Acórdão nº 519/18.7T9SSB-A.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 07 de Junho de 2022

Magistrado ResponsávelF
Data da Resolução07 de Junho de 2022
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: 1. RELATÓRIO 1.1. Nos autos de Inquérito n.º 519/18.7T9SSB, que correm termos nos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – DIAP – 2ª Secção de Setúbal, foi proferido despacho judicial, pelo Senhor Juiz de Instrução Criminal, em 18/03/2022, que determinou que os suportes contendo comunicações – estando em causa, entre outras, comunicações de correio eletrónico – que não foram consideradas relevantes para a prova e, por isso, não incorporadas nos autos, fossem destruídos, após o trânsito em julgado do mesmo despacho.

1.2. Inconformado com o assim decidido, o Ministério Público interpôs recurso, apresentando a correspondente motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões: «1 - O presente recurso tem por objeto despacho que, depois da realização de diligência de obtenção de prova electrónica, determinou que “[…] os suportes contendo as demais comunicações não incorporadas (fls. 839, 952, 954 e 1197), serão após trânsito do presente despacho, destruídos uma vez que a sua entrega às pessoas a quem os dados foram apreendidos, se mostra inútil, porquanto manterão acesso aos suportes digitais originais.” 2 - Os suportes contendo o correio electrónico e comunicações de natureza semelhante não seleccionadas e apreendidas resultam de apreensões concretizadas a equipamentos de diferentes intervenientes processuais. Assim o suporte de fls. 839, 952 e 954 resulta de apreensão em dois equipamentos informáticos pertencentes a AAA, até à data testemunha nos autos, enquanto que o suporte de fls. 1197 resulta de apreensão concretizada em equipamento informático pertencente a BBB, arguido nos autos; 3 - Olhando ao desenho constitucional e legal do processo penal, numa interpretação do art.º 17.º da Lei do Cibercrime em conformidade com a estrutura acusatória do processo, consagrada no artigo 32.º, n.º 5, da CRP, na fase de inquérito há que respeitar a função do Ministério Público como titular do inquérito e do juiz de instrução como juiz de garantias. Isto é, no inquérito o Juiz de instrução deve ser apenas juiz que vela pelo cumprimento de liberdades e garantias: Juiz de controlo, não de iniciativa.

4 - Independentemente da relação entre o regime de apreensão de correspondência previsto no Código Processo Penal (cfr. artigo 179.º, n.º 1) e a previsão do art.º 17.º da Lei do Cibercrime, não nos podemos olvidar de que as provas – in casu correio eletrónico e registos de comunicações semelhantes -, serão, necessariamente, sindicadas quanto à sua validade e pertinência, em sede de julgamento, tal como resulta do disposto nos artigos 310.º, n.º 2 e 340.º, ambos do Código Processo Penal.

5 - Nesta medida, “a eventual destruição das provas, do mesmo modo se tem de relegar para momento posterior às fases da investigação e da instrução, nomeadamente quanto à destruição de documentos que fazem parte do inquérito, concretamente de correio electrónico apreendido, quer se tenha por entendimento que o correio electrónico apreendido se encontra na forma “física” no processado, ou se entenda que se equiparam a correspondência pessoal, com enquadramento, o certo é que só é pertinente a sua destruição após o trânsito em julgado da decisão que puser termo ao processo, não podendo ser ordenada a sua destruição em fase anterior do processo, que esteja ainda em curso.”.

[1] 6 - O que ainda se torna mais verdadeiro nos presentes autos, que se encontram ainda em fase de inquérito e, portanto, de investigação, já que o objecto do processo pode ainda sofrer alterações podendo, em momento futuro, ser necessário recorrer a elementos de prova constantes dos suportes informáticos que o Mmo. Juiz a quo pretende que sejam destruídos.

7 - Tal conclusão é também verdadeira por motivos distintos, já que os elementos de prova que poderão estar contidos em tal suporte poderão ser úteis para esclarecer a verdade material em causa nos autos, quer ela seja desfavorável ou favorável ao arguido.

8 - Questão semelhante foi decidida por Acórdão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, de 04.06.2019 (caso Sigurour Einarsson e outros vs. Islândia) e em que o tribunal considerou que seria adequado que tivesse sido dada à defesa a possibilidade de realizar uma busca por provas potencialmente ilibatórias e que qualquer recusa em autorizar tal acesso poderá constituir uma ofensa ao artigo 6.º, n.º b) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, onde se estatui que, no âmbito do direito a um processo equitativo, o arguido tem, no mínimo, os seguintes direitos: “[...] dispor do tempo e dos meios necessários para a preparação da sua defesa”. Ou seja, a prova não considerada, ainda, pelo Ministério Público poderá vir a ser importante, também, para a perspectiva que o arguido quiser trazer ao processo.

9 - Assim, no caso dos autos, e sendo certo que o enquadramento legal e constitucional que rege a actuação do Ministério Público impõe-lhe o exercício da acção penal e a defesa da legalidade democrática (cfr. art. 219.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, art. 4.º, n.º 1, al. do Estatuto do Ministério Público e art. 53.º , n.º 1, do Código de Processo Penal), o que pode determinar que esta magistratura venha a pugnar por garantias processuais do arguido, também a destruição dos suportes em causa poderá significar que o arguido, no futuro, não terá acesso a meios de prova que possam ser favoráveis à sua pretensão. E quanto a isto não deverá relevar a argumentação dispendida pelo Mmo. Juiz a quo de que “ [...]a sua entrega às pessoas a quem os dados foram apreendidos, se mostra inútil, porquanto manterão acesso aos suportes digitais originais […] já que tal afirmação além de poder não corresponder à verdade, face à volatilidade dos conteúdos em causa (correio electrónico e registos de comunicações semelhantes), não é aplicável sempre que os dados informáticos provenham de distintas fontes, como é o caso dos autos em que tais dados foram apreendidos a uma testemunha e ao arguido. Manter a decisão ora recorrida seria assumir que arguido e testemunha se deveriam concertar entre si e partilhar eventuais elementos de prova que fossem úteis a um deles ou a ambos quando o decurso dos autos poderá até revelar que as suas posições no processo são conflituantes.

10 - O que nos leva a concluir que a decisão de proceder à destruição de tais dados informáticos padece de inconstitucionalidade, por violação do artigo 32.º, n.º 1 da CRP, na medida em que permite a destruição de elementos de prova que poderão ser relevantes, também para o arguido, sem que haja garantias, pelos motivos já explanados, de que este deles tenha...

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