Acórdão nº 1579/20.6T8PVZ.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 10 de Novembro de 2022

Magistrado ResponsávelCATARINA SERRA
Data da Resolução10 de Novembro de 2022
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I. RELATÓRIO 1.

AA, de nacionalidade brasileira, residente na Rua ..., ..., instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra, Electronic Arts, Inc.

, com sede em 209, Redwood Shores Parkway, Redwood City, California, EUA, pedindo a condenação desta sociedade a pagar-lhe:

  1. A título de indemnização por danos patrimoniais de personalidade, pela utilização indevida da sua imagem e do seu nome, a quantia de € 180.000,00, de capital, acrescida dos juros vencidos, no montante de € 49.580,06, tudo no total de € 229.580,06 e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal, tudo com o mais da lei; b) E um montante nunca inferior a € 5.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescido, também, dos juros vencidos, no montante de € 2.167,12, tudo no total de € 7 167,12 e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal, tudo com o mais da lei.

    Baseia este pedido, em resumo, na circunstância de ser um jogador de futebol profissional brasileiro, atualmente a jogar em Portugal, mas, devido à sua já longa carreira, tornou-se conhecido no meio do futebol.

    Acontece que a ré, que é uma empresa líder global em entretenimento digital interativo, aproveitando-se desse facto, passou a utilizar, sem a sua autorização, a sua imagem, o seu nome e as suas características pessoais e profissionais nos jogos de que é proprietária, denominados FIFA (também com as designações FIFA Football ou FIFA Soccer), pelo menos nas edições 2011, 2012, 2013, 2014, 2018 e 2020; FIFA MANAGER, pelo menos nas edições de 2010, 2011, 2012, 2013 e 2014; FIFA ULTIMATE TEAM - FUT, pelo menos nas edições de 2014, 2018 e 2020, e FIFA MOBILE nas edições de 2018 e 2020.

    E faz a distribuição desses jogos através de várias subsidiárias entre as quais se destaca, na Europa, a EA S..., sedeada em ..., Suíça, que é uma empresa que opera como subsidiária (subdivisão) daquela, e que assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos ..., Canadá e Japão.

    Assim, porque a sua imagem está, pelo menos desde Setembro de 2009, a ser indevidamente usada em milhões de jogos difundidos em Portugal e por todo o mundo, sofreu com isso os referidos danos, que especifica e pelos quais quer ser ressarcido.

    1. Contestou a ré, refutando os aludidos pedidos, seja porque o direito invocado pelo autor está prescrito; tem licenciamento dos direitos de imagem a seu favor; o autor age em abuso de direito; e, em qualquer caso, são infundados os pedidos pelo mesmo formulados, uma vez que, em síntese, para o desenvolvimento dos seus jogos FIFA, a mesma não carecia, nem carece, da autorização do autor.

      Subsequentemente, no dia 31.03.2021, a ré veio suscitar a incompetência absoluta dos tribunais portugueses para o conhecimento do presente litígio, uma vez que não existem factores de conexão juridicamente relevantes com a ordem jurídica portuguesa. Por isso mesmo, termina pedindo a sua absolvição da instância.

    2. O autor respondeu, pugnando pela solução contrária, uma vez que não reconhece fundamento legal para a procedência da referida excepção.

    3. Depois de o autor se ter pronunciado sobre as excepções deduzidas pela ré na contestação, foi admitida a entretanto requerida intervenção da sociedade, Fifpro Commercial Enterprises BV, como assistente da ré.

    4. No âmbito da audiência prévia foi, então, conhecida a arguida excepção de incompetência internacional, a qual foi julgada procedente e a ré absolvida da presente instância.

    5. Inconformado com esta decisão, dela recorre o autor, tendo o Tribunal da Relação do Porto proferido Acórdão com o seguinte dispositivo: “Pelas razões expostas, acorda-se em negar provimento ao presente recurso e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida”.

    6. Ainda inconformado, vem agora o autor interpor recurso de revista do Acórdão, entendendo que “deve o presente recurso ser julgado procedente e revogado o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, substituindo-se o mesmo por outro que declare a competência internacional dos Tribunais Portugueses”.

      Termina as suas alegações com as conclusões que de seguida se transcrevem: “

  2. Vem o presente recurso interposto do acórdão proferido nos autos que julgou o recurso interposto, pelo Autor, improcedente e, em consequência, manteve a decisão recorrida, que julga os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para o conhecimento da acção e, em consequência, absolve a ré da instância.

  3. Assim, salvo diferente entendimento, o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto, objecto do presente recurso, incorre em manifesta violação das regras de competência internacional, mais concretamente, na violação das disposições firmadas no artigo 7.º, n.º 2 do Regulamento 1215/2012 e no artigo 62.º, alíneas a), b) e c) do Código de Processo Civil.

  4. A decisão recorrida é, salvo o devido respeito, que aliás é muito, injusta e precipitada, tendo partido de pressupostos errados.

  5. Entende o ora Recorrente que as suas legítimas pretensões saem manifestamente prejudicadas pela manutenção da decisão recorrida.

  6. No que respeita ao caso concreto e ao uso indevido da imagem do Autor, os jogos da ré, com o conteúdo lesivo, são difundidos por esta, para serem utilizados e guardados em vários instrumentos tecnológicos, de diversas pessoas, a qualquer momento, em qualquer lugar.

  7. É o que sucede, por exemplo, com a colocação dos jogos em linha/ambiente digital, altamente potenciada com a expansão do uso da Internet e da qual a ré beneficia largamente para aumentar a divulgação e exploração comercial dos seus jogos e, bem assim, os avultados lucros daí advenientes.

  8. Acresce que, conforme demonstrado nos autos, inclusive, através de diversa documentação junta com a petição inicial, os jogos da ré são comercializados em suporte físico em Portugal, nas mais variadas lojas, como por exemplo, nas lojas da especialidade, nas grandes superfícies, na Worten, na Fnac, na Mediamarket, entre tantas outras.

  9. E imagine-se que, alguém escrevia um livro em sua casa denegrindo ou simplesmente fazendo uso não autorizado da imagem da personalidade “A” ou até que esse alguém pintava um quadro com uma imagem menos abonatória dessa mesma personalidade “A”.

  10. Apenas não poderia ser invocado qualquer dano pela personalidade “A” pela utilização ilícita da sua imagem, se tal livro e tal quadro não saíssem nunca da casa do seu autor.

  11. O mesmo já não se pode afirmar se tal livro e/ou tal quadro fossem promovidos, divulgados e comercializados por todo o mundo, inclusive, no local de residência daquela personalidade “A”, nomeadamente, em estabelecimentos de toda a espécie.

  12. É assim, manifesto que os danos ocorreriam em todos os locais onde essa comercialização e divulgação tivesse lugar.

  13. Esta lógica é, pois, plenamente aplicável aos jogos da ré, pelo que estando os jogos disponíveis a nível mundial, o dano não é provocado só nos Estados Unidos.

  14. Por isso, a tese sufragada no acórdão recorrido, apenas faria sentido, salvo o devido respeito, se os jogos, com a imagem do Autor, apenas fossem produzidos em solo norte-americano e não transpusessem as suas fronteiras, para ser comercializados pela ré por todo o mundo sob todas as formas disponíveis, ou seja, online e em suporte físico.

  15. E, é evidente que o tribunal do lugar onde a “vítima” (in casu, o Autor) tem o centro dos seus interesses, pode apreciar melhor o impacto de um conteúdo ilícito colocado em jogos de vídeo físicos e online sobre os direitos de personalidade, pelo que lhe deverá ser atribuída competência segundo o princípio da boa administração da justiça.

  16. Para além disso, não pode ser descurado o princípio da previsibilidade das regras de competência, sendo que a ré, enquanto autora da difusão do conteúdo danoso, encontra-se manifestamente, aquando da colocação da imagem, nome e demais características das “vítimas” da sua acção, nos jogos de que é proprietária com vista à sua divulgação mundial, em condições de conhecer os centros de interesses das pessoas afetadas por este.

  17. O que releva, in casu, é o país onde ocorre o dano, independentemente do país onde tenha ocorrido o facto que deu origem ao dano e independentemente do país ou países onde ocorram as consequências indirectas do facto desencadeador da obrigação de indemnização.

  18. E Tribunal de Justiça já elaborou orientações para a interpretação do artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento no que diz respeito ao «lugar da materialização do dano», sendo que quanto a determinados domínios específicos (por exemplo, a responsabilidade por violação de direitos de personalidade na Internet) admitiu o critério do centro de interesses principais do lesado.

  19. Neste sentido, e no que respeita a situações análogas já analisadas pelo TJUE quanto a esta matéria salientam-se os acórdãos Shevill e eDate Advertising GmbH, cujos textos, para efeitos de argumentação, aqui se dão por reproduzidos e ainda a doutrina já fixada no douto acórdão desse Supremo Tribunal de Justiça de 25-10-2005.

  20. É este o contexto que nos encontramos, mas que o Tribunal a quo desconsidera totalmente, desvalorizando, de igual modo a protecção que a pessoa humana e a sua imagem merecem no ciberespaço.

  21. O Julgador não pode deixar de estar atento à evolução tecnológica e à expansão dos fenómenos dela resultantes, de forma a evitar decisões totalmente desfasadas da realidade em que vivemos actualmente.

  22. O facto constitutivo essencial desta causa reporta-se à produção e divulgação dos jogos utilizando a imagem e o nome do Autor, sem sua autorização, mas – ao contrário do referido no acórdão recorrido - a sua divulgação e exploração comercial não se localiza, exclusivamente, em solo norte-americano.

  23. Conforme demonstrado, essa divulgação ocorre em todo o mundo e, também, em Portugal, pelo que há, obviamente, uma repercussão do facto danoso, também, em todo o território nacional.

  24. O centro de interesses do Autor é em...

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