Acórdão nº 877/22.9JAPRT-A.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 07 de Setembro de 2022

Magistrado ResponsávelJOSÉ ANTÓNIO RODRIGUES DA CUNHA
Data da Resolução07 de Setembro de 2022
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Processo n.º 877/22.9JAPRT-A.P1 Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto I. RELATÓRIO Por despacho de 31.05.2022, o Senhor Juiz de Instrução Criminal do Porto indeferiu a obtenção de dados de tráfego telefónico requerida pelo Ministério Público, invocando o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, de 19.04, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas dos art.ºs 4.º, 6.º e 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17.06.

*Inconformado, recorreu o Ministério Público.

Termina a motivação do recurso com as seguintes conclusões [transcrição]: 1 - Com a decisão proferida pelo Tribunal Constitucional no Ac. 268/2022, de 19-4, os dados de tráfego e de localização passíveis de serem conservados pelas operadoras de telecomunicações podem ser obtidos por força da aplicação articulada dos arts. 167°, n° 1, 187°, n° 1, al. a), 4, al. a), 189°, n° 2, do CPP, e, na parte aplicável, dos arts. 2º, n° 1, als. d) e e) e 6º e ss da Lei 41/2004, de 18-8, do art. 48°, n° 7, da Lei 5/2004, de 10-2, e do art. 10°, da Lei 23/96, de 26-7; 2 - Após a entrada em vigor da Lei 32/2008 e da LCC foi-se estabelecendo o entendimento na doutrina e jurisprudência de que foi revogada tacitamente a extensão do regime das escutas telefónicas, previsto nos arts. 187° e ss, mormente no art. 189°, n° 2, do CPP, às áreas das "telecomunicações electrónicas", "crimes informáticos" e "recolha de prova electrónica", passando aquela Lei a reger a obtenção dos dados aí especificados conservados e o art. 189°, n° 2, a obtenção desses dados em tempo real; 3 - O legislador nunca distinguiu, no n° 2 do art. 189° do CPP, se os dados aí contemplados e a obter por via desta norma são dados conversados ou gerados em tempo obtenção desses dados, conservados ou em tempo real, sendo que antes da entrada em vigor da Lei 32/2008, a norma habilitante para a obtenção de dados, conservados ou em tempo real, era o n° 2 do art. 189° do CPP; 4 - Apenas com a vigência da referida Lei, agora declarada inconstitucional, por se tratar de um regime específico para dados conservados, se passou a considerar que o âmbito de aplicação do n° 2 do art. 189°, n° 2, do CPP ficaria restrito, quanto a esses elementos, a dados a obter em tempo real; 5 - Como quer que seja, por força do Ac. 268/2022, de 19-4, e nos termos do art. 282°, n° 1, da CRP, o art. 189°, n° 2, do CPP, relativamente ao qual não houve nessa parte revogação expressa sequer, é a norma habilitante para obter os dados de trafego e localização, conservados ou em tempo real, sendo que, quanto aos conservados, importa fazer a sua articulação com os regimes jurídicos que estabelecem, agora, as condições e prazo de conservação, como seja os arts. 2º, n° 1, als. d) e e) e 6º e ss da Lei 41/2004, de 18-8, o art. 48°, n° 7, da Lei 5/2004, de 10-2, e o art. 10°, da Lei 23/96, de 26-7; 6 - Ao ter indeferido a promoção do Ministério Público com a fundamentação expedida nesse segmento decisório, o Tribunal a quo violou o disposto nos arts. 167°, n° 1, 187°, n° 1, al. a), 4, al. a), 189°, n° 2, do CPP, e, na parte aplicável, os arts. 2º, n° 1, als. d) e e) e 6º e ss da Lei 41/2004, de 18-8, o art. 48°, n° 7, da Lei 5/2004, de 10-2, e o art. 10°, da Lei 23/96, de 26-7, normas que não chegou a aplicar na respectiva decisão.

Pelo exposto, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogando-se a decisão recorrida, ser autorizada a obtenção dos dados a que se reporta a promoção do Ministério Público objecto de indeferimento.

Vossas Excelências, contudo, como quer que decidam, farão, como sempre, JUSTIÇA.

**O Ministério Público junto desta Relação emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, acompanhando a posição sufragada na 1.ª Instância.

*Colhidos os vistos legais e efetuado o exame preliminar, foram os autos à conferência.

***II. FUNDAMENTAÇÃO: Objeto do recurso Atento o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do CPP, e como é consensual na doutrina e na jurisprudência, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação, sem prejuízo do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.

No caso concreto, considerando tais conclusões, a questão suscitada e que importa decidir resume-se a saber se a obtenção dos dados de tráfego e localização pretendidos pela investigação é ou não admissível.

**Decisão recorrida [transcrição]: Pese embora a brilhante argumentação expendida na promoção que antecede, considerando a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral - pelo ac.

268/2022, de 19.

ABR - do art.

º 4.

º, conjugado com o art.

º 6.

º, e do art.

º 9.

º da Lei 32/2008, de 17.

JUN e pretendendo-se a obtenção, nos presentes autos de dados de tráfego telefónico, não pode ser dada satisfação ao requerido, que vai, assim, indeferido.

*Decidindo a questão objeto do recurso Como vimos, o recorrente insurge-se contra o despacho de 31.05.2022, que recaiu sobre a promoção de 27.05.2022 e indeferiu a obtenção de dados de tráfego e localização telefónicos pretendidos pela investigação.

Para o efeito, o Tribunal a quo invocou o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, de 19.04, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas dos art.ºs 4.º, 6.º e 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17.06, por violação, quanto aos dois primeiros, do disposto nos n.ºs 1 e 4 do art.º 35.º e do n.º 1 do art.º 26.º, em conjugação com o n.º 2 do art.º 18.º, todos da Constituição, e quanto ao último, por violação do disposto no n.º 1 do art.º 35.º e do n.º 1 do art.º 20.º, em conjugação com o n.º 2 do art.º 18.º, também da Constituição.

Sustenta o recorrente que os efeitos do referido Acórdão apenas atingem as normas nele expressamente referidas e não outras normas aplicáveis, como sejam os art.ºs 189.º, n.º 2, e 167.º, n.º 1, do CPP, articulados com a Lei 41/2004, de 18.08 (art.ºs 2.º, n.º 1, als. d) e e), e 6.º e ss), com a Lei 5/2004, de 10.02 (art.º 48.º, n.º 7) e com a Lei 23/96, de 26.07 (art.º 10.º) quanto ao prazo de conservação (6 meses), verificados que sejam os respetivos pressupostos. Considera, pois, que é o art.º 189.º, n.º 2, do CPP, relativamente ao qual não houve revogação expressa, a norma habilitante para obter os dados de trafego e localização, conservados ou em tempo real, sendo que, quanto aos conservados, importa fazer a sua articulação com os regimes jurídicos que estabelecem, agora, as condições e prazo de conservação.

Remata invocando que os dados de trafego e de localização pretendidos são indispensáveis para a descoberta da verdade, em particular para a recolha de indícios que permitam identificar todos os autores dos factos, estando preenchidos os pressupostos previstos nos art.ºs 187.º, n.º 1, al. a), n.º 4, al. a), e 189.º, n.º 2, do CPP, conjugados, na parte aplicável, com as demais normas acima expostas.

Vejamos.

A Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, regula a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas coletivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, deteção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, transpondo para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, e que altera a Diretiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Junho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no sector das comunicações eletrónicas.

Como escreve Maribel González Pascual[1], a Diretiva n.º 2006/24/CE, entretanto declarada inválida pelo Acórdão de 8 de abril de 2014 do TJUE[2], foi talvez a norma mais polémica da UE. Aprovada após os atentados de Madrid (2004) e de Londres (2005), previa a conservação de determinados dados pessoais de modo a poderem ser disponibilizados para efeitos de investigação, deteção e repressão de crimes graves tal como definidos no direito nacional de cada Estado-Membro [...]como o terrorismo e o crime organizado (considerando 21).

Com esse objetivo, a Diretiva estabelecia a obrigação de os fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas conservarem, durante um mínimo de seis meses e um máximo de dois anos, dados relativos às comunicações (…) A controvérsia gerada pela Diretiva da conservação de dados refletiu-se na sua transposição. Alguns Estados Membros resistiram em adotar, no prazo previsto, as disposições propostas para dar cumprimento à Diretiva (o que levou a Comissão a instaurar ações de incumprimento contra a Grécia[3], Áustria[4], Irlanda[5], Suécia[6], Países Baixos[7]), enquanto noutros Estados Membros a questão chegou aos tribunais nacionais. Em termos gerais, os aspetos mais controvertidos consistiam em saber se a conservação indiscriminada...

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