Acórdão nº 0308/18.9BEAVR de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 24 de Fevereiro de 2022

Magistrado ResponsávelCLÁUDIO RAMOS MONTEIRO
Data da Resolução24 de Fevereiro de 2022
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

ACORDAM NO PLENO DA SECÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO I. Relatório 1.

A……… - identificado nos autos – recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo, para uniformização de jurisprudência, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 152.º do CPTA, do Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte (TCAN), de 19 de março de 2021, que concedeu provimento ao recurso interposto pela CAAJ – COMISSÃO PARA O ACOMPANHAMENTO DOS AUXILIARES DA JUSTIÇA e revogou a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Aveiro, de 9 de janeiro de 2018, julgando improcedente a presente ação, na qual impugna a decisão proferida pela Diretora da Comissão de Disciplina dos Auxiliares de Justiça, de 20 de novembro de 2017, que o suspendeu preventivamente de funções no âmbito do procedimento disciplinar que contra ele corre naquela entidade.

Nas suas alegações, alegou a contradição entre o acórdão recorrido e o Acórdão do TCAS, de 10 de dezembro de 2019, proferido no Processo n.º 302/18.0BEFUN, formulando as seguintes conclusões: «1) O presente recurso visa a uniformização de jurisprudência quanto à questão fundamental de saber se a suspensão preventiva prevista no art. 18.º, n.º 1, al. a) do Estatuto do Administrador Judicial (EAJ) deve ser precedida da audiência prévia prevista no n.º 2 desse mesmo normativo ou, por outras palavras, se esta última norma é aplicável aos casos de suspensão preventiva de administradores judiciais.

2) Adiantando já eventuais linhas de contra-argumentação da Administração, diga-se que o presente recurso tem plena utilidade, porquanto em causa está o acto que determinou, de forma ilegal, a suspensão preventiva do recorrente e apesar deste já não se encontrar suspenso, a verdade é que provocou danos gravíssimos e titânicos na sua esfera jurídica, quer a nível financeiro, quer a nível da sua reputação, credibilidade e bom nome profissional, pelo que obsecra a admissão e procedência do presente recurso.

3) Em primeiro lugar, trata-se inegavelmente de uma questão fundamental de direito, dado que a audiência prévia é um instituto que constitui um dos pilares do Estado de direito e da concepção político-constitucional sobre as relações entre a Administração e particulares, acrescendo que, nestas situações, estamos perante tarefa exegética superiormente intrincada e complexa, pois que é necessário conjugar várias leis, como o EAJ, a LGTFP e ainda o CPA, sempre sob o enfoque da interpretação conforme a Lei Fundamental, sendo que o acórdão recorrido tratou, salvo o merecido respeito, a matéria de forma ostensivamente errada e em contradição com a dogmática que dimana expressamente do acórdão fundamento, sendo objectivamente útil e imprescindível a intervenção deste STA, através deste recurso para uniformização de jurisprudência – este Alto STA já decidiu sobre o carácter fundamental desta questão jurídica, nomeadamente no seu acórdão que admitiu a revista em 19/11/2020 nos presentes autos, a fls...

4) Quanto à admissão do recurso, existe uma contradição de julgados quanto à referida questão fundamental de direito, verificando-se, desde logo, a identidade dos respectivos pressupostos de facto, pois tanto no caso do acórdão recorrido (do TCA Norte proferido em 19/03/2021, nos presentes autos), como no caso do acórdão fundamento (que foi proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, no âmbito do processo n.º 302/18.0BEFUN, em 10/12/2019), a CAAJ não concedeu audiência prévia ao respectivo Sr. Administrador Judicial numa situação de aplicação de suspensão preventiva, ao abrigo do art. 18.º do EAJ – estamos, portanto, perante casos iguais e com o mesmo recorte factual.

5) Em segundo lugar, tanto no acórdão fundamento como no acórdão recorrido estamos perante a mesma questão fundamental de direito, mormente a aplicação das normas vertidas no art. 18.º do Estatuto dos Administradores Judiciais, aprovado pela Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, ou seja, a aplicabilidade ou não da audiência prévia em casos de aplicação de suspensão preventiva pela CAAJ, tendo essa questão sido tratada de forma absolutamente dissonante pelos referidos Acórdãos dos dois Tribunais Centrais Administrativos, o que demanda a admissão do presente recurso.

6) Na verdade, existe inequívoca contradição de julgados, pois, no acórdão fundamento, proferido pelo TCA Sul anteriormente, decidiu-se expressamente que uma vez que o Administrador judicial não foi ouvido previamente à decisão cautelar aplicada pela CAAJ, ocorreu "clara violação do art.º 18.º, n.º 2, da Lei n.º 22/2013, de 26-02", enquanto que, contrariamente, no acórdão recorrido, proferido pelo TCA Norte nos presentes autos, se decidiu expressamente que "o artº 18.º do Estatuto dos Administradores Judiciais (EAJ) foi integralmente cumprido, pois no n.º 2 não há qualquer imposição da audição prévia na aplicação da suspensão preventiva, e que "não se mostra previsto que a suspensão preventiva seja precedida de audiência do interessado".

7) No que ao tratamento da questão diz respeito, salvo o merecido respeito, no Acórdão recorrido, assiste-se a uma autêntica menorização da audição do arguido, numa clara intenção salvífica do acto ilegal, porquanto, desde logo, a decisão recorrida intenta degradar a audiência em formalidade não essencial, o que não seria jamais possível nesta sede sancionatória, a que acresce que a decisão não possui uma referência ao caso concreto, uma única menção específica sobre quais seriam os "pressupostos factuais e legais existentes" que se verificariam alegadamente no caso concreto, assim em total falta de fundamentação e ou ininteligibilidade, que gera nulidade (cfr. Art. 615.º, n.º 1, al. b) e c) do CPC) ou, pelo menos, em flagrante erro de julgamento e contradição de julgado com o acerto e simplicidade do anterior acórdão fundamento, que não teve a menor dúvida em aplicar o 18.º, nº 2 à mesma situação factual.

8) O Acórdão recorrido qualifica a suspensão preventiva como uma medida preventiva e assim sustenta que o n.º 2 do artigo 18.º não tem aplicação nesse caso, porque aquela não seria uma sanção. Todavia, tal entendimento encerra manifesto erro de julgamento e patente conflito com o acórdão fundamento que, embora qualifique a suspensão como medida cautelar, não tem dúvida de que a audiência prévia tem de ser concedida, ao abrigo do n.º 2 do art. 18.º do EAJ, como deve.

9) A audiência prévia é expressamente imposta por lei especial (art. 18.º, n.º 2 do EAJ), não podendo ser afastada como decidiu o Acórdão recorrido, como, desde logo, resulta do elemento literal (porquanto a norma emprega o termo «sanções», ou seja, utiliza o plural e não o singular), bem como de um prisma teleológico-racional (dado que a norma e a utilização deliberada pelo legislador do plural perderia todo o seu sentido útil e significado e, pior do que isso, resultaria numa manifesta incongruência legislativa – tudo ao invés do que ordena o art. 9.º, nº 3 do CC, pois deve presumir-se que o legislador sabe a realidade, sabe o que faz e que consagrou as melhores soluções, não devendo interpretar-se contra legem as normas de que cuidamos).

10) Neste caso, parece-nos evidente que o legislador utilizou o termo "sanção" em sentido amplo ou lato, e não restritivo ou "puro", pois que uma das espécies de sanções é a das sanções «preventivas», como é o caso, sendo esta a única interpretação que preserva a coerência e sentido literal da norma, o seu sentido teleológico-racional e, assim, a unidade do sistema jurídica, em obediências às regras da hermenêutica constantes do art. 9.º do CC.

11) A doutrina que deriva do acórdão fundamento (aplicação da audiência prévia, prevista no art. 18.º, n.º 2 do EAJ, aos casos de aplicação de suspensão preventiva) é plenamente corroborado pelo elemento histórico da exegese, pois, impressivamente, é isso mesmo que resulta de forma expressa e cristalina da própria e indelével intenção legislativa que presidiu à redacção da norma, como consta da Exposição de Motivos.

12) Havendo norma especialíssima a prever sempre a audiência prévia para a suspensão preventiva de administradores judiciais (art. 18.º, n.º 2 do EAJ), não se mostra possível nem sequer necessário recorrer às normas gerais constantes dos artigos 89.º e 124.º do CPA ou do artigo 211.º, n.º 3 da LGTFP, como decorre, entre o mais, do art. 7.º, n.º 3 do CC, pelo que a interpretação do acórdão recorrido é, s.m.r., contra legem e conflitua com o acórdão fundamento (que segue, aliás, a jurisprudência sedimentada deste STA, requerendo-se, pois, a sua intervenção pacificadora e orientadora).

13) Pois que, além do mais, compreensivelmente, o direito de audiência prévia dos interessados é o mais importante dos princípios por que se deve reger a Administração, sendo um "um pilar do Estado de Direito e da conceção político-constitucional sobre as relações entre a Administração e particulares" e, no caso destes processos sancionatórios, concretiza um direito fundamental, configurando uma garantia essencial do arguido (em que a audiência prévia, por sua vez, concretiza diversos direitos e garantias fundamentais do arguido, como seja o exercício de profissão – cfr. arts. 2.º, 13.º, 18.º, 32.º, 47.º, 61.º, n.º 1, 267.º, n.º 5 e 269.º, n.º 3 da CRP, bem como os arts. 1.º, 6.º e 17.º da CEDH e os arts. 15.º, 41.º, 47.º, 52.º, 53.º e 54.º da CDFUE) – como também decorre expressamente do art. 32.º, n.º 10 da CRP, pelo que a falta de audiência é sancionada com a nulidade.

14) Posto isto, em...

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