Acórdão nº 646/20.0GAEPS.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 23 de Janeiro de 2023

Magistrado ResponsávelF
Data da Resolução23 de Janeiro de 2023
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães: I. RELATÓRIO 1.

No processo de inquérito com o NUIPC646/20.0GAEPS, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Instrução Criminal ... – Juiz ..., foi proferido despacho no dia 26-05-2022 [referência179438187] que se transcreve: «Requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente AA: Nos termos do artigo 286.º, n.º1 do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

A Instrução pode ser requerida pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação, e pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, quanto a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (artigo 287.º, n.º1, alíneas a) e b) do Código de Processo Penal).

No requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente, este terá de indicar não só as razões de facto e de direito de discordância relativamente ao despacho de arquivamento do Ministério Público, mas também os actos de instrução que deseja sejam realizados, os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e os factos que, através de uns e outros, pretende provar.

Ao Requerimento de Abertura de Instrução do Assistente é ainda aplicável o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal (artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal) ou seja, deve conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis.

A inobservância destes requisitos implica nomeadamente a nulidade da acusação (artigo 287.º, n.º 3 do Código de Processo Penal).

Assim, no Requerimento de Abertura de Instrução o Assistente terá, desde logo, de descrever os factos concretos que pretende imputar ao arguido.

Perante o arquivamento determinado pelo Ministério Público e de acordo com o artigo 287.º do Código de Processo Penal, o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente constituirá uma “acusação alternativa”, que deve descrever os factos que fundamentam a eventual aplicação ao(s) arguido(s), definindo e delimitando assim o objeto do processo.

Atenta a estrutura acusatória do processo penal, o Requerimento de Abertura de Instrução não pode limitar-se à simples impugnação do despacho de arquivamento, para o que o meio adequado é a reclamação hierárquica.

Isto porque não é ao juiz que compete compulsar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que poderão indiciar o cometimento pelo arguido de um crime, pois então, estar-se-ia a transferir para aquele o exercício da acção penal contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor.

A Instrução é uma fase processual facultativa, com finalidades e âmbito específicos e definidos por lei e onde não cabe levar a cabo diligências de investigação, como se de um complemento ou continuação do Inquérito se tratasse, no sentido de apurar factos a imputar aos arguidos.

Não descrevendo o assistente os factos que pretende imputar ao arguido, qualquer descrição que se venha a fazer numa eventual pronúncia implica necessariamente uma alteração substancial do requerimento, ferida pois de nulidade nos termos do artigo 309.º do Código de Processo Penal.

Ora, nos presentes autos e compulsado o teor do requerimento de abertura da instrução, verifica-se que o assistente se limita a invocar as razões da sua discordância com o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público e as razões por que, no seu entender, o processo deveria ter prosseguido para julgamento pelo crime de ofensa à integridade física qualificada.

Todavia, o assistente salienta no primeiro artigo do RAI o seguinte: “O teor da acusação formalizada pelo Ministério Publico, que seguidamente se reproduz (…) padece, (…) de um enquadramento inadequado dos factos apurados no que respeita à qualificação jurídica:” E segue a transcrição da acusação pública.

Depois, o assistente entende que, quer pela natureza do objeto usado na agressão, quer pela zona vital do corpo atingida (cabeça), bem como a extensão qualitativa e quantitativa das lesões provocadas, a qualificação da ofensa à integridade física devia ser qualificada.

Porém, as afirmações feitas pelo assistente no seu requerimento de abertura de instrução, não traduzem o necessário elenco de factos a imputar ao arguido.

Pela simples razão de que não deduz ele, assistente, uma acusação alternativa.

Na verdade, se bem se reparar, a acusação pública nem sequer contém o relato completo das lesões e suas consequências quando relata: Como consequência dessas pancadas o ofendido ficou com uma ferida na região parietal esquerda e dores e limitação funcional à flexão palmar do punho esquerdo, melhor descritas no relatório médico-legal de fls. 56 a 59.

Só que omite a menção às lesões e sua cura ou consolidação descritas no relatório pericial subsequente de fls. 126 a 130.

E o assistente não aproveita o RAI para colmatar tal omissão, como deveria ter feito formulando uma acusação alternativa que reunisse os elementos objetivos e subjetivos do crime qualificado que imputa e que configurasse o objeto da instrução.

O juiz de instrução não tem a missão de tentar «salvar» os requerimentos imperfeitos e insuficientes, respigando uma palavra aqui, um segmento de frase mais à frente, eventualmente aproveitando também o conteúdo da queixa, para, contextualizando tudo, compor uma acusação que não lhe compete formular. Na realidade, a sua função não é “acusar”, mas apenas a de “comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” (art. 286 nº 1 do CPP). Tendo o MP decidido arquivar o inquérito o juiz de instrução “comprova” a acusação do assistente, como se lê no Ac. R. Guimarães de 26/1/2015, REL. DES. Fernando Monterroso, www.dgsi.pt.

Na verdade, o requerimento de abertura de instrução em apreço apresentado pelo assistente, na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, pronunciando-se apenas quanto à justeza da qualificação jurídica do despacho final, é no entanto omisso quanto aos necessários factos (que são diversos dos do crime de ofensa à integridade física simples), não descrevendo os acontecimentos e os comportamentos que pretende ver imputados, e não descrevendo a motivação aquando da sua alegada prática.

Não decorre, pois, do requerimento em análise, a referência directa a quaisquer factos que possam consubstanciar os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime qualificado, razão pela qual, a prosseguirem os autos, o arguido não saberia relativamente a que factos teria de defender-se e, ainda que viesse a ser proferido despacho de pronúncia, o mesmo redundaria necessariamente numa alteração substancial do requerimento de abertura de instrução, e por isso, viciada pela nulidade prevista pelo n.º 1 do artigo 309.º, do Código de Processo Penal.

Acresce que, nestes casos, é insustentável a prolação de um despacho de aperfeiçoamento, sob pena de haver lugar a uma prorrogação do prazo legal para requerer a abertura da instrução inadmissível em processo penal fora do caso previsto no art. 107.º, nº 6, do Código de Processo Penal.

Isso mesmo resulta inequivocamente do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, publicado no Diário da República n.º 212, I Série A, de 4 de Novembro de 2005 que, fixando jurisprudência nesta matéria determinou que: “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.” e para cujos fundamentos se remete.

Nesta conformidade, por inadmissibilidade legal, atenta a falta de indicação dos factos sobre os quais deveria incidir a presente instrução, ao abrigo do disposto nos art.ºs 287.º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal, e 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa, rejeito o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente AA.

Custas a seu cargo, fixando em 1 UC a taxa de justiça. Notifique.

Remeta oportunamente os autos à distribuição.» 2.

Inconformado, o assistente AA, interpôs recurso, concluindo a sua motivação do seguinte modo (transcrição).

«II - Conclusões I. O Despacho de que se recorre, ao entender como inadmissível a abertura da instrução visada pelo assistente, fez uma errada interpretação e aplicação do n.º 1 do artigo 286.º, alínea b) do n.º 1 e n.º 3 do artigo 287.º, ambos do Código de Processo Penal, que resultaram violados.

  1. Tanto na acusação, como na pronúncia, os factos e a pretensão são inseparáveis, até porque um dos requisitos obrigatórios é a indicação das disposições legais aplicáveis (alínea c) do n.º 3 do artigo 283.º e n.º 2 do artigo 308.º do CPP), pelo que a palavra “factos” não pode ser entendida de forma meramente literal, isolada do enquadramento sistemático processual penal.

  2. Os preceitos violados devem ser entendidos no sentido de permitirem a abertura de instrução quando requerida pelo assistente quando este vise apenas uma qualificação jurídica diversa dos factos constantes da acusação do Ministério Público.

  3. Ainda para mais quando com essa qualificação jurídica esteja em causa uma agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, o que faz com que estejamos perante uma alteração substancial dos factos...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT