Acórdão nº 280/19.8TXPRT-I.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 20 de Abril de 2022

Magistrado ResponsávelJOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO
Data da Resolução20 de Abril de 2022
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Processo: 280/19.8TXPRT-I.P1 Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto: I – RELATÓRIO Por decisão, datada de 30.11.2021, o Tribunal de Execução de Penas do Porto, indeferiu a concessão de liberdade condicional na metade da pena que cumpre o recluso AA.

Inconformado com tal decisão, dela recorreu o recluso, extraindo da respetiva motivação do recurso as seguintes (transcritas) conclusões: (…)*O Exmº Magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu, entendendo que o recurso não merece provimento, e concluindo a sua resposta nos seguintes termos (…):--Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, concluindo também pela improcedência do recurso.

--Cumprida a notificação a que se refere o art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, mantendo o recorrente as razões do seu recurso, foi efetuado o exame preliminar e, colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

* 2. FUNDAMENTAÇÃO Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior - artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

O essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, excetuadas as questões de conhecimento oficioso” – cfr. Ac. do STJ, de 15.04.2010, in http://www.dgsi.pt.

Posto isto, as questões submetidas ao conhecimento deste tribunal: 1. Da falta de fundamentação da decisão sobre a liberdade condicional 2. Dos pressupostos materiais da liberdade condicional: a violação dos princípios da adequação, da proporcionalidade e da necessidade.

-Da falta de fundamentação da decisão sobre a liberdade condicional O recorrente veio arguir a nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), com referência ao n.º 2, do artigo 374.º, ambos do Código de Processo Penal.

Concretamente invoca que não foram “enumerados os factos ou motivos que justificassem a recorrida decisão e muito menos foi dado suporte factual probatório à recorrida decisão. Não basta aferirmos motivos gerais e generalistas, sem qualquer explanação fáctica dos mesmos”.

De acordo com o princípio da legalidade (art. 118, do Código Processo Penal), a falta ou insuficiência de fundamentação da decisão que conceda ou não a liberdade condicional não consubstancia uma nulidade, antes uma mera irregularidade [1].

Todos os vícios que inquinem atos processuais, que não sejam expressamente feridos de nulidade, constituirão uma irregularidade (art.123º).

Tratando-se de mero despacho, nenhuma norma impõe que a decisão sobre liberdade condicional tenha uma estrutura idêntica à da sentença, isto é, sob pena de nulidade (art.379), conter a “enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal” (nº2 do art.374º do Cód. Proc. Penal).

Assim, o regime das nulidades da sentença, previsto no artigo 379, do CPP, é inaplicável à decisão, na forma de despacho e não de sentença, sobre a liberdade condicional.

Inexiste qualquer especial regime normativo – disciplinante quer da forma quer do conteúdo justificativo da decisão sobre a liberdade condicional, similar ao que o legislador reservou para as sentenças/acórdãos estabelecidas pelos artºs 374º, 375º, nº1 e 379º, nº 1 al. a).

Daí que, a falta de fundamentação da decisão recorrida constitua uma irregularidade processual (art.97º, nº5, e art.123º), mas que – no caso - afeta o valor do ato e poderá ser suprida a todo o tempo, pelo que, ainda que não seja arguida, pode ser reparada oficiosamente ou mandada reparar pela autoridade judiciária competente.

Vejamos.

O regime regra da declaração da irregularidade é o de que esta seja feita a requerimento do interessado, nos estritos termos e prazos previstos na lei, ficando sanada se não for tempestivamente arguida perante o tribunal a quo (art. 123º n.º 1).

Ressalva-se no seu nº2, a declaração e reparação oficiosa de irregularidades que possam afetar o valor do ato praticado, obviamente limitadas pelo campo de proteção da norma que deixou de observar-se.

Assim, se a norma se destina a proteger unicamente interesses de determinado interveniente/sujeito processual e este não se tiver prevalecido da faculdade de invocar o vício, a irregularidade fica definitivamente sanada, não sendo possível declará-la oficiosamente. Se estiver em causa norma ordenadora ou que tenha subjacente a concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de Direito material, já pode ser declarada oficiosamente sem qualquer restrição.

O recorrente não arguiu, tempestivamente, perante a autoridade judiciária respetiva e nos termos legalmente previstos, a existência de qualquer irregularidade que afetasse a decisão recorrida.

Resta, pois, analisar se o caso pode ser subsumido à previsão do n.º2, do citado art.123º.

Nos termos do art.205º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos tribunais - que não sejam de mero expediente - são fundamentadas na forma prevista na lei.

A Constituição não determina o alcance do dever de fundamentar as decisões judiciais, remetendo para a lei a definição do respetivo âmbito e extensão.

Não sendo uniformes as exigências constitucionais de fundamentação relativamente a todo o tipo de decisões judiciais, algumas delas hão-de ser objeto de um dever de fundamentar de especial intensidade, mormente em matéria penal as decisões finais condenatórias - acórdão TC n.º 680/98.

O n.º5 do artigo 97.º, do Código de Processo Penal, estabelece, no âmbito do processo penal, o núcleo central da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais.

Segundo o disposto no art.97º n.ºs 1 e 5, os despachos e sentenças dos juízes constituem atos decisórios necessariamente fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito que os sustentam.

Não decorrendo deste preceito genérico qual o grau exigível de fundamentação em cada ato decisório, haverá que ponderar relativamente a cada tipo de decisão o grau exigível de especificação dos fundamentos de facto e de direito que lhe subjazem.

Tratando-se de decisões com repercussão na esfera dos direitos, liberdades e garantias das pessoas – como é o caso da decisão que versa sobre a concessão da liberdade condicional –, é de considerar que se impõe uma especial atenção na fundamentação, “devendo aquelas revelar os motivos de facto e as razões de direito que conduziram ao veredicto concretamente emitido, de modo a permitir avaliar cabalmente à parte, ao tribunal de recurso e à comunidade o porquê da decisão” [2].

Com efeito, tal exigência, além da compreensão das decisões pelos cidadãos, especialmente pelos interessados, tem em vista o controlo crítico, por via de recurso, da lógica e transparência da decisão, constituindo fator de legitimação do poder jurisdicional e uma garantia de observância e respeito pelos princípios da legalidade, imparcialidade e independência, obstando a decisões arbitrárias.

Daí que a fundamentação de ato decisório deva ser “objectiva, clara e rigorosa e exteriorizar-se no respetivo texto de modo que se perceba qual o seu sentido e os argumentos lógicos que compõem o seu substrato racional”, estando em causa “a transparência democrática no exercício da função jurisdicional e a boa administração da justiça, interesses supra partes que justificam, se for esse o caso, a intervenção oficiosa visando a sanação do vício” – cfr. ac RP 15-04-2015 (Maria Deolinda Dionísio) www.dgsi.pt.

Consequentemente, na medida em que a irregularidade, por falta de um dever especial de fundamentação na decisão recorrida, atinge valores e princípios que extravasam o interesse dos concretos sujeitos processuais, deve a mesma ser declarada oficiosamente pelo tribunal de recurso e determinada a sua reparação pelo tribunal a quo, nos termos e ao abrigo do disposto no art.123º n.º 2, ocorrendo a invalidade de todos os efeitos desse ato e de todos os subsequentes dele dependentes – cfr. RL 24-02-2010 (Maria José Costa Pinto), Ac RG 27-05-2019 (Fátima Furtado), o ac RP 15-04-2015 (Maria Deolinda Dionísio) www.dgsi.pt, RP 31-05-2017 (Neto Moura), www.dgsi.pt. Também ATRG de 5/1/2004 Proc. 293/04.1, de 12/2/2007 Proc. 2335/06.1, ATRP de 16 /12/2009 Proc. 568/09 GFVNG.P1www.dgsi.pt Neste caso, a extrema gravidade e consequências da imperfeição que atinge o ato decisório determina que o tribunal ad quem possa declarar a sua ineficácia, independentemente da sua arguição (nulidade insanável e irregularidades de conhecimento oficioso), dada a ofensa aos mais elementares direitos, liberdades e garantias individuais, sobrepondo-se aos ideias de segurança, celeridade e economia na administração da justiça penal [3].

Este poder-dever restringe-se aos casos em que esteja em causa o interesse público e não um interesse privado disponível – cfr. João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Almedina, 2019, Tomo I, anot. art.123 º, pg.

1295.

Posto isto, a verificar-se a irregularidade abrangida pela estatuição do art.123º n.º 2, por omissão dos reais fundamentos da decisão de não conceder a liberdade condicional ao recorrente, cumprirá declarar inválido o despacho correspondente (e todos os atos posteriores dele dependentes), devendo ser substituído por outro que explicite e exteriorize no respetivo texto, ainda que de forma simples e breve, os fundamentos de facto [enumeração factual e concretos meios de prova atendidos ou não e em que moldes] e de direito que sustentam a decisão, pois só assim se dará claro e completo cumprimento ao imperativo constitucional da fundamentação da decisão em causa [4].

...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT