Acórdão nº 2429/20.9T8VNF-B.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 03 de Dezembro de 2020

Magistrado ResponsávelRAMOS LOPES
Data da Resolução03 de Dezembro de 2020
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1) RELATÓRIO Apelante: Ministério Público Insolvente: V. A.

Juízo de comércio de Vila Nova de Famalicão (lugar de provimento de Juiz 2) – T. J. da Comarca de Braga.

*Tendo-se V. A. apresentado à insolvência, foi em 19/05/2020 proferida sentença que a declarou e, além do mais, nomeou administradora de insolvência, não nomeou comissão de credores por força do disposto no art. 66º, nº 2 do CIRE, ordenou a imediata apreensão do todos os bens do insolvente, fixou em trinta dias o prazo para a reclamação de créditos e determinou, ao abrigo do disposto no art. 36º, nº 1, n), do CIRE, a dispensa da realização da assembleia de credores (em consequência deixando consignado deverem os credores proceder, por escrito, à votação do relatório aludido no art. 155º do CIRE, comunicando a administradora aos autos o resultado da votação).

Prosseguindo os autos a sua tramitação, apresentou nos autos o Ministério Público requerimento impetrando lhe fosse aberto termo de ‘vista para se pronunciar logo que junto o relatório a que alude o art. 155º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas’, mais pretendendo que caso o tribunal optasse por não determinar tal requerida abertura de vista tomasse ‘posição escorada na lei’ para que de um tal despacho pudesse recorrer.

Sobre o assim requerido recaiu despacho de indeferimento, cujo teor se transcreve: ‘Indefiro o requerido pois o MP pronuncia-se quanto ao teor do relatório a juntar pelo administrador enquanto representante de um credor da insolvência e não há fundamento legal para abrir vista a um credor da insolvência face ao princípio da igualdade de tratamento dos credores da insolvência pois todos se pronunciam por requerimento.

’ Não se conformando com o assim decidido, apela o Ministério Público, pretendendo se revogue tal decisão e se determine, em consequência, a abertura de vista para que, no exercício do seu poder de garante dos interesses colectivos (no caso também da Autoridade Tributária e Aduaneira), emitia pronúncia sobre o relatório junto pelo administrador da insolvência nos termos do art. 155º do CIRE, terminando as alegações com a formulação das conclusões que se transcrevem: 1. Não se detecta qualquer amparo factual, adjectivo ou substantivo (note-se que não foi feita referência a qualquer normativo legal) para suportar o despacho esquadrinhado que, de uma forma singela, limitou-se a fazer apelo a um equívoco princípio de igualdade de tratamento de credores para não determinar a abertura de ‘vista’ ao magistrado do Ministério Público subscritor das presentes alegações, imprecisamente apodado de ‘credor da insolvência’; 2. Esta deliberação é nula por falta de fundamentação nos termos das disposições conjugadas dos arts. 154º, nº 1, e 615º, nº 1, al. b), este aplicável ex vi 613º, nº 3, todas as disposições do Código de Processo Civil; 3. A mesma nulidade deve ser obrigatoriamente apreciada na primeira instância, conforme preceituado no artº 617º, nº 1, do Código de Processo Civil; 4. O Ministério Público é uma magistratura autónoma e paralela à judicial e, como tal, a prática de actos processuais pelo seu corpo de magistrados tem a mesma dignidade que a destes, aliás atestada de forma expressiva e unívoca pela lei adjectiva e administrativa (arts. 156º, nºs. 2 e 3, do Código de Processo Civil, e 19º, nº 1, da Portaria nº 280/2013, de 26 de Agosto), não podendo um Procurador da República quando no exercício das funções infra ser equiparado a ilustre causídico em patrocínio de parte interessada; 5. No Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o Ministério Público tem um poder de iniciativa e intervenção com fundamento normativo próprio, autónomo e independente daquele que respeita aos credores; 6. Intervém a título principal nas insolvências, e processos afins, na defesa dos interesses colectivos/públicos e, reflexamente, na defesa das entidades (credores) por si representadas; 7. Tal realidade abrange as tipificadas intervenções processuais (prestações de contas, incidentes de qualificação da insolvência e participação em assembleias de credores, as duas primeiras em “termo de vista” e nunca através de requerimentos), sistemáticas e independentes da representação de credores; 8. Mas abarca, também e seguramente, todas as outras manifestações processuais que, não estando expressamente previstas, resultam da boa e correcta instrução do processo e da defesa dos interesses públicos (reflexamente dos credores por si representados, quando tal ocorre) que ao Ministério Público está acometida [pronúncia sobre o relatório a que alude o artº 155º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, quando não é realizada a assembleia de credores (1), sobre o cálculo da remuneração variável (2) e sobre o mapa de rateio, logo que junto [3]; 9. Os actos dos magistrados do Ministério Público são concretizados no âmbito dos ‘termos de vista’ (tal como aqueles dos magistrados judiciais são cristalizados em ‘termos de conclusão’) que, inclusivamente, abarcam a previsão processual de vistas ‘de mero expediente’; 10. A existência da magistratura do Ministério Público está constitucionalmente consagrada, também como garante da legalidade; 11. Foram violados os arts. 202º, nº 2, e 219º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, 4º (assim agasalhando uma interpretação inconstitucional dos poderes organizacionais dos juízes e comprimindo intoleravelmente a actuação funcional do Ministério Público), als. a), h), j) e m), 9º, al. f), e 96º da Lei nº 68/2019, de 27 de Agosto, 3º, nº 2, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 2/2020, de 31 de Março, 7º, nº 1, 154º, nº 1, 156º, nºs. 2 e 3, e 615º, nº 1, al. b), este aplicável ex vi artº 613º, nº 3, todos do Código de Processo Civil.

Não foram apresentadas contra-alegações.

*Nos presentes autos de insolvência o Ministério Público representa a Autoridade Tributária e Financeira (que reclama créditos por impostos, coimas, encargos e custas).

*No despacho em que admitiu o recurso, a Exma. Juíza apreciou da arguida nulidade da decisão, entendendo que a mesma se não verifica.

*Colhidos os vistos, cumpre decidir.

*Da delimitação do objecto do recurso Considerando as conclusões das alegações (por estas se delimita o objecto dos recursos, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso - artigos 608º, nº 2, 5º, nº 3, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, do CPC), as questões a decidir reconduzem-se a apreciar: - da nulidade do despacho apelado por falta de fundamentação de facto e de direito (art. 615º, nº 1, b) do CPC), e - dos termos e forma de actuação do Ministério Público no âmbito dos autos de insolvência no que especificamente concerne ao relatório apresentado pelo administrador da insolvência nos termos art. 155º do CIRE – especificamente, se lhe deve ser facultada promoção, em vista que para tanto lhe seja aberta, a propósito de tal relatório, logo que junto aos autos.

*FUNDAMENTAÇÃO*Fundamentação de facto A matéria factual a ponderar é a que resulta exposta no relatório que precede.

*Fundamentação de direito A. Da nulidade da sentença Sustenta o apelante a nulidade da decisão, à luz do art. 615º, nº, 1, b) do CPC (aplicável aos despachos, ex vi art. 613º, nº 3º, do CPC), por não comtemplar fundamentação factual e/ou jurídica (‘amparo factual, adjectivo ou substantivo’, não tendo sido feita ‘referência a qualquer normativo legal’) em suporte da injunção proferida.

Arguição manifestamente improcedente.

Uma observação preliminar se nos impõe: mais do que a frequência com que, em sede de apelação, se suscita a nulidade da decisão recorrida, impressiona, vários anos volvidos sobre a introdução de tal solução no nosso ordenamento jurídico, que não se haja ainda interiorizado que caso conclua pela verificação do vício, caberá à Relação substituir-se à primeira instância, conhecendo do objecto do apelação (art. 665º, nº 1 do CPC), salvo se alguma questão tiver sido considerada prejudicada e haja necessidade de recolher, para decidir, outros elementos não disponíveis nos autos (caso em que, então, os autos voltarão à primeira instância) (2) – solução que, nos casos em que tal dever de substituição ocorra, retira qualquer interesse prático à invocação do vício, que assim quedará num mero exercício de verificação académica do cumprimento das regras próprias da elaboração e estruturação da decisão e do respeito dos poderes cognitivos e decisórios do tribunal.

À situação trazida em recurso quadra, precisamente, a solução legal prescrita no art. 665º, nº 1 do CPC – ainda que seja de reconhecer faltar fundamentação (de facto e/ou de direito) à decisão impugnada, deverá a Relação apreciar do objecto do recurso, por os elementos necessários para tanto se mostrarem disponíveis (trata-se de questão de natureza processual, sendo os seus termos revelados pelo processo); a solução da norma, apontando na sua letra à decisão que põe termo ao processo, vale inteiramente para outros despachos, considerando que o nosso sistema jurídico-processual (à semelhança da generalidade dos ordenamentos jurídicos da União Europeia) assenta fundamentalmente num modelo de substituição, em detrimento do modelo da cassação (3).

Feita a observação, apreciar-se-á da arguição.

Dispõe o art. 615º, nº 1, b) do CPC ser nula a sentença (ou despacho – art. 613º, nº 3 do CPC) quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Vício reportado à exigência estabelecida no art. 607º, nº 3 do CPC, que impõe ao juiz a especificação dos fundamentos de facto e de direito da decisão, circunscreve-se a nulidade prescrita no art. 615º, nº 1, b) do CPC, no que à falta de fundamentação de facto respeita, à não especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão, não já à motivação de tal decisão de facto (a esta é aplicável o regime prescrito no art. 662º, nº 2, d) e nº 3, b) e d) do CPC) (4) – a falta de motivação da decisão de facto, considerada...

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