Acórdão nº 308/19.1GACTX.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 24 de Janeiro de 2023

Magistrado ResponsávelMARGARIDA BACELAR
Data da Resolução24 de Janeiro de 2023
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: No Tribunal Judicial da Comarca de … - Juízo de Competência Genérica do …, mediante acusação do Ministério Público, foi julgada em processo comum, perante o tribunal singular, com documentação das declarações oralmente prestadas em audiência, a Arguida a seguir identificada: AA, filha de BB e de CC, nascida no dia …. de 1985, natural da freguesia de …, concelho de …, com residência na …, …

A final, foi decidido julgar a acusação improcedente e, em consequência:

  1. Condenar a arguida AA, pela prática, de um crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 220 (duzentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), num total de € 1 210 (mil duzentos e dez euros)

  2. Julgar o pedido de indemnização civil procedente, por provado, e, em consequência, condenar a demandada AA no pagamento à demandante DD de € 120 (cento e vinte euros), acrescido de juros civis de mora, à taxa legal, vencidos e vincendos desde a notificação do pedido de indemnização civil até efectivo e integral pagamento

  3. Julgar improcedente a declaração de perda de vantagens requerida pelo Ministério Público

    Inconformado, o Ministério Público, interpôs recurso da referida decisão, formulando as seguintes conclusões: “1. O Ministério Público recorre da sentença do Tribunal a quo por entender que o Tribunal violou a norma contida no artigo 110.º, n.ºs 1, 3, 4 e 6, do Código Penal

    1. E, por essa via, julgou erradamente improcedente a declaração de perda de vantagem requerida pelo Ministério Público do valor de €120,00 (cento e vinte euros)

    2. Para o efeito, o Tribunal a quo considerou que “a partir do momento em que o arguido, na qualidade de demandado, deva ser condenado a ressarcir o demandante daquilo que se locupletou passa a falhar aquele pressuposto, pois, ao ressarcir o demandante, o demandado deixará de ter qualquer vantagem na sequência da prática do crime”, que “não se vê como se poderia compatibilizar em sede de execução da sentença e a declaração de perda com a indemnização a que o demandado e agente do crime seja condenado.” E que “O demandante pode, no exercício do seu direito de propriedade, exercer o direito de crédito da forma que bem entenda, desde logo quanto ao momento de o exigir”

    3. Porém, não podemos concordar com tal entendimento, porquanto não existe qualquer incompatibilidade entre a dedução, pelo ofendido, de pedido de indemnização civil e a declaração de perdimento, na sequência do requerimento, pelo Ministério Público, feito na acusação, da perda da vantagem patrimonial obtida pelo agente do facto ilícito típico com a conduta criminosa

    4. Sempre com o devido respeito por melhor opinião, afigura-se-nos que o Tribunal a quo deveria ter declarado perdida a favor do Estado a quantia de €120,00, condenando-se a arguida a pagar tal quantia ao Estado, ao abrigo do disposto no artigo 110.º, n.ºs 1, alínea b), e n.º 4, do Código Penal, o que, apenas por errada interpretação deste preceito, não sucedeu

    5. Analisando o elemento literal do artigo 110.º do Código Penal, a interpretação vertida na sentença recorrida, afasta-se, por completo, daquela que foi a intenção do legislador ao consagrar o instituto do confisco, afigurando-se, o mesmo, imperativo

    6. Por outro lado, não existe na lei qualquer condicionalismo ao decretamento da perda da vantagem obtida pelo agente do facto ilícito, preenchidos que estejam os pressupostos constantes no artigo 110.º do diploma legal em análise. E, se a solução para eventuais dúvidas sobre a compatibilidade entre o decretamento da perda de vantagem e a dedução, pelo lesado, de pedido de indemnização civil já decorresse do previsto no artigo 110.º, n.º 6, do Código Penal, o artigo 130.º, n.º 2, do Código Penal, sob a epígrafe “Indemnização do lesado” completa, reforça e consolida tal conclusão esclarecendo: “Nos casos não cobertos pela legislação a que se refere o número anterior, o tribunal pode atribuir ao lesado, a requerimento deste e até ao limite do dano causado, os instrumentos, produtos ou vantagens declarados perdidos a favor do Estado ao abrigo dos artigos 109.º a 111.º, incluindo o valor a estes correspondente ou a receita gerada pela venda dos mesmos”

    7. A defender-se, como aqui se pugna, não existe uma dupla condenação, porque, como é pacífico (e nem se questiona) ou o agente satisfaz o pedido formulado no pedido de indemnização civil ou liquida ao Estado o valor declarado perdido, ao abrigo do artigo 110.º do Código Penal, o qual, diga-se, mediante requerimento nos termos do artigo 130.º, n.º 2, do mesmo diploma legal, até poderá ser atribuído ao lesado

    8. Com a solução vertida na sentença recorrida saem totalmente subvertidos os fundamentos que estiveram na génese do instituto do confisco, mormente, as finalidades preventivas, através do qual o Estado anuncia ao agente do crime, ao potencial delinquente e à comunidade em geral que, mesmo onde a cominação de uma pena não alcança, nenhum benefício resultará da prática do ilícito (i.é, o brocado “o crime não compensa”), deixando-se, por completo, nas mãos do ofendido a verificação, ou não, das finalidades legislativas que estiveram subjacentes à consagração do instituto da perda clássica

    9. Não podemos, portanto, concordar com o primeiro argumento avançado pelo Tribunal a quo, isto porque, ainda que o pedido de indemnização civil tenha sido decretado, enquanto o valor permanecer na esfera do arguido, não podemos dizer que aquele deixou de ter qualquer vantagem, esta continuará a existir enquanto estiver na sua disponibilidade

    10. Quanto ao segundo argumento, é verdade que o artigo 110.º, n.º 6, do Código Penal determina, e bem, que “o disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido”, mas acontece que tal não quer dizer que a perda de vantagem não pode ser decretada quando tiver sido procedente o pedido de indemnização civil, mas sim – e antes! – que, em sede de execução, o segundo prefere ao primeiro, sendo inclusive conferido ao lesado a prerrogativa de ser pago através do disposto no artigo 130.º, n.º 2, do Código Penal. Sendo que, em rigor, esta questão apenas se colocará após o trânsito da sentença, nos casos em que existe concurso entre a execução do pedido de indemnização civil e a do valor da perda de vantagens, numa fase em que aqueles valores já estão definidos e atribuídos, valores que poderão até nem coincidir nos seus montantes, dando-se aqui preferência ao pedido de indemnização civil

    11. Por fim, relativamente ao terceiro argumento, também não podemos concordar quando o Tribunal a quo refere que “o demandante pode, no exercício do seu direito de propriedade, exercer o direito de crédito da forma que bem entenda”, pois, para além dos direitos do lesado, estão as necessidades de prevenção geral e especial que aqui devem ser alvo de ponderação, não podendo, conforme referido supra, ficar dependente da vontade do lesado a perpetuação da vantagem na esfera patrimonial do condenado, vendo este assim compensado o seu crime, o que se pretende evitar

    12. Conforme referido em várias convenções internacionais que Portugal subscreveu e se comprometeu a observar, nas palavras de JOÃO CONDE FERREIRA e HÉLIO RIGOR RODRIGUES, estas “instigam implacavelmente, ao confisco dos instrumentos, produtos e vantagens do crime como forma eficaz de o combater, mas também como forma de indemnizar as próprias vítimas, sendo em ambos os casos seja no âmbito das Nações Unidas, seja no âmbito do Conselho da Europa, o confisco é independente do pedido de indemnização civil. Intervém sempre por forma a restituir o condenado ao status patrimonial anterior à prática do crime e, desta forma, mesmo que a vítima nada faça, demonstrar que ele não compensa. Porém, se houver lesados a indemnizar, os bens assim obtidos devem ser usados para esse efeito, deste modo protegendo também os seus interesses.” (obra antes citada)

    13. De outra forma, e a ficar a perda de vantagens dependente da vontade do lesado que, não obstante ter visto julgado procedente o pedido de indemnização civil, nada faz para retirar aquele valor da posse do condenado, podendo, através de inércia, renúncia ou mesmo negociação, perpetuar-se-ia aquela vantagem na esfera patrimonial do condenado que veria o seu crime compensado

    14. É sobre os Tribunais, e não sobre os particulares, que recai o dever constitucionalmente consagrado de administrar a Justiça, não sendo admissível exigir aos particulares o dever de exercer o seu direito, pese embora tal desiderato se atinja naturalmente quando os mesmos conseguem cobrar de forma integral a indemnização que lhes foi atribuída, nos termos das disposições conjugadas do artigo 469.º do CPP e dos artigos 9.º, alínea b), 202.º e 219.º, todos da Lei Fundamental

    15. Por tudo o exposto, ao não ter decretado o perdimento a favor do Estado da vantagem patrimonial que a arguida AA obteve com a actividade criminosa pela qual...

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