Acórdão nº 802/22 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Novembro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Mariana Canotilho
Data da Resolução17 de Novembro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 802/2022

Processo n.º 668/2020

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Mariana Canotilho

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, o recorrente A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, adiante designada «LTC»), da decisão proferida por aquele Tribunal, em 31 de julho de 2020, que decidiu julgar improcedente o recurso do despacho do Juiz do Tribunal de Execução de Penas que indeferira o seu requerimento, negando-lhe a pretensão de ver descontado na pena em execução, o período de tempo que esteve privado de liberdade por ordem de outro processo.

2. Na parte que releva para a apreciação do presente recurso, pode ler-se na decisão recorrida:

“Sem questionar os dados de facto que conduziram à decisão, insurge-se o recorrente contra o despacho pena ora em execução o período de tempo (a título de detenção e prisão preventiva) em que esteve privado da liberdade à ordem do processo n.° 869/02.4JAPRT, no âmbito do qual veio a ser absolvido por decisão proferida em 15/07/2003, transitada em julgado em 2/12/2003.

Tendo, assim, por assente que a pena em execução se reporta a factos ilícitos cometidos entre 26.03.2018 e 15.05.2018 e que o condenado/recorrente esteve privado da liberdade (detenção e prisão preventiva) de 30.07.2002 a 15.07.2003 à ordem do referido processo, tendo vindo a ser absolvido por sentença/acórdão proferido em 15.07.2003, transitado em julgado em 2.12.2003, a questão que importa dilucidar traduz-se em saber se, como pretende o recorrente, deveria o tribunal a quo ter decidido em sentido contrário, isto é procedido ao desconto do identificado período de tempo na pena em execução.

Não se trata de problema novo, pois já por diversas vezes tem sido tratado pelos tribunais superiores, identificando-se igualmente por parte da doutrina uma linha de orientação convergente, aspetos que o recorrente revela não ignorar.

Efetivamente nos termos do artigo 80.°, n.° 1 do Código Penal, "A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontados por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas".

Como, a propósito, escreve Germano Marques da Silva, in Direito Penal Português, III, Editorial Verbo, pág. 194-195, "São imperativos de justiça material que determinam o desconto, na medida em que aquelas medidas processuais representam também um sofrimento para o arguido análogo ao da pena em que é condenado e esse resulta do mesmo facto ou factos que integram ou deveriam integrar o mesmo processo " e, prosseguindo, diz o Autor: " O desconto só não tem lugar se as medidas tiverem sido aplicadas num processo e o arguido cometer outro crime depois da decisão final do processo em que as medidas tiverem sido aplicadas", solução que se lhe afigura justificável porquanto "Do mesmo modo que por todos os crimes cometidos antes da decisão final sobre qualquer deles deve ser aplicada uma pena única (regime do concurso de crimes), também é razoável que as medidas de coação aplicadas a qualquer desses crimes em concurso deva ser descontada na pena única aplicada".

Se em momento anterior ao das alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei n.° 59/2007, do 04.09, as medidas de privação da liberdade sofridas só podiam ser descontadas no caso de terem sido aplicados no processo em que o arguido era condenado, sendo então o acento tónico colocado na unidade do processo [vide o artigo 80.° do Código Penal na versão do D.L. n.° 48/95, de 15 de março] após a sua entrada em vigor ganhou relevância a unidade do facto, com a precisão constante da parte final do n.° 1 do artigo 80.°, ou seja "A incidência do preceito, ainda que podendo estender-se para fora do processo onde a medida foi aplicada, tem um limite, porque então não mais se saberia onde iria parar-se (expressão colhida nas ACTAS, 1965II, p. 164)" —[cf. M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, in Código Penal, Parte geral e especial, 2014, Almedina, pág. 397].

Embora na Proposta de Lei n.° 98/X a norma em questão não contivesse inicialmente semelhante limitação, no seguimento da sua aprovação na generalidade e baixa à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, a redação do n.° 1, do artigo 80.° sofreu o aditamento do segmento "quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas" que veio a vingar na Lei n.° 59/2007, de 4 de setembro. Significa, pois, que, tendo sido equacionado, o legislador não acolheu um sistema ilimitado de "desconto", "o que colocaria em crise as finalidades preventivas gerais associadas à previsão dos crimes e cominação das penas" - [cf. Jorge Gonçalves, in "A revisão do Código Penal: Alterações ao sistema sancionatório relativo às pessoas singulares", Revista do CEJ, Jornadas sobre a revisão do Código Penal, 1.° semestre, 2008, N.° 8 (Especial), págs. 15 e ss].

Fundamentação esta, igualmente presente no acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.° 9/2011 [cf. DR, I Série, de 23.11.2011] na parte em que consigna: "A limitação prevista na parte final do n.° 1 do artigo 80a, de que só se desconte o tempo de privação da liberdade sofrido noutras causas por factos anteriores à decisão final do processo no âmbito do qual o arguido sofreu as medidas processuais privativas da liberdade tem o sentido de evitar o desconto do tempo de privação de liberdade anteriormente sofrido em processos por factos posteriores de forma a não gerar, em quem tivesse a seu favor um tempo de privação de liberdade sobrante, um crédito ou saldo positivo de tempo de privação de liberdade por conta de um futuro crime o que poderia equivaler a uma compensação em pena futura como se de um convite a delinquir se tratasse.

Desta forma, do que se trata é de evitar situações que repugnariam aos fins preventivos das penas."

Isto dito.

Considerando os elementos de facto - não contrariados pelo recorrente - que surgem a sustentar o despacho em crise, afigura-se-nos claro, inverificados que resultam os pressupostos de aplicação do "desconto" [cf. n.° 1, in fine, do artigo 80.° do Código Penal] que outra não poderia ter sido a decisão. E certo que o recorrente não lhe deixa de imputar uma série de ilegalidades e inconstitucionalidades, cujo fundamento não se alcança, tão pouco o mesmo - invocando, embora, quanto às últimas, diferentes parâmetros - cuida, de modo inteligível, de as concretizar com referência a cada um dos princípios e/ou normas, satisfazendo-se antes com uma alusão "em conjunto", que visando tudo abarcar, acaba por não responder satisfatoriamente às exigências do recurso no plano da constitucionalidade.

No domínio da interpretação da lei, se o elemento literal - como o recorrente parece reconhecer - não permite qualquer dúvida, também os elementos histórico (com referência aos trabalhos preparatórios) e teleológico, traduzido este no fim que a norma visa realizar não a consentem - (cf. artigo 9.° do C. Civil).

Como ao longo do texto fomos dando conta a razão de ser da norma prende-se, usando as palavras de Germano Marques da Silva, com imperativos de justiça material que colhem justificação numa "conexão temporal" à semelhança do que sucede com o concurso de crimes, âmbito em que o "funcionamento da justiça " não raramente conduz a que os factos não sejam "conhecidos" na mesma ocasião quando, não fossem circunstâncias exógenas ao próprio delinquente, o poderiam ter sido; e não já com um "suposto crédito" que o infrator tenha contra o Estado por via do tempo de medidas de privação da liberdade que haja sofrido à ordem de processo que não apresente com aquele outro em que se pretende ver operado o "desconto" a conexão temporal a que se reporta o n.° 1 do artigo 80.° do Código Penal. O legislador não visou a "compensação", irrestrita, de "tempos" de privação da liberdade, e crê- se que bem. Na verdade, bastará pensar no caso concreto, no lapso temporal que mediou entre o trânsito em julgado da decisão absolutória no âmbito do processo à ordem do qual o recorrente sofreu privação da liberdade (2003) e a data da prática dos factos que estão na origem da pena em execução (2018) para concluir que o "desconto", sem que se assista "unidade do facto" — que não de processo abalaria inequivocamente as finalidades de prevenção subjacentes às penas.

São duas realidades que não se confundem e consequentemente a merecerem respostas distintas, como acabou por ser consagrado, pese embora, como se viu, num primeiro momento o legislador haja equacionado a solução ora preconizada pelo recorrente.

Também o Tribunal Constitucional, na fundamentação do acórdão 218/2012 [que não julgou inconstitucional a norma do artigo 80.°, n.° 1, do Código Penal interpretada no sentido de que o desconto de pena aí previsto só opera em relação a penas de prisão em que o arguido seja condenado, quando o facto que originou a condenação tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no qual a medida de prisão preventiva foi aplicada], em que a única dimensão normativa de constitucionalidade apreciada se prendeu com o princípio da igualdade, considerou que este «entendido como limite objetivo de discricionariedade legislativa, não veda a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adoção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objetiva...

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