Acórdão nº 617/22 de Tribunal Constitucional (Port, 22 de Setembro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Assunção Raimundo
Data da Resolução22 de Setembro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 617/2022

Processo n.º 1089/2020

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Assunção Raimundo

Acordam, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Juízo de Competência Genérica de Almeida, do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional («LTC»), da sentença proferida por aquele Tribunal, em 2 de dezembro de 2020, nos seguintes termos (fls. 84-verso):

«O presente recurso tem em vista a apreciação da inconstitucionalidade da norma extraída do artigo 3.º, n.º 2, do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de Março, na interpretação segundo a qual, a violação da obrigação de confinamento, nos casos previstos na alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo, concretamente, pelos cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa, constitui crime de desobediência, punível nos termos do artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e cuja aplicabilidade foi recusada na mencionada sentença, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica e formal, por violação dos artigos 29.º, n.º 1 e 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa».

2. Admitido o recurso por despacho datado de 10 de dezembro de 2020 (fls. 85), e subidos os autos a este Tribunal Constitucional, notificou-se o recorrente para alegações, em 4 de janeiro de 2021 (fls. 89).

O recorrente apresentou alegações, que conclui nos seguintes termos (fls. 110-116):

«42. O Ministério Público interpôs, em 5 de Dezembro de 2020, a fls. 84 v.º dos autos supra-epigrafados, recurso obrigatório, para este Tribunal Constitucional, do teor da douta decisão judicial de fls. 52 a 81, proferida pelo Juízo de Competência Genérica de Almeida, do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda - Processo n.º 9/20.8GCALD, “(…) nos termos do disposto nos artigos 280.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3.º, da Constituição da República Portuguesa e 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 e 75.º-A, da Lei do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e artigos 2.º, 4.º, n.º 1, alínea j) e 1) e n.º 2 e 9.º, n.º 1, alínea g) do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de Agosto (…)”.

43. Este recurso “tem em vista a apreciação da inconstitucionalidade da norma extraída do artigo 3.º, n.º 2, do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de Março, na interpretação segundo a qual, a violação da obrigação de confinamento, nos casos previstos na alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo, concretamente, pelos cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa, constitui crime de desobediência, punível nos termos do artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal (…)”.

44. Os parâmetros de constitucionalidade cuja violação se invoca são os constantes do disposto nos “(…) artigos 29.º, n.º 1 e 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa”.

45. Conforme resulta do teor da douta sentença recorrida acabada, nas partes relevantes, de transcrever, decidiu a Mm.ª Juíza “a quo” absolver o arguido da prática do crime de desobediência que lhe vinha imputado, em virtude da concomitante “[r]ecusa [d]a aplicação do artigo 3.º, n.º 2, do Decreto n.º 2-A/2020, mercê da inconstitucionalidade orgânica e formal, mais concretamente por violação dos artigos 29.º, n.º 1, e 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa”.

46. Ora, se bem que a desconformidade constitucional também se consubstancia, de acordo com o conteúdo do segmento decisório, na violação do princípio da legalidade, plasmado no n.º 1, do artigo 29.º, do Texto Fundamental, não podemos ignorar que a argumentação que suporta aquela inferência se sustenta na apreciação da discordância da norma suspeita com regras constitucionais de competência.

47. Ou seja, apesar de concluir que a interpretação normativa desaplicada se revela materialmente violadora da Constituição da República Portuguesa, nomeadamente do disposto no seu artigo 29.º, n.º 1, a douta decisão impugnada invoca como sua fundamentação a desconformidade orgânica daquela norma com o Texto Fundamental, por via da discordância com o disposto no seu artigo 165.º, n.º 1, alínea c).

48. Na verdade, e repetindo o que já alegámos noutros recursos que correm termos neste Tribunal, constatamos que a questão jurídico-constitucional material suscitada pelo tribunal “a quo” na douta decisão recorrida, e que agora é trazida perante o Tribunal Constitucional, decorre da ponderação de uma das inúmeras vertentes do quadro normativo que emergiu da necessidade de combater a pandemia de COVID-19 causada pelo novo Coronavírus, SARS-CoV-2.

49. No cenário de tal combate, e face ao agravamento da ameaça pandémica, declarou o Exm.º Sr. Presidente da República, por via do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, o estado de emergência com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, pelo período de quinze dias.

50. Na sequência de tal declaração do Presidente da República, o Governo, por intermédio do seu Decreto n.º 2-A/2020, de 2 de abril, procedeu à execução da referida declaração do estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, cominada pelo supremo magistrado do país.

51. É, por conseguinte, neste último decreto que se encontra sediada a interpretação normativa cuja aplicação foi recusada pelo douto tribunal “a quo”, a saber, a extraível do disposto no n.º 2, do artigo 3.º, Decreto n.º 2-A/2020, de 2 de abril, da Presidência do Conselho de Ministros (com referência ao prescrito na alínea b), do n.º 1, do mesmo decreto), no sentido de tipificar e punir como crime de desobediência a violação da obrigação de “confinamento obrigatório, em estabelecimento de saúde ou no respetivo domicílio” dos “cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa”, que por estes é imposta.

52. Com efeito, a interpretação normativa contestada ao prever, inovadoramente, uma conduta humana, a saber, a violação da obrigação de confinamento por parte dos cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa, nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 3.º, do Decreto n.º 2-A/2020, de 2 de abril, criminalizando-a, logrou criar, ex novo, por ação exclusiva do Governo, sem autorização da Assembleia da República, um inédito tipo legal de crime de desobediência.

53. Esta conclusão, que procuraremos fundamentar, leva-nos a concordar com o teor do decidido pela Mm.ª Juíza recorrida e a convergir, a final, com o, por ela, sustentado.

54. A matéria sobre a qual o Governo legislou no referido artigo 3.º, n.º 2, do Decreto 2-A/2020, de 2 de abril, é, indubitavelmente, do domínio da definição de um crime e dos respetivos pressupostos e, por isso mesmo, e por força do previsto na alínea c), do n.º 1, do artigo 165.º, da Constituição da República Portuguesa, matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.

55. Ora, a Assembleia da República não autorizou, em qualquer momento relevante, o Governo a legislar sobre a criação e definição de um novo tipo legal de crime de desobediência, designadamente o resultante da violação da obrigação de confinamento por parte dos cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa, nos termos do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 3.º, do Decreto n.º 2-A/2020, de 2 de abril.

56. Assim, torna-se evidente ter o Governo legislado sobre matéria excluída da sua competência constitucional, em violação do disposto no já mencionado artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa, o que consubstancia uma inconstitucionalidade orgânica porque violada uma norma de competência.

57. Dito isto, cumpre-nos apurar se, ainda assim, poderia o Governo ter legislado sobre a referida matéria sem ofender a Constituição, atento o contexto jurídico-constitucional conformado pelo Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, que declarou o estado de emergência.

58. Acontece que a Constituição da República Portuguesa é inequívoca ao prescrever no n.º 7 do seu artigo 19.º que “[a] declaração do estado de sítio ou do estado de emergência só pode alterar a normalidade constitucional nos termos previstos na Constituição e na lei, não podendo, nomeadamente afetar a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania (…)”.

59. Acresce ainda, que a própria Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, que regula o regime do estado de sítio e do estado de emergência, numa formulação muito semelhante à redação da norma transcrita e reforçando o comando constitucional identificado, também determina no seu artigo 3.º, n.º 2, que “[a] declaração do estado de sítio ou do estado e emergência só pode alterar a normalidade constitucional nos termos previstos na própria Constituição e na presente lei, não podendo, nomeadamente afetar a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania (…)”, dela não constando, obviamente, qualquer disposição que contrarie esta asserção ou que autorize o Governo a legislar em matéria de reserva relativa de competência da Assembleia da República.

60. Para além disto, atendendo ao conteúdo da interpretação normativa desaplicada ou, melhor dizendo, cuja aplicação foi recusada, devemos ainda concluir que a mesma tem carácter inovatório, uma vez que os pressupostos de que o legislador ordinário faz...

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