Acórdão nº 319/22 de Tribunal Constitucional (Port, 28 de Abril de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Gonçalo Almeida Ribeiro
Data da Resolução28 de Abril de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 319/2022

Processo n.º 124/2022

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro

Acordam, em conferência, na 3.ª secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, em que é reclamante A., S.A. e reclamados o Ministério Público e a CMVM – Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, a primeira reclamou, ao abrigo do artigo 76.º, n.º 4, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), do despacho de 5 de janeiro de 2022, que não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional.

2. A ora reclamante, na qualidade de arguida em processo contraordenacional, interpôs recurso de impugnação judicial para o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão da decisão proferida pela aqui reclamada CMVM, datada de 6 de julho de 2021, que a condenou pela prática de duas contraordenações muito graves. Outros recursos foram igualmente interpostos de tal decisão por outros sujeitos processuais não partes nestes autos.

Por despacho de 19 de outubro de 2021, o Tribunal da Concorrência admitiu o recurso interposto. Tendo manifestado a intenção de decidir o recurso por mero despacho, decidiu também, para a hipótese de os sujeitos processuais a tal se oporem, indeferir a inquirição de algumas das testemunhas arroladas pela aqui reclamante no seu recurso de impugnação judicial.

Notificada de tal decisão, a arguida dela interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa. Porém, mediante despacho de 10 de novembro de 2021, o Tribunal da Concorrência não admitiu o recurso com fundamento em irrecorribilidade. A arguida reclamou de tal decisão para o Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa. Por despacho de 17 de dezembro de 2021, a Presidente desse Tribunal indeferiu a reclamação, confirmando a não admissão do recurso.

Foi então interposto o presente recurso de constitucionalidade, incidente sobre o despacho de 19 de outubro de 2021 do Tribunal da Concorrência. Pode ler-se em tal peça processual:

«A., S.A., Recorrente nos autos acima identificados, tendo sido notificado da Decisão proferida pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão em 19.10.2021, que interpretou e aplicou uma norma legal num sentido inconstitucional, vem, ao abrigo da alínea b) do n.° 1 do artigo 70.° da Lei da Organização e Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), interpor RECURSO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, da referida Decisão, o que faz nos termos e com os seguintes fundamentos.

I. PRESSUPOSTOS DO RECURSO DE CONSTITUCIONALIDADE

Nos termos dos números 1 e 2 do artigo 75.°-A da Lei do Tribunal Constitucional, são quatro os pressupostos de que depende a apresentação (e a aceitação) de um requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional.

Assim, será necessário indicar (i) a alínea do n.° 1 do artigo 70.° da Lei do Tribunal Constitucional ao abrigo da qual o recurso é interposto, (ii) a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie, (iii) a norma ou o princípio constitucional que se considera violado e, por último, (iv) a peça processual em que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade, após ser surpreendido por uma verdadeira decisão-surpresa.

Ora, in casu, verifica-se que todos os pressupostos se encontram integralmente cumpridos.

Senão, vejamos.

I) A alínea do n.° 1 do artigo 70.° da lei do tribunal constitucional ao abrigo da qual o recurso é interposto

O presente recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade é interposto ao abrigo da alínea b) do n.° 1 do artigo 70.° da Lei do Tribunal Constitucional, por se entender que o Tribunal a quo (in casu o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão) aplicou uma norma interpretada num sentido inconstitucional, como, de seguida, se especificará.

II) a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o tribunal constitucional aprecie

A norma cuja inconstitucionalidade se invoca é a que se retira do artigo 72.º, n.º 2 do Regime Geral das Contraordenações (doravante apenas "RGCO"), ao estabelecer que "compete ao juiz determinar o âmbito da prova a produzir.

Trata-se, na opinião de Recorrente, de uma norma inconstitucional, ao permitir ao julgador um poder discricionário absoluto de rejeição de meios de prova, sem estabelecer quaisquer limites a esse poder judicial.

Sintomaticamente, ao decidir com fundamento nesta norma atribuidora de um poder discricionário absoluto, a Mma. Juíza do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão rejeitou testemunhas centrais oferecidas pela ora Recorrente, todas com conhecimento direito dos factos (e, concomitantemente, aceitou testemunhas sem qualquer conhecimento direito dos factos oferecidas pela CMVM).

Também ao abrigo desta norma sem balizas, foi, no caso concreto, indeferido o pedido de realização e produção de meios de prova sobre factos novos, não discutidos na anterior fase do processo, apesar de essenciais à descoberta da verdade material, dessa forma inviabilizando totalmente essa linha de defesa.

A norma que se retira do n.° 2 do artigo 72.° do RGCO não prevê qualquer baliza limitadora da atuação judicial, deixando inteiramente nas mãos do Tribunal a decisão sobre a aceitação ou não dos meios de prova requeridos pelas partes.

Essa amplitude sem limites da norma legal, torna-a uma norma carente de um mínimo de concretização e de densificação e, como tal, inconstitucional por violação do princípio da determinabilidade das leis, bem como dos princípios da confiança e da segurança jurídica que, em última análise, se retiram do princípio do Estado de Direito, como de resto já foi reafirmado pelo Tribunal Constitucional.

III) A norma ou o princípio constitucional que se entende ter sido violado

Os princípios constitucionais que se entende terem sido violados pela norma acima identificada são - entre outros - os princípios da determinabilidade das leis, da confiança e da segurança jurídica.

Com efeito, a norma em causa afronta claramente os princípios constitucionais acima mencionados, ao permitir a um tribunal inviabilizar, na prática, o cabal exercício dos direitos de defesa do Recorrente.

Veja-se:

Em 06.07.2021, foi proferida decisão final pela CMVM, que condenou o A. pela prática de duas contraordenaçoes muito graves, consubstanciadas (i) na violação, a título doloso, do dever de divulgação de informação com qualidade, previsto no artigo 7.° do CdVM, quanto à informação divulgada nas Notas Informativas do Papel Comercial da ESI divulgadas aos clientes que subscreveram papel comercial desta entidade entre setembro e dezembro de 2013; e (ii) na violação, a título doloso, do dever de divulgação de informação com qualidade, previsto no artigo 7.° do CdVM, quanto à informação divulgada nas Notas Informativas do Papel Comercial da RIO FORTE aos clientes que subscreveram papel comercial desta entidade entre 9 de janeiro e 24 de fevereiro de 2014, aplicando-lhe uma coima única no valor de EUR 300.000,00.

Em 12.08.2021, o A. apresentou recurso de impugnação judicial do Despacho proferido pela CMVM, pugnando pela revogação da decisão administrativa, tendo, para o efeito, arrolado apenas quatro testemunhas - testemunhas com conhecimento direito dos factos e cujo depoimento é absolutamente crucial.

Não obstante, em 19.10.2021, foi proferida decisão pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão nos termos da qual decidiu indeferir "(...) a reinquirição das testemunhas já inquiridas na fase administrativa do processo (...)" por entender ser "(...) despiciendo voltar a inquirir as testemunhas sobre matérias já escamoteadas nos autos".

Sucede, porém, que a inquirição das referidas testemunhas na fase judicial - e como o A. já oportunamente esclarecera em sede de recurso de impugnação judicial - visava o esclarecimento de factos que não foram abordados na fase administrativa e/ou que se revelam determinantes para a boa decisão da causa.

Para cúmulo, concomitantemente com a rejeição das testemunhas oferecidas pela ora Recorrente, o Tribunal admitiu o depoimento de diversas testemunhas arroladas pela CMVM, que já tinham sido ouvidas em fase anterior do processo e que nem sequer tinham qualquer conhecimento direto dos factos!

A letra do artigo 72.°, n.° 2, do RGCO, ao estabelecer que "compete ao juiz determinar o âmbito da prova a produzir", é desconforme aos princípios constitucionais acima mencionados, por permitir uma atuação judicial como a que ocorreu, assim pondo em causa, designadamente, também o princípio de igualdade de armas.

A recusa de prova só é constitucionalmente aceitável, em face dos princípios do acesso aos Tribunais, da tuteia jurisdicional efetiva e da igualdade de armas, se for absolutamente excecional e for balizada por limites legalmente fixados e constitucionalmente autorizados que limite a atuação dos tribunais.

A norma que se retira do n.° 2 do artigo 72.° do RGCO não prevê qualquer baliza limitadora da atuação judicial, deixando inteiramente nas mãos do Tribunal e não da lei, os critérios sobre a aceitação ou não dos meios de prova requeridos pelas partes - o que pode gerar (e gerou, in casu) resultados absolutamente incompatíveis com as garantias de defesa dos arguidos e o direito à tutela jurisdicional efetiva.

Ora, no âmbito do poder legislativo, compete ao legislador emitir normas que limitem o poder administrativo, mas também o poder judicial a atuarem dentro dos limites da legalidade e da constitucionalidade, algo que inexiste face ao teor do disposto no n.° 2 do artigo 72.° do RGCO, que prevê uma norma em branco, transferindo para o Tribunal um poder do legislador.

A norma em apreço não define ou delimita critérios materiais mínimos no que respeita à...

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