Acórdão nº 517/22 de Tribunal Constitucional (Port, 14 de Julho de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Lino Rodrigues Ribeiro
Data da Resolução14 de Julho de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 517/2022

Processo n.º 493/22

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro

Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, o primeiro veio interpor recurso de constitucionalidade ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), da decisão proferida por aquele tribunal no dia 7 de abril de 2022, que indeferiu a reclamação apresentada pelo arguido do despacho proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães no dia 15 de março de 2021, que não admitiu, com fundamento no disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea e) do Código de Processo Penal (CPP), o recurso por aquele interposto da decisão proferida pelo mesmo Tribunal da Relação no dia 24 de janeiro de 2022.

O arguido foi condenado na 1.a instância em pena única conjunta de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão efetiva, tendo interposto recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão datado de 24 de janeiro de 2022, para o que aqui mais releva, revogou o acórdão recorrido na parte em que determinou o cumprimento efetivo em estabelecimento prisional da pena de prisão aplicada, determinando que a mesma fosse cumprida em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, mais consignando que a 1.ª instância deveria proceder à realização das diligências e obter os consentimentos necessários para o efeito e de que, não sendo possível a concretização das condições técnicas, o condenado teria de cumprir a pena em estabelecimento prisional.

Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, recurso que não foi admitido, por despacho do Tribunal da Relação datado de 15 de março de 2022, com fundamento, essencialmente, no artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP.

Ainda inconformado, o arguido apresentou reclamação daquele despacho ao abrigo do disposto no artigo 405.º do CPP, na sequência do que foi prolatada a decisão recorrida, a referida decisão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de abril de 2022.

2. O arguido interpôs então recurso de constitucionalidade, tendo concluído, no essencial, nos seguintes termos:

«CONCLUSÕES

(...)

H. Foi na reclamação, apresentada ao abrigo do disposto no artigo 405.º do CPP, para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, pugnando pela admissão do Recurso para o STJ, que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade.

I. Com efeito, o ora recorrente pretendeu, ali, que o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça apreciasse a interpretação normativa que resultou da conjugação da alínea b) do n.º 1 do artigo 432.º e alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º, ambos do Código de Processo Penal (doravante designado por CPP), segundo as quais não é admissível recurso "de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos"

J. Ora, o ali reclamante, aqui recorrente, não pôde concordar - nem concorda - com o entendimento perfilhado pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, por violar princípios constitucionalmente consagrados,

K. De facto, entende o ora recorrente que violou o Tribunal da Relação de Guimarães o princípio do direito ao recurso enquanto garantia de defesa em processo criminal (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).

L. O direito ao recurso constitui uma das mais importantes dimensões das garantias de defesa do arguido em processo penal, encontrando-se expressamente inscrito entre os pilares constitucionais do Direito do Processo Penal da República Portuguesa.

M. Constituindo uma garantia essencial de defesa, constitucionalmente reconhecida, o direito ao recurso, representando, portanto, um inegável limite à liberdade conformadora do legislador quanto à delimitação das decisões de que cabe recurso e quanto à definição do regime de recursos em processo penal.

N. Com efeito, com relevância para o caso, apesar da sua interligação, deve distinguir-se a garantia do "direito ao recurso" da garantia da existência de um "duplo grau de jurisdição".

O. Tratam-se de conceitos autónomos e não confundíveis: por "direito ao recurso" entende- se - de um modo geral - a faculdade conferida à parte vencida de suscitar o reexame de uma decisão que lhe foi desfavorável e da qual discorda com o intuito de corrigir erros e de ver proferida uma decisão que vá ao encontro das suas expetativas; por seu lado, com a menção a "duplo grau de jurisdição" pretende-se significar a possibilidade de reexame efetuado por um órgão jurisdicional distinto e hierarquicamente superior ao que apreciou a causa pela primeira vez, com prevalência sobre este.

P. Ora, a garantia constitucional do direito ao recurso não se esgota na existência de duplo grau de jurisdição: para se verificar que a garantia de duplo grau de jurisdição concretiza o direito de recurso, é indispensável - e como tal tem sido reconhecido na jurisprudência do Tribunal Constitucional - que a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto se apresente como tuteia suficiente das garantias de defesa constitucionalmente consagradas.

Q. No caso da norma em apreciação no presente recurso, o arguido é confrontado com uma decisão da Relação, em segunda instância, que modificando o acórdão (que aplicou pena privativa da liberdade) da primeira instância, altera os pressupostos do cumprimento da pena.

R. Perante esta decisão condenatória - que o priva da liberdade por um período de tempo que pode ir até cinco anos, e com termos diferentes dos proferidos em primeira instância, é negado pela lei ao arguido o direito de interpor recurso.

S. A tutela constitucional do direito de recorrer de decisões condenatórias e de decisões que restringem direitos fundamentais (como é o caso de uma condenação em pena de prisão, efetiva ou domiciliária, que restringe, designadamente, a liberdade do arguido) em processo penal imporia, prima facie, a possibilidade de uma reapreciação dessa decisão por uma outra instância, o que, no caso, não teve concretização.

T. Argumenta-se que, nesse caso, o direito de recurso do arguido teria sido assegurado pela existência de um segundo grau de jurisdição, na medida em que o seu direito de defesa se encontra protegido peia possibilidade de contra-aiegar no âmbito do recurso interposto peio Ministério Público da decisão de primeira instância.

U. Porém, não se pode acompanhar esta posição: na situação em presença, o segundo grau de jurisdição não assegura o respeito devido pelo direito de recurso decorrente do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.

V. Nos casos em que existe uma decisão de aplicação de pena privativa de liberdade da primeira instância, alterada em segunda instância, não é assegurada no julgamento do recurso uma reapreciação das consequências jurídicas do crime.

W. Trata-se, pelo contrário, de uma decisão inovadora com consequências fundamentais na posição jurídica do arguido, designadamente na sua liberdade, relativamente à qual é negado o acesso a uma reapreciação por um tribunal superior.

X. Na verdade, uma situação em que a uma condenação em pena privativa de liberdade de primeira instância, sucede a condenação no cumprimento da pena em regime de permanência na habitação, no tribunal de recurso, implica necessariamente o surgimento de uma parte da decisão que se apresenta como integralmente nova: o processo decisório concernente à determinação da medida da pena a aplicar,

Y. A decisão que define a pena de prisão em regime de permanência na habitação é proferida pelo Tribunal da Relação sem que anteriormente, designadamente em primeira instância, haja qualquer apreciação sobre a pena a impor ao arguido.

Z. O arguido vê-se confrontado com uma pena de privação de liberdade, em regime diferente do decidido em primeira instância, e cujo fundamento e medida não tem oportunidade de questionar em sede alguma,

AA. Neste caso, os critérios judiciais de determinação, em concreto, da medida adequada da pena escapam a qualquer controlo.

BB. Existem, portanto, nesta situação, dimensões do juízo condenatório que não são objeto de reapreciação. Pelo menos quanto a estas matérias, existe uma apreciação peia primeira vez apenas na instância de recurso, sem que exista a previsão legal de um segundo grau de jurisdição.

CC. Neste contexto, aceitar a irrecorribilidade da decisão condenatória, em situações como a configurada peia norma em apreciação, seria admitir que o direito fundamental ao recurso, enquanto expressão das garantias de defesa do arguido, consagradas no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição, não garante sequer a reapreciação por uma segunda instância da decisão que define a pena de prisão efetiva.

DD. Esta seria, assim, uma decisão do juiz que se apresentaria como livre de qualquer controlo.

EE. O direito do arguido ao recurso da sua condenação, neste caso, não se pode bastar com o recurso interposto.

FF. O conteúdo típico do direito ao recurso abrange o efetivo poder de suscitar uma reapreciação da decisão jurisdicional desfavorável.

GG. No caso de uma condenação em pena de prisão a cumprir em regime de permanência na habitação definida pelo tribunal de segunda instância, após aplicação de uma pena de prisão efetiva, impedir o arguido de rebater, com argumentos próprios, os fundamentos da medida da privação da sua liberdade, que pode estender-se até cinco anos, consubstancia uma ablação total daquele direito que é inadmissível pois atinge as suas garantias essenciais de defesa ao inviabilizar a possibilidade de contraditar os critérios de escolha e determinação da medida da pena,

HH. A interpretação da norma objeto do presente recurso, ao determinar a irrecorribilidade do acórdão da...

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