino comercial, ou outro fim empresarial lícito como objeto negocial de livre circulabilidade como individualidade de direito, e diferente da soma atomística das partes dos seus valores componentes. É uma unidade jurídica objetiva, suscetível de admitir a existência de um direito autónomo. Razão pela qual pode e deve ser objeto de licitação, como verba autónoma e separada da verba onde o mesmo se encontra instalado. Termos em que devem as verbas relacionadas ser licitadas de forma individual.

Nos termos previstos no art.º 1105 nº 3 do CPC, uma vez que estamos perante uma questão meramente jurídica, cumpre, desde já, decidir.

O inventário divisório (como este é) tem por finalidade não, apenas, relacionar, avaliar e descrever os bens a partilhar como, também, determinar o modo como esses bens devem ser partilhados.

Compete ao cabeça de casal relacionar todos os bens que hão-de figurar no inventário - artigo 1097º nº 3, alínea c), do Código de Processo Civil.

O artigo 1098º, n. 2 do mesmo Código estabelece que os bens que integram a herança são especificados na relação por meio de verbas, sujeitas a uma só numeração, pela ordem seguinte: direitos de crédito, títulos de crédito, valores mobiliários e demais instrumentos financeiros, participações sociais, dinheiro, moedas estrangeiras, objetos de ouro, prata e pedras preciosas e semelhantes, outras coisas móveis e, por fim, bens imóveis.

O estabelecimento comercial é uma universalidade ou unidade jurídica. Na universalidade depara-se-nos um complexo de coisas pertencentes ao mesmo sujeito e tendentes ao mesmo fim, que a ordem jurídica reconhece e trata como formando uma coisa só (Castro Mendes Dir. Civil, Teoria Geral 1979, II-222, nota 2).

Com efeito, o estabelecimento comercial, no seu sentido amplo, é geralmente entendido como uma organização versando sobre um conjunto unificado de elementos corpóreos e incorpóreos, de direito e de facto, mas que no conjunto forma uma universalidade de direito, objeto de direitos e relações jurídicas distintos dos que incidem sobre os respetivos componentes, individualmente considerados (PUPO CORREIA, in Direito Comercial, 10ª ed, pág. 50 e segs; e FERRER CORRREIA, in Lições de Direito Comercial, 1973, vol. I pag 201 e segs).

Existem universalidades de facto, a que alude o artigo 206º do Código Civil e universalidades de direito. Na universalidade de facto, a pluralidade de coisas que a compõem, pertencem à mesma pessoa e têm um destino unitário. Contudo - n. 2 do artigo 206º - as coisas singulares que formam a universalidade, podem ser objeto de relações jurídicas próprias.

Quer dizer, existe, na universalidade, um conjunto de coisas simples que tem uma individualidade económica própria, mas, por outro lado, aquelas coisas que integram o conjunto têm, também, uma individualidade económica, um valor próprio no comércio, independente da agregação em que se encontram.

O estabelecimento comercial deve ser relacionado, havendo um inventário, pois que, em si, ele constitui uma coisa diferente da pluralidade de coisas que daquela fazem parte.

O somatório do valor de cada coisa que compõe uma universalidade não é igual ao valor da universalidade em si, valor este que, quase sempre, é muito superior àquele somatório, podendo, em nossa opinião, o estabelecimento comercial como um todo unitário ser objeto de direito de propriedade, com o complexo de bens que o componham.

Por outro lado, é uma unidade jurídica objetiva, suscetível de admitir a existência de um direito autónomo. Razão pela qual pode e deve ser objeto de licitação, como verba autónoma e separada da verba (imóvel) onde o mesmo se encontra instalado.

Assim sendo, não se verificando acordo entre os interessados quanto à descrição conjunta da verba correspondente ao imóvel e à que respeita ao estabelecimento comercial, entendo que devem constituir verbas autónomas e como tal manter-se relacionadas, cabendo eventualmente aos interessados definir a situação que respeita à utilização do imóvel, caso a titularidade do direito de propriedade não se venha a consolidar, em relação às duas verbas, na esfera jurídica do mesmo titular.

Pelo exposto, julgo improcedente a reclamação apresentada, quanto à relação de bens.

Inconformada com o assim decidido, a inventariante e reclamante M. B. interpôs o presente recurso de apelação, em que formula as seguintes conclusões: 1 - O direito de uso só pode constituir-se nos termos do disposto no art.º 1485º do Código Civil.

2 - Nos presentes autos de inventário o estabelecimento autonomizado sob a verba nº 3, está instalado no prédio que enforma a verba nº 1, prédio esse que integra como verba nº 1 o acervo dos bens a partilhar.

3 - Esse estabelecimento existiu e existe como uma exploração familiar, ocupando parte da casa de morada do extinto casal da inventariada.

4 - Opondo-se a Recorrente / Interessada á licitação em separado das verbas 1 e 3 - imóvel e estabelecimento comercial, respetivamente - não pode o estabelecimento ser alvo de licitação autónoma, por daí poder resultar diretamente dessa licitação, ou do preenchimento do quinhão do não licitante, um ónus real emergente do direito de uso que assim se constituiria por imposição judicial, contra a vontade expressa da Recorrente.

5 - Mesmo que se lançasse mão da avaliação das verbas correspondentes ao imóvel e ao estabelecimento, tendo em conta o direito de uso, como se poderia quantificar o seu valor atendendo á incerteza do tempo em que o mesmo se manteria até á morte ou renúncia do usuário.

6 - A possibilitar-se a licitação autónoma da verba correspondente ao estabelecimento e a consequente possibilidade da cisão de titularidade entre imóvel e estabelecimento comercial, estaríamos em face de um claro...

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