Acórdão nº 1083/20.2T9CLD.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 30 de Março de 2022

Magistrado ResponsávelMARIA ALEXANDRA GUIN
Data da Resolução30 de Março de 2022
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Nos presentes autos de recurso referentes ao processo n.º 1083/20.2T9CLD.C1 do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria (Juízo Central Criminal de Leiria - J2), foi, mediante Acórdão, decidido: i) Julgar a acusação parcialmente improcedente e não provada e, consequentemente, absolver o arguido AA da prática dos 4 crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. nos artºs 171º nº 1 e 177º nº 1 al. a) do Cod. Penal, porque vem acusado.

ii) Julgar a acusação – com a alteração não substancial da qualificação jurídica oportunamente comunicada - parcialmente procedente e provada e, consequentemente: ii-

  1. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de crianças de trato sucessivo, p. e p. no artº 171º nº 1 do Cod. Penal, e no artº 4º do Decreto-Lei n.º 401/82 de 23/09, na pena de 18 meses de prisão.

    ii-b) Mais condenar o arguido AA a pagar à ofendida BB a quantia de € 1.000,00 (mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais pela mesma sofridos.

    ii-c) Nos termos do disposto nos artºs 50º, 51º nº 1 al. a) e 53º nºs 3 e 4 do Cod. Penal, suspender a execução da pena de prisão de 18 meses por igual período, com regime de prova, e sob a condição de, nesse período, o arguido pagar à ofendida BB a indemnização supra fixada em ii-b), e comprovar tal pagamento nos autos.

    Inconformado, recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões (que se transcrevem): I. O crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelo art.º 171.º n.º 1 do Código Penal não se compagina com o crime de trato sucessivo, porque não encerra condutas que possam ser consideradas habituais.

    1. Admitir a condenação pela prática de crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelo art.º 171.º n.1 do Código Penal, na forma de trato sucessivo é contornar a impossibilidade legal vertida no art.º 30.º n.1 do Código Penal, pois que em causa estão bens iminentemente pessoais, violando-se o disposto no art.º 171.º do Código Penal, o que ocorreu nos autos.

    2. Foi dado como provado que entre janeiro de 2019 e março de 2020: 1. Numas ocasiões o arguido pediu à menor para lhe mexer no pénis; 2. Noutras ocasiões, o arguido pediu à menor para ela se despir, após de fora e roçava o mesmo na vagina da menor, o que colocava o seu pénis; 3. Em outras ocasiões, o arguido tocava com as suas mãos a vagina da menor, quando esta já se encontrava despida; 4. A última ocasião ocorreu no interior de uma tenda, onde a menor exibiu a vagina ao arguido a pedido deste.

    3. O arguido deve assim ser condenado pela prática, e concurso real, de quatro crimes de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelo art.º 171.º n.º 1 do Código Penal.

    4. Condenado o arguido, em concurso real, pela prática de quatro crimes de abuso sexual de crianças, há que condenar o arguido em quatro penas parcelares, independentes, que se deverão fixar entre os 14 meses e os 18 meses.

    5. Determinadas as penas parcelares, nos termos do art.º 77.º n.ºs 1 e 2 do Código Penal, haverá que condenar o arguido numa pena única que, no caso em apreço se deverá situar entre os 3 e os 4 anos de prisão.

    6. Não ultrapassando a pena única o limite dos 5 anos de prisão, por força das concretas circunstâncias do arguido, haverá que tal pena ser suspensa na sua execução, nos termos do art.º 50.º do Código Penal, sujeitando-se tal suspensão a regime de prova, e mantendo-se as demais condições fixadas no douto Acórdão recorrido.

    Notificado, respondeu o arguido, concluindo, designadamente, que o Acórdão a quo não padece de qualquer vício ou erro de análise ou interpretação ou de subsunção, que justifique a alteração da decisão proferida, nomeadamente o enquadramento da situação enquanto crime por trato sucessivo, praticado num número de vezes não concretamente apurado num contexto de unificação de resolução e com proximidade temporal que confere uma unidade ao facto ilícito, sendo justa, adequada e proporcional a pena aplicada.

    O digno Procurador Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando o recurso do Ministério Público em primeira instância.

    Notificado respondeu o arguido alegando não haver fundamentos para poder aceitar que estejam em causa quatro crimes de abuso sexual de menores, nem para alterar o enquadramento dos factos na figura do crime de trato sucessivo.

    Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

    * II. Fundamentação:

    1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso: Como flui do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do CPP, e de acordo com jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do STJ), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação.

      De acordo com as conclusões da motivação do recurso interposto nestes autos, são as seguintes as questões a que cabe dar resposta: 1. Da verificação de um crime de trato sucessivo ou de quatro crimes de abuso sexual em concurso efetivo; 2. Da pena aplicável.

    2. ACÓRDÃO A QUO (transcrição na parte relevante): « I - Fundamentos: a) Factos provados a.1) O arguido AA é primo da menor BB, nascida em .../.../2012.

      a.2) Em datas não concretamente apuradas, entre janeiro de 2019 até março de 2020, praticamente todos os domingos, a família do arguido e da BB reunia-se para almoçar em casa da avó, sita no (…), (…), sendo que o arguido encontrava-se com a menor BB nesse local.

      a.3) Nessas alturas referidas em a.2), o arguido AA, aproveitando-se da proximidade que tinha com a menor BB, aliciava a mesma para irem brincar os dois.

      a.4) Assim, em data não concretamente apurada, mas entre janeiro de 2019 e março de 2020, quando a BB ia brincar com o arguido AA, o arguido aproveitava-se desse facto e dizia à BB para se despir, e despia-se ele também.

      a.5) Ato continuo, o arguido pedia à menor BB para lhe mexer no pénis, o que esta acedia, fazendo com que o arguido ficasse com o pénis ereto.

      a.6) Noutras ocasiões, o arguido pedia à BB para se despir, após, o arguido colocava o seu pénis de fora e roçava o mesmo na vagina da menor BB.

      a.7) Por outro lado, em outras ocasiões, o arguido, após a BB se despir, tocava com as suas mãos na vagina da menor e dava-lhe beijinhos na vagina.

      a.8) Os atos supra descritos, tanto ocorreram na casa de banho, como no quarto da casa da avó.

      a.9) A última vez que sucedeu, foi numa tenda montada no terraço da avó da menor BB e em que esta foi ver como é que eles dormiam na tenda. O arguido AA fechou a tenda e pediu à BB para esta mostrar a vagina, o que esta acedeu.

      a.10) Ao agir da forma descrita, quis e conseguiu o arguido AA, para satisfação dos seus desejos sexuais, tirar proveito da sua relação familiar com a menor BB e manter com esta, nas diversas ocasiões de tempo e lugar descritas, atos de cariz sexual, tendo perfeita consciência de que a mesma tinha idade inferior a 14 anos e de que era sua prima.

      a.11) Atuou o arguido voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.

      Mais se provou: (…) b) Factos não provados Para além dos que ficaram descritos, não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a discussão da causa, designadamente, não se provou: i) Que a última vez, na tenda, o arguido tenha tocado com a sua mão na vagina da menor BB.

      ii) Que o arguido tenha agido contra a vontade da BB, ou que a vontade desta fosse relevante.

      iii) Que o arguido não tenha praticado quaisquer atos de cariz sexual na pessoa da menor BB.

  2. Fundamentação da Matéria de Facto d) Qualificação jurídica dos factos (…).

  3. Determinação da Medida da Pena; Da aplicação do regime especial para jovens delinquentes: (…).

    * f) Fixação de indemnização à lesada (…).

    * III - Decisão: (…).

    1. Apreciando e decidindo Atento o objeto do recurso, importam em primeiro lugar resolver a questão de saber se nos encontramos perante um crime de abuso sexual de crianças de trato sucessivo, p. e p. no artº 171º nº 1, ou perante quatro crimes abuso sexual de crianças p. e p. no artº 171º nº 1, nos termos do n. 1 do art.º 30.º (ambos os artigos do Código Penal).

    Dever-se-á aderir ao entendimento perfilhado no Acórdão recorrido, no sentido de que se está perante um crime de trato sucessivo, ou seja, há só um crime apesar de se desdobrar em várias condutas, sendo o crime tanto mais grave (no quadro da sua moldura penal), quando mais for repetido? Ou pelo contrário, como pretende o recorrente, verifica-se uma situação de concurso efetivo de quatro crimes de abuso sexual de criança, por ser este o número de vezes que se provou ter o agente preenchido a previsão típica? Vejamos.

    Em primeiro lugar, importa reconhecer que a designação de trato sucessivo, não resulta da Lei...

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