Acórdão nº 4165/18.7T8VCT.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 22 de Outubro de 2020

Magistrado ResponsávelANIZABEL PEREIRA
Data da Resolução22 de Outubro de 2020
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO J. J. e mulher O. C., M. C. E OUTROS E HERANÇA ILÍQUIDA E INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE M. F.

, instauraram a presente acção declarativa, com processo comum, contra A. B. e mulher R. P., A. D. e mulher R. B., M. E. e marido T. L. E HERANÇA ILÍQUIDA E INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE M. V., todos melhor identificados nos autos, peticionando, a final, que se lhe reconheça o seu direito de propriedade sobre as parcelas de terreno, melhor identificadas nos art.ºs 11º, 18º e 28º da petição, todas elas a destacar do prédio identificado no art.º 1º da petição inicial.

Alegam, em síntese, que Autores e Réus são donos e legítimos possuidores, em comum, do prédio rústico melhor identificado no art.º 1º da petição inicial, o qual foi dividido entre os respectivos antecessores, em onze parcelas de terreno perfeitamente autónomas e distintas entre si que cada um passou a possuir e usufruir com exclusão de outrem, há mais de 5, 10, 20 e 30 anos. Mais, alegam que a parcela detida pelos primeiros Autores corresponde a 42/600 do prédio mãe, as parcelas detidas pelos segundos Autores correspondem a 136/600 partes do prédio mãe e as parcelas detidas pela terceira Autora correspondem a 82/600 partes do mesmo prédio.

*Regularmente citados todos os Réus, apenas deduziram contestação os Réus M. E. e marido T. L..

Deduziram, ainda, reconvenção, peticionando, a final, que se lhes reconheça o seu direito de propriedade sobre a parcela identificada, com fundamento nos factos atinentes à usucapião, a destacar do prédio rústico melhor identificado na petição inicial.

Assim, os Réus confessaram os factos alegados pelos Autores para o reconhecimento do seu direito de propriedade, por usucapião.

Por seu turno, os Autores não deduziram réplica à reconvenção deduzida pelos Autores, considerando-se confessados os respectivos factos, nos termos do disposto no art.º 567º, nº 1 do CPC.

*Foi dispensada a audiência prévia e proferido saneador-sentença, decidiu-se nos seguintes termos: “julgo a acção e reconvenção totalmente improcedentes, e em consequência, absolvo todos os Réus do pedido e os Autores do pedido reconvencional.

Custas da acção pelos Autores.

Custas da reconvenção pelos Réus/Reconvintes.

Registe e Notifique. ” *É desta decisão que vem interposto recurso pelos AA, os quais terminam o seu recurso formulando as seguintes conclusões: 1ª-Salvo o devido respeito, que é muito, entendem os AA/Recorrentes que o Tribunal “a quo”, não atendeu nem valorou devidamente todos os elementos de prova constantes dos autos, na elaboração da douta decisão constante do saneador sentença, pelo que não podem conformar-se com a mesma.

  1. - Foram os AA./Recorrentes a final surpreendidos, por uma decisão surpresa, e sem que sob a intenção do Tribunal, pudessem em tempo útil exercer o contraditório.

  2. - Efectivamente na situação dos autos, estamos perante uma decisão-surpresa, uma vez que a sentença foi proferida sem que às partes, in casu, aos AA./ Recorrentes, tivesse sido dada oportunidade de indagar sobre os factos e a sua integração ao direito antes da decisão, sendo certo que o tribunal a quo errou na apreciação dos factos e da prova existente no processo, o que a torna nula, por violação do princípio do contraditório, princípio que deverá sempre ser garantido ao longo do processo – artigo 3.º, n.º 3 do CPC.

  3. - Ao conhecer de questão que não lhe havia sido colocada, sem previamente conceder às partes o direito ao contraditório (de facto e de direito), dado tal omissão influenciar no exame e decisão da causa, cometeu o tribunal a quo uma nulidade – 195º, n.º 1 do C.P.C – que para os devidos e legais efeitos se invoca.

  4. - A data a considerar para efeitos de entrada na posse, é que decorre da escritura pública de doação, outorgada em 28 de Março de 1978 exarada a fls. 6 verso a 12 verso, do livro de notas para escrituras diversas nº 92 da Secretaria Notarial de … (cfr. doc. B junto com a petição inicial aperfeiçoada e certidão da CRP de …).

  5. - Ou pelo menos, que a divisão se fez, em 1988, conforme decorre dos factos provados sob a alínea n), dos factos provados: “n) Há mais de 5, 10, 20 e 30 anos que cada um dos Autores e cada um dos Réus têm estado na posse das respectivas parcelas de terreno que detém, lavrando-as, semeando-as, colhendo os respectivos frutos, actos que praticam à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja e na convicção de que exercem todos os correspondentes direitos de propriedade e no convencimento de que não prejudicam ninguém.” 7ª- Pelo que a data de início da posse ( seja 1978 ou na pior da hipóteses 1988), correspondem ao momento relevante para aferir do respeito pelo regime legal imperativo.

  6. - Para afastar o argumento de que, a entender-se que o fraccionamento violou a regra do art.º 1376.º, n.º1 do Código Civil, cuja consequência é a nulidade, importa dizer e salientar que: i) A alteração legal ao art.º 1379º, nº 1 do Código Civil, efectuada pela Lei n.º 111/2015, de 27/08, não pode ser de aplicação para o passado (art.º 12.º, n.º2 do Código Civil); ii) A Lei n.º 111/2015, de 27/08 não tem carácter interpretativo, nos termos do disposto no art.º 13.º do Código Civil; iii) O carácter interpretativo não decorre do facto de a lei nova manter um regime de invalidade, quando a invalidade é de tipo diferente.

  7. -À luz da lei vigente em 1988, o fraccionamento não seria nulo, quando muito anulável, pelo que esse regime devia ser aplicável, e não o do disposto no nº 2 do Artigo 48º da Lei 89/2019 de 3 de Setembro.

  8. - Invocada a usucapião, como forma de aquisição, justamente porque de aquisição originária se trata, irrelevam quaisquer irregularidades precedentes e eventualmente atinentes à alienação ou transferência da coisa para o novo titular, sejam os vícios de natureza formal ou substancial.

  9. - Ao contrário do defendido na douta sentença ora em crise, os Tribunais devem casuisticamente e não aprioristicamente, apreciar a validade dos actos de divisão e de fracionamento da propriedade rústica.

  10. - A natureza da posse exercida pelos AA./Recorrentes e da usucapião na estabilização e consolidação da posse no âmbito do direito real de propriedade, conduzindo à conclusão de que o AA./Recorrentes, adquiriram originariamente, por usucapião, o direito de propriedade sobre cada um dos referidos prédios descritos na petição inicial, na data do início da posse.

  11. - Considerando a natureza da posse exercida pelos AA./Recorrentes, e sendo a usucapião um instituto do direito privado com enorme relevância jurídica na estabilização e consolidação de situações baseadas numa posse digna de relevância no âmbito do direito real de propriedade e atendendo a que a proteção da segurança e a da confiança na atuação dos possuidores é inerente a um direito que, nascendo “ex novo”, sobrepuja e desconsidera atuações, ainda que ilícitas, que não afetam retroativamente a posse relevante e boa para a usucapião, concluindo-se assim que os AA./Recorrentes adquiriram o direito de propriedade originariamente pela via da usucapião.” 14ª- No caso em apreço, não estando em questão a situação em que a posse das parcelas em causa é mantida pelos AA./Recorrentes, pelo menos desde o ano de 1988, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, deve facultar-lhes, a possibilidade do exercício do direito que corresponde a sua atuação, por via do instituto da usucapião, que prevalece sobre o fracionamento ilegal do prédio, que não constitui, só por si, fundamento para obstar à aquisição originária do correspondente direito de propriedade.

  12. - Acresce, que essa constituição “ex novo” do direito de propriedade, por efeito da usucapião, configura o reconhecimento da estabilidade de uma situação jurídica duradoura, em que os beneficiários legitimamente confiaram, por ser tutelada pelo direito, e cuja afetação, por aplicação de regras de fundamento economicista, seria injustamente penosa para os beneficiários, os ora AA./Recorrentes.

  13. - Nessa conformidade, entende-se não merecer adesão a solução adotada pelo Tribunal “a quo”, no sentido de recusar a prevalência das regras relativas ao fracionamento rural, ou seja, dos prédios com área inferior à área de cultura, fixada para o Alto Minho, sobre o instituto da usucapião.

  14. - Desde logo, porque, como já ensinava Manuel de Andrade, «o princípio de que a nulidade absoluta pode, por via de ação, ser invocada a todo o tempo, não prevalece sobre a doutrina da prescrição aquisitiva, 18ª- Atentas as datas da entrada na posse supra mencionadas, a doutrina da prescrição aquisitiva mencionada na conclusão anterior, bem como a data da entrada da petição inicial em juízo, não pode nem deve de todo ser aplicada o disposto no Art. 1376º do Código Civil e 48º nº 2 na redação da Lei 89/2019 de 3 de Setembro, de forma imediata e rectroactiva.

  15. - Decidindo, como decidiu, a douta sentença recorrida fez errada apreciação da prova e violou, designadamente o disposto nos arts. 294º, 1287º., 1288º, 1317º c), 1376º. do Código Civil e ainda o art. 48º, nº 2 da Lei 89/2019, de 03/09, assim como o disposto nos Artigos 3º nº 3, 195º Nº 1 do C.P.C.

Pelo que, a sentença deverá ser revogada, por douto acórdão e conformidade com o supra exposto, no sentido de serem julgados totalmente procedentes os pedidos formulados pelos Autores/Recorrentes, tudo com as legais consequências.

*Os RR não apresentaram contra-alegações.

*Cumpre apreciar e decidir.

*II - Delimitação do objeto do recurso As questões a decidir no presente recurso, em função das conclusões recursivas e segundo a sua sequência lógica, são as seguintes: i) - Da violação ou não do princípio do contraditório; ii. Da reapreciação da matéria de direito: No caso em apreço, o recurso prende-se exclusivamente com uma questão de direito, a qual consiste em saber se a usucapião opera e produz efeitos em detrimento de normas que proíbem o fracionamento de terrenos aptos para a cultura.

*III – Fundamentação Vejamos a fundamentação de facto que assenta a...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT