Acórdão nº 75/21.9GAVVD.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 06 de Dezembro de 2021

Magistrado ResponsávelMARIA TERESA COIMBRA
Data da Resolução06 de Dezembro de 2021
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I.

No processo especial sumário que, com o nº 75/21.9GAVVD, corre termos no juízo local criminal de Vila Verde foi decidido, além do mais (transcrição): (…) Absolver o arguido A. R. da prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348º, nº 1, al. a) e do Código Penal com referência aos artigos 7º da Lei 44/86 de 30.09 (Regime do Estado de Sítio e Estado de Emergência), 1º, 2º, 3º, 4º, nº 1 alínea a) e 6º, nº 1 do Decreto do Presidente da República nº 25-A/2021 de 11 de março, 2º, 4º e 50º, nº 1 alínea d) do Decreto nº 4/2021 de 13.03.

*Inconformado com a absolvição recorreu o Ministério Público para este Tribunal da Relação apresentando no final da motivação as seguintes conclusões (transcrição): 1.ª) O presente recurso circunscreve-se à decisão de absolvição do arguido da prática do crime de desobediência por violação do dever geral de recolhimento domiciliário imposto por força da declaração do estado de emergência e respectivas medidas de execução.

  1. ) O Tribunal a quo deu como provado, para o que ora releva, o seguinte: “1. No dia 11 de março de 2021, através do Decreto do Presidente da República n.º 25-A/2021, de 11/3, veio a ser prorrogado em território nacional – por motivos de saúde pública decorrentes da situação de calamidade pública causada pelo agente Coronavírus SARS-Cov-2 e COVID19 – o estado de emergência, pelo período de 15 dias, com início às 00h00 do dia 17 de março de 2021 e termo às 23h59 do dia 31 de março de 2021.

    1. Nessa sequência, pelo Decreto n.º 4/2021, de 13 de março, foi imposta a todos os cidadãos a obrigação de cumprimento de um dever geral de recolhimento domiciliário, designadamente através da proibição de circulação na via pública no referido período.

    2. No dia - de março de 2021, pelas 17h55, o arguido tripulou na via pública, designadamente na Rua ..., em ..., concelho de Vila Verde, o ciclomotor, de marca Famel, matrícula IT, sendo portador de uma taxa de álcool no sangue de pelo menos 3,097 g/l [correspondente à taxa apurada de 3,26 g/l deduzida do valor do erro máximo admissível].

    3. Tal taxa de álcool no sangue resultou da ingestão voluntária de bebidas alcoólicas por parte do arguido.

    4. Quando decidiu tripular o ciclomotor, o arguido sabia estar sob o efeito do álcool e que a taxa de álcool no sangue que o afetava era igual ou superior a 1,20 g/l.

    5. Indiferente, porém, a tal situação, não se coibiu de tripular o ciclomotor nas circunstâncias acima descritas, sabendo não o poder fazer.

    6. Acresceque, nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido também não se encontrava legitimado a circular na via pública, por não integrar nenhuma das exceções previstas em 3), violando, dessa forma, o dever de recolhimento domiciliário a que estava obrigado.

    7. Sabia o arguido que, nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, vigorava o dever de recolhimento domiciliário e a proibição de circulação na via pública nos moldes supra descritos e que não existia qualquer motivo justificativo que o excecionasse de tais obrigações.

    8. O arguido deslocou-se a casa dos falecidos pais, onde ninguém reside, percorrendo uma distância de cerca de um quilómetro, para colocar umas cortinas que tinha lavado, após realizar obras de reabilitação do imóvel.

    9. Agiu o arguido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.” 3.ª) Considerou, contudo, o Tribunal a quo que: “O Decreto do Presidente da República n.º 25-A/2021, de 11-3 tem prevista a prática de um crime de desobediência no seu artigo 6.º, dizendo que a violação do disposto na declaração do estado de emergência faz incorrer os respetivos autores em crime de desobediência.

    O Decreto do Governo n.º 4/2021, de 13-3 não tem prevista a prática do crime de desobediência. Antes pelo contrário, resulta do disposto no artigo 50.º n.º 1 d) do Decreto n.º 4/2021, de 13-3 a necessidade de cominação com a prática de tal crime, pelas forças de segurança, a quem viole o disposto no artigo 4.º do mesmo diploma legal. Foi exatamente o que sucedeu no caso dos autos, o arguido ausentou-se do seu domicílio, sem que tal ausência se enquadre nas exceções legalmente previstas, contudo, não foi advertido de que incorria na prática de um crime de desobediência.

    Assim, uma vez que entendemos que não é sustentável que haja uma cominação com o crime de desobediência para a conduta do arguido, com base no artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 44/86, de 30-9, impõe-se a absolvição do arguido da prática deste crime.

    Poder-se-ia dizer que a Resolução da Assembleia da República, que autorizou a declaração do estado de emergência por parte do Presidente da República, continha a necessária habilitação para a referida criminalização de condutas.

    Contudo, cremos que tal resolução, a Resolução da Assembleia da República n.º 77-B/2021, de 11 de março, apenas previu, ao abrigo do artigo 161.º, n.º 1 e do artigo 166.º, n.º 5, da CRP e do artigo 15.º, n.º 1 do RESEE, aquela mesma autorização. […] Estamos em crer que nunca esteve previsto, em Lei ou Decreto do Governo devidamente autorizado o crime de desobediência que se pretende imputar ao arguido, pois seria sempre necessária a prévia cominação da autoridade policial cometente, conforme previsto do Decreto do Governo n.º 4/2021, no seu artigo 50.º n.º 1 d). A defender-se o entendimento da acusação todo e qualquer incumprimento a cada uma das normas aí previstas faria incorrer os seus autores em crime de desobediência, seria uma punição genérica.

    Em suma, impõe-se concluir pela inconstitucionalidade orgânica das normas supra referidas e que definem matéria criminal, razão pela qual não pode, pois, o arguido, ser condenada pela sua prática.” 4.ª) Contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo, entendemos que o crime de desobediência, com fundamento nas normas contidas no Decreto do Presidente da República n.º 25-A/2021, de 11 de março (renovação do estado de emergência aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 77-B/2021, de 11 de março), no Decreto do Governo n.º 4/2021, de 13 de março, e no Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência, não padece de qualquer inconstitucionalidade.

  2. ) Neste particular, acompanhamos o entendimento sufragado por André Lamas Leite, Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto e da Universidade Lusíada Norte (Porto), no artigo “Desobediência em tempos de cólera”, publicado na Revista do Ministério Público, Número Especial Covid: 2020, que parcialmente se transcreve: […] As situações de anormalidade ou estado de necessidade constitucionais admitem, no nosso país, duas configurações: estado de sítio e estado de emergência, aos quais, para além dos preceitos da CRP, se aplicam a Lei n.º 44/86, de 30 de Setembro (doravante, RESEE), a qual regulamenta tais estados em que existe sempre limitação de direitos fundamentais (cf. os seus artigos 1.º, 8.º e 9.º), apenas admissível em dimensão colectiva e nunca individual […]. Importa, agora, focar a nossa atenção, aproximando-nos do objecto de estudo a que nos propusemos, na análise do artigo 7.º do RESEE, o qual prevê que «[a] violação do disposto na declaração do estado de sítio ou do estado de emergência ou na presente lei, nomeadamente quanto à execução daquela, faz incorrer os respectivos autores em crime de desobediência». […] não será apenas e tão-só, como parece resultar à primeira vista de uma mera interpretação enunciativa do artigo 7.º do RESEE, a violação do constante no decreto do PR que configurará a prática do crime de desobediência, mas todo o conjunto normativo sem o qual tal decreto não tem efectividade prática. […]. Na verdade, cabendo ao Governo a execução do referido decreto (artigo 17.º do RESEE), apenas em conjunto, como acto legislativo complexo ou bifronte, se insufla de sentido a declaração do estado de anormalidade constitucional. Donde, os comportamentos exigidos ou vedados no decreto governamental integram o conjunto normativo sem o qual o estado de emergência não se efectiva, o que importa que esse mesmo diploma do Executivo encontra cobertura constitucional, em especial no tangente ao princípio da reserva de lei do artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da CRP, para que não restem dúvidas de constitucionalidade orgânica e formal quanto à previsão normativa nele do delito de desobediência. […] […]no que aos estados de excepção constitucional tange, a única disposição da norma normarum relativa ao Governo é a do artigo 197.º, n.º 1, alínea f ), quanto à sua pronúncia no processo legislativo em causa. Não restando outra qualquer disposição expressa em sede de competências do Executivo, é natural que tenha sido usada a norma que prevê uma competência residual. Mais, o facto de se tratar de uma “função administrativa” em nada bole com o princípio da reserva de lei, porquanto, como já procurámos explicar no enquadramento jusconstitucional, a declaração do estado de emergência é um acto legislativo complexo do qual fazem parte, desde logo, o artigo 19.º da CRP, as demais normas em sede procedimental e de fiscalização política e judicial, mas também o artigo 7.º do RESEE que, como interpretámos, tem uma eficácia externa – ao invés dos iniciais “crimes de responsabilidade” –, assim se configurando como norma habilitante para a aplicação de um único tipo legal de crime, que é exactamente a desobediência. E veja-se que não usámos propositadamente a expressão “criação” de um tipo legal, porquanto esta só é possível, por via da reserva de lei do artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da CRP, através de lei da AR ou de decreto-lei autorizado. Ora, e então o que é o RESEE se não uma lei orgânica, ainda por cima de valor reforçado, como sublinhado supra? Por outras palavras, a punição por desobediência nos decretos executivos do estado de emergência nem sequer se pode dizer, em nossa perspectiva, que apenas seja dotada de legitimidade de segundo grau...

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