Acórdão nº 286/21.7T8LLE.E1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 10 de Novembro de 2022

Magistrado ResponsávelJOÃO CURA MARIANO
Data da Resolução10 de Novembro de 2022
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

* I – Relatório A Autora propôs contra a Ré ação declarativa, com processo comum, pedindo: a) Declaração de falsidade parcial da escritura de partilha já celebrada entre as partes na parte em que se refere “que como tornas em numerário recebeu já de sua irmã”; b) Condenação da Ré a pagar à Autora a quantia de € 27.968,39, acrescida de juros moratórios legais desde a data da escritura até ao presente, que se cifram em € 16.851,53; c) Condenação da Ré no pagamento dos juros moratórios legais desde a citação para contestar a presente ação até ao efetivo e integral pagamento.

Alegou, como causa de pedir, em síntese, o seguinte: - em 06.01.2006 celebrou conjuntamente com a Ré, sua irmã, e com a falecida mãe de ambas, uma escritura de repúdio e partilha dos bens da herança aberta por óbito do seu pai, AA, nos termos das quais a Ré, para composição do quinhão da Autora deveria pagar-lhe € 27.968,39, a título de tornas; - nessa escritura ficou consignado que a Autora já havia recebido esse valor da Ré; - essa declaração não corresponde à verdade, uma vez que a Ré nada lhe pagou.

Contestou a Ré, alegando, em síntese: - Que foi a mãe da Autora e da Ré que tratou do modo como seriam feitas as partilhas, tendo assegurado à Ré que as contas com a Autora estavam regularizadas.

- Que, em qualquer caso, o pedido deduzido pela Autora constitui um abuso de direito, atento o tempo decorrido sem que a Autora a tenha interpelado para pagar o valor das tornas.

- Que não são devidos os juros de mora vencidos.

Concluiu pela improcedência da ação e pela condenação da Autora como litigante de má fé.

A Autora respondeu ao pedido de condenação por litigância de má fé, sustentando a sua improcedência.

A Autora também apresentou requerimento pedindo a condenação da Ré como litigante de má fé.

Respondeu a Ré, pronunciando-se pela improcedência deste último pedido.

Notificada para o efeito, a Autora veio responder à exceção perentória do abuso de direito, pugnando pela sua improcedência.

Na audiência prévia foi proferido despacho determinando a notificação das partes, nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, que o Tribunal pondera proferir Saneador-Sentença nos autos, considerando que é invocada como causa de pedir a falta de pagamento de tornas no âmbito de uma escritura pública de partilhas na qual a ora Autora declarou já ter recebido tais tornas, configurando essa declaração uma confissão extrajudicial que só pode ser sujeita a prova em contrário se o declarante juntar documento que configure princípio de prova dessa falta de pagamento ou se houver confissão de parte a quem é pedido o pagamento na contestação, o que não sucede nos autos (cfr artigos 371.º, 372.º e 374.º do C. Civil).

A Autora pronunciou-se no sentido de que a Ré ainda poderia confessar a falta de pagamento e que está a reunir documentação bancária de que o dinheiro não entrou na sua conta, tendo junto um extrato de conta bancária da C.G.D., por ela alegadamente titulada, com o registo dos movimentos ocorridos em período posterior à data da celebração da escritura de partilha, enquanto a Ré manifestou a sua concordância com a posição perfilhada pelo Tribunal.

Foi proferido despacho saneador, com valor de sentença, que julgou a ação improcedente, tendo absolvido a Ré do pedido formulado.

A Autora recorreu para o Tribunal da Relação que julgou improcedente a apelação, mantendo a decisão da 1.ª instância.

Desta decisão a Autora interpôs recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça, lendo-se nas conclusões das alegações apresentadas: (...) 7.ª De facto, trata-se apenas de uma declaração e não de uma confissão de recebimento das tornas.

  1. Mas mais, parece-nos, salvo o devido respeito, que a seguir o entendimento perfilhado pelo Douto Tribunal recorrido, estamos perante uma probatio diabolica, e, como tal, impossível de se fazer face às presunções probatórias das referidas declarações.

  2. Não se conforma, pois, a Recorrente com a interpretação e fundamentação dada pelo tribunal “a quo”.

  3. Parece-nos, salvo o devido respeito, que confundiu o digno tribunal “a quo” que o que se encontra exarado na escritura de partilha é uma mera declaração e não uma confissão.

  4. No presente caso, foi negada à Recorrente a possibilidade de produzir prova e, salvo o devido respeito, entendemos que o Tribunal de 1.ª Instância se precipitou ao julgar improcedente a ação apenas com base nos articulados e num único documento bancário.

  5. Acresce que, e tendo alicerçado o tribunal recorrido a convicção de que os documentos bancários não demonstrariam a falta de pagamento, à luz das regras da experiência comum e tendo em consideração a diligência do homem médio, se as tornas tivessem de facto sido pagas, a Recorrente teria depositado o dinheiro na sua conta bancária, pois, certamente, não teria ficado com ele escondido “debaixo do colchão”.

  6. Mais, considera a jurisprudência maioritária que é admissível o recurso à prova testemunhal na averiguação da vontade real dos contratantes que reduziram as suas declarações negociais a escritura pública, uma vez que se está a interpretar o contexto do documento - acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 18/06/2007, processo n.º 0722703, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/03/2021, processo n.º 902/18.8T8GMR.G1.S1, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/05/2019, processo n.º 930/12.7TBPVZ.P1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

  7. Pelo que, decidiu mal o tribunal “a quo”.

  8. Assim, e face a todo o supra exposto, a declaração exarada na escritura de partilha tem de ser considerada uma mera declaração e não uma confissão, porque desacompanhada da admissão pelo declarante, no caso pela Recorrente, da veracidade de tal recebimento.

  9. Na verdade, deveria o douto tribunal a quo ter-se abstido de decidir na audiência prévia do mérito da causa, porquanto, ao fazê-lo negou à ora Recorrente a possibilidade de juntar prova documental conforme previsto na lei (cfr. art. 598.º, do CPC) e também a produção de prova testemunhal.

  10. Acresce que a Recorrente considera que existem documentos capazes de demonstrar que não lhe foram pagas as tornas pela Recorrida e, deste modo, estará igualmente aberta a possibilidade para a prova testemunhal que comprovará a falsidade das declarações exaradas na escritura de partilha ora em crise.

  11. Os presentes autos versam sobre uma questão de justiça material, a qual foi colocada em causa com a decisão recorrida, porquanto, a Recorrida bem sabe que nada pagou a título de tornas à Recorrente e, a possibilidade de esta apresentar prova documental foi frustrada com a prolação, precipitada no nosso entendimento, de saneador-sentença.

Nestes termos e nos melhores de direito deverá o presente recurso ser considerado totalmente procedente e, em consequência, deverá ser revogado o acórdão recorrido e, bem assim, o despacho saneador-sentença, devendo ser substituído por Acórdão que ordene o prosseguimento dos autos.

A Formação a que alude o artigo 672.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, proferiu acórdão, em 15.09.2022, que admitiu o recurso interposto, por versar questão juridicamente relevante.

* II – Do objeto do recurso Tendo em consideração as conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, no presente recurso cumpre, num primeiro momento, verificar a possibilidade de a Autora efetuar prova de que não recebeu a quantia correspondente às tornas a que tinha direito, em resultado da partilha extrajudicial da herança do seu pai, devido a constar da escritura de partilhas que a Autora, nesse ato, declarou já haver recebido aquela quantia e, num segundo momento, respondendo-se afirmativamente à primeira questão, se o conhecimento do mérito da ação foi extemporâneo, tendo impedido a Autora da fazer a prova que não corresponde à verdade o que foi confessado.

* III – Os factos Neste processo foram considerados já provados os seguintes factos 1) Em 6 de janeiro de 2006, a Autora BB e a Ré CC, irmãs, juntamente com a mãe de ambas, DD, outorgaram escritura pública de repúdio e partilhas dos bens da herança aberta por óbito de AA, pai da Autora e da Ré e marido da referida BB, sendo que “(…) à partilhante BB, para pagamento do seu direito são-lhe adjudicados em nua-propriedade os bens identificados na relação sob (…) as verbas QUINZE, DEZASSEIS, VINTE E UM, VINTE E DOIS, VINTE E TRÊS, VINTE E CINCO, VINTE E SEIS E VINTE E OITO, - tudo no valor de quatrocentos e sessenta e oito euros e vinte e oito cêntimos (calculado nos termos da mesma disposição), faltando, por isso, para integral pagamento do seu quinhão a quantia de vinte e sete mil novecentos e sessenta e oito euros e trinta e nove cêntimos que como tornas em numerário recebeu já de sua irmã, tal como resulta de fls. 7 a 24, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, tendo a Autora declarado perante o Notário que recebeu as referidas tornas.

2) DD faleceu em ... de maio de 2020.

Julgou-se, não provado que a Autora não recebeu tornas no valor de € 27.968,39 que declarou ter recebido na escritura pública referida em 1) dos factos provados.

* IV – O direito aplicável 1. Da “falsidade” da declaração da Autora Com a propositura da presente ação a Autora pretende que a Ré seja condenada a pagar-lhe o valor das tornas necessárias à composição do seu quinhão que resultou da partilha extrajudicial da herança do pai de ambas.

Tendo na respetiva escritura pública de partilha ficado consignado que a Autora já havia recebido da Ré esse valor, a Autora pediu que fosse declarada a falsidade parcial dessa escritura, na parte em que se refere “que como tornas em numerário recebeu já de sua irmã”, com fundamento em que esse pagamento, na realidade, não ocorreu.

A referida passagem da escritura não reflete uma perceção pelo Notário que lavrou a escritura do referido pagamento, reproduzindo apenas uma declaração nesse sentido proferida pelas três herdeiras intervenientes no ato de partilha outorgado, pelo que o...

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