Acórdão nº 509/22 de Tribunal Constitucional (Port, 14 de Julho de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Joana Fernandes Costa
Data da Resolução14 de Julho de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 509/2022

Processo n.º 278/2022

3ª Secção

Relatora: Conselheira Joana Fernandes Costa

Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. No âmbito dos presentes autos, vindos do Juízo Local Cível de Marco de Canaveses, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (em seguida, «LTC»), do despacho proferido por aquele Tribunal, em 3 de março de 2021, que recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade material, do artigo 148.º do Código Civil, «na interpretação de que pode o Tribunal, no âmbito do presente processo de acompanhamento de maior, determinar ou autorizar o internamento compulsivo do maior acompanhado, a requerimento da acompanhante».

2. Por sentença proferida em 6 de outubro de 2020, foi determinado o acompanhamento do aqui recorrido, com a aplicação da medida de representação geral, ficando o mesmo impossibilitado de celebrar negócios da vida corrente e de exercer dos seguintes direitos pessoais: direito de casar ou de constituir situações de união, de procriar, perfilhar ou adotar, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de celebrar atos de disposição, onerosos ou gratuitos, em vida ou por morte, de outorgar procuração ou celebrar contrato de mandato, consentir ou recusar tratamento médico e de testar e votar.

O acompanhamento fundamentou-se no facto de o requerido padecer de debilidade mental privativa da capacidade de se orientar no tempo, no espaço e na situação, associada a doença metabólica congénita, tendo sido designada como acompanhante B., sua mãe.

Em 18 de fevereiro de 2021, a acompanhante, através de requerimento apresentado nos autos de acompanhamento de maior, requereu o «internamento compulsivo» do beneficiário «nos termos e para os efeitos do perpetuados na Lei de Saúde Mental», alegando a prática de factos suscetíveis de configurar ilícitos criminais.

Por despacho proferido em 3 de março de 2021, o Tribunal recorrido decidiu «indeferi[r] o requerido pela acompanhante», recusando a aplicação do disposto no artigo 148.º do Código Civil, «na interpretação de que pode o Tribunal, no âmbito do presente processo de acompanhamento de maior, determinar ou autorizar o internamento compulsivo do maior acompanhado, a requerimento da acompanhante» e determinando a comunicação urgente do requerimento em causa «ao Delegado de Saúde da área de residência da Beneficiário/Acompanhante para os fins previstos na Lei de Saúde Mental, nomeadamente para internamento compulsivo de urgência».

3. Na parte que aqui releva, a decisão recorrida tem o seguinte teor:

« Por sentença proferida em 06.10.2020, foi determinado o acompanhamento de A., aplicando-se a medida de representação geral, impossibilitando-o, portanto, de celebrar negócios da vida corrente e de exercício dos seguintes direitos pessoais: os direitos de casar ou de constituir situações de união, de procriar, perfilhar ou adotar, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de celebrar atos de disposição, onerosos ou gratuitos, em vida ou por morte, de outorgar procuração ou celebrar contrato de mandato, consentir ou recusar tratamento médico, testar e votar; e designando-se como Acompanhante do Beneficiário, B., mãe deste.

A referida B. veio requerer agora o internamento compulsivo do Beneficiário (cfr. ref.ªs 6913273 e 6929640), invocando que este é violento e agressivo, molestando-a psicológica, física e até sexualmente; não permitindo que descanse, até mesmo durante a noite; dirigindo-lhe ameaças de morte, utilizando, quase sempre, uma faca; apelidando-a de “puta”; danificando vários objetos no interior da casa de habitação de ambos, e alimentos.

A Requerente conclui referindo que o Beneficiário representa um perigo quer para si, quer para a sociedade em geral e, em concreto, para a Acompanhante que receia pela sua própria vida e integridade física.

O Ministério Público promoveu que se aprecie e decida a autorização judicial para o internamento do maior acompanhado, por apenso.

Cumpre apreciar e decidir.

Dispõe o art. 148.º do Código Civil que:

“1- O internamento do maior acompanhado depende de autorização expressa do tribunal.

2- Em caso de urgência, o internamento pode ser imediatamente solicitado pelo acompanhante.”

No caso concreto, a situação descrita pela Acompanhante é muito grave, configurando a prática de ilícito criminal de natureza pública, tendo levado a que este Tribunal, por despacho de 22.02.2021, determinasse a remessa de certidão do aludido requerimento aos serviços do Ministério Público para os fins tidos por convenientes.

A Acompanhante requer, neste processo de acompanhamento de maior, o imediato internamento do Acompanhado. Não indica o hospital ou estabelecimento de saúde onde pretende o internamento, antes indicando que se trata de internamento compulsivo nos termos da Lei de Saúde Mental.

Ainda assim, o peticionado internamento para o presente processo de acompanhamento apenas pode ser aquele a que o art. 148.º do Código Civil, já citado, se refere – é necessariamente um caso de privação ao direito à liberdade constitucionalmente previsto pelo art. 27.º.

Dispõe o art. 27.º da Constituição da República Portuguesa que:

“1- Todos têm direito à liberdade e à segurança.

2- Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.

3- Excetua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos seguintes:

a) Detenção em flagrante delito;

b) Detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos;

c) Prisão, detenção ou outra medida coativa sujeita a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou de expulsão;

d) Prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente;

e) Sujeição de um menor a medidas de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente;

f) Detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal ou para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente;

g) Detenção de suspeitos, para efeitos de identificação, nos casos e pelo tempo estritamente necessários;

h) Internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente.

4- Toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos.

5- A privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer”.

Contrariamente ao que impõe o n.º3 do referido art. 27.º da Constituição da República Portuguesa, o regime do Maior Acompanhado, através da Lei n.º49/2018, de 14.08, não determina de modo inequívoco qual o tempo – designadamente quais os prazos a cumprir na tramitação processual respetiva, nem qual duração máxima do internamento, o que se impunha até pela menção a que as medidas adotadas o sejam pelo “período de tempo mais curto possível” como impõe o n.º4 do art. 12.º da Convenção das Nações Unidas dos Direitos das Pessoas com Deficiência.

Existe apenas uma breve referência no disposto no n.º2 do art. 899.º do Código de Processo Civil ao período temporal admissível para o internamento, ou seja, “nunca superior a um mês”, mas esse normativo legal refere-se à realização de exame pericial como diligência fundamental à decisão de aplicação de medidas de acompanhamento e apenas para essa finalidade (cfr., em sentido diverso, o ac. do TRL de 30.06.2020, proc. n.º2669/19.3T8PDL-A.L1-7).

Acresce que o regime do Maior Acompanhado não prevê as condições em que ocorreria o internamento a que alude o art. 148.º do Código Civil, nomeadamente quando e como se cumpriria o disposto no n.º4 do art. 27.º da Constituição, o que redundaria até numa incompreensível discriminação relativamente aos internandos no âmbito da Lei de Saúde Mental, e seria contrário ao princípio da igualdade previsto pelo art. 13.º da Constituição da República Portuguesa.

Por fim, os maiores acompanhados não são, como se sabe, necessariamente portadores de anomalia psíquica para efeitos da alínea h) do n.º3 do art. 27.º da Constituição da República Portuguesa (cfr. Inês Espinhaço Gomes, O Internamento do Maior (Des)Acompanhado à Luz da Constituição, Julgar n.º41, 2020, pp. 94, pronunciando-se pela inconstitucionalidade do art. 148.º do Código Civil).

Assim, o internamento compulsivo de maior acompanhado no âmbito deste processo de acompanhamento e nos termos do art. 148.º do Código Civil, na redação da Lei n.º49/2018, de 14.08, não se confunde com o internamento compulsivo no âmbito da Lei de Saúde Mental, até por ausência de remissão legal e não encontra consagração constitucional.

Dispõe o art. 204.º da Constituição da República Portuguesa que “(…) não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou princípios nela consignados”.

O art. 148.º do Código Civil aplicável às circunstâncias do caso concreto supra descritas é, a nosso ver, inconstitucional.

Pelo exposto, e nos termos do art. 204.º da Constituição da República Portuguesa, decido recusar a aplicação, com fundamento na sua inconstitucionalidade, do...

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