Acórdão nº 98/22 de Tribunal Constitucional (Port, 02 de Fevereiro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Lino Rodrigues Ribeiro
Data da Resolução02 de Fevereiro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 98/2022

Processo n.º 136/2022

Plenário

Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos de recurso de atos de administração eleitoral vindos da Comissão Nacional de Eleições (CNE), em que é recorrente a Ordem dos Enfermeiros e recorrida a Comissão Nacional de Eleições (CNE), foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional (TC), nos termos do n.º 1 do artigo 102.º-B da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15.11, na redação que lhe foi dada, por último, pela Lei Orgânica n.º 4/2019, de 13.09 - LTC), da deliberação da CNE tomada na reunião plenária de 27.01.2022, relativa ao Processo AR.P-PP/2022/63 – Cidadão/Ordem dos Enfermeiros/ Publicidade institucional (publicação no Facebook).

2. Na reunião n.º 132/CNE/XVI, realizada em 27.01.2022, a CNE, concordando com a proposta de deliberação que consta da Informação n.º I-CNE/2022/45, deliberou. por unanimidade, aprovar o seguinte:

«1. No âmbito do processo eleitoral relativo à eleição para a Assembleia da República, agendada para o próximo dia 30 de janeiro foi, por um cidadão, apresentada uma participação junto desta Comissão, contra a Ordem dos Enfermeiros por violação dos deveres de neutralidade e Imparcialidade (Publicação no Facebook e no sítio oficial).

2. Notificada para se pronunciar sobre o teor da participação apresentada, a Ordem dos Enfermeiros veio dizer em síntese que, se trata, apenas de "... partilha de um texto de opinião da Enf Ana Rita Cavaco, que não pretende ter qualquer natureza propagandística (...) e que vem na sequência da publicação de artigos de opinião que ocorre já há alguns anos para aquela publicação periódica.". Conclui, alegando que a Ordem dos Enfermeiros se limitou a partilhar uma posição pública da sua Bastonária, sem com isso fazer qualquer publicidade institucional.

2. A descrição dos fundamentos de facto, o apuramento dos seus concretos contornos e a verificação da publicação, constam do Anexo I à Informação.

3. Ordens Profissionais são associações profissionais de direito público e de reconhecida autonomia pela Constituição da República Portuguesa, criadas com o objetivo de promover a autorregulação e a descentralização administrativa, com respeito pelos princípios da harmonização e da transparência.

5. A autorregulação é um serviço público que o Estado delegou nas Ordens Profissionais, libertando-se desse ónus, tendo, para o efeito, estabelecido contratos que estão plasmados nos respetivos Estatutos que são Leis da República e, por essa razão, também tem de merecer a confiança pública.

6. Nos termos do previsto no artigo 4.º da Lei n.º 2/2013 de 10 de janeiro, estas associações públicas profissionais que têm a denominação de "ordens profissionais" (artigo 11.º) são definidas como "... pessoas coletivas de direito público e estão sujeitas a um regime de direito público no desempenho das suas atribuições.". As ordens profissionais são criadas por Lei, que fixa os seus fins e atribuições (artigo 7º) e, os seus estatutos são, igualmente, aprovados por Lei (artigo 8.º).

7. Do teor do artigo 57.º da Lei Eleitoral da Assembleia da República (LEAR), resulta o princípio da absoluta neutralidade e imparcialidade de todas as entidades públicas relativamente ao ato eleitoral em curso, em concretização do princípio da igualdade de oportunidades das candidaturas, plasmado na alínea b) do n.º 3 do artigo 113.º da Constituição.

8- Daí decorre que as entidades públicas estão sujeitas, no decurso do período eleitoral, a especiais deveres de neutralidade e imparcialidade, desde a publicação do decreto que marque a data da eleição. Nessa qualidade, devem os titulares dos órgãos de todas as entidades públicas observar rigorosa neutralidade perante as diversas candidaturas não podendo, nessa qualidade, intervir direta ou indiretamente em campanha eleitoral nem praticar quaisquer atos que favoreçam ou prejudiquem uma candidatura em detrimento ou vantagem das demais.

9. A Comissão Nacional de Eleições é, de harmonia com o estabelecido nos n.ºs 2 e 3 do artigo 1.º da Lei n.º 71/78, de 27 de dezembro, o órgão superior de administração eleitoral, colegial e independente, que exerce as suas competências relativamente a todos os atos de recenseamento de eleições para os órgãos de soberania, das regiões autónomas e do poder local-

10. Tendo presente o enquadramento legal aplicável à participação ora em análise, forçoso é concluir que, com as publicações disponibilizadas na página institucional da Ordem dos Enfermeiros no Facebook e, no sítio institucional daquela associação profissional na Internet, a Ordem dos Enfermeiros, representada perante os órgãos de soberania pela sua bastonária (artigo 30º, nº 1, alínea a) dos seus Estatutos, aprovados pela Lei n.º 156/2015, de 16 de setembro) interveio, diretamente, na campanha eleitoral (que nos termos da lei decorre entre 16 e 28 do corrente mês de janeiro), através da publicitação de conteúdos que prejudicam uma força política concorrente, com vantagem para as demais.

11. Mostram-se assim violados os deveres de neutralidade e de imparcialidade previstos no artigo 57.º da LEAR pela Bastonária da Ordem dos Enfermeiros uma vez que, com a sua conduta, infringiu a proibição de intervir diretamente na campanha eleitoral, fazendo publicar em meios de comunicação institucionais da Ordem dos enfermeiros (página no Facebook e sítio na Internet) conteúdos dos quais resulta a evidente intenção de prejudicar uma das forças concorrentes ao próximo ato eleitoral, assim concedendo vantagem às demais.

12. A violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade é cominada com pena de prisão até 1 ano e multa de 5 000$00 (cinco mil escudos) a 20 000$00 (vinte mil escudos).

13. Face ao que antecede, a Comissão delibera:

a) Remeter o presente processo ao Ministério Público por existirem indícios, de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade impostos pelo artigo 57.º da LEAR, crime previsto e punido pelo artigo 129.º, também, da LEAR;

b) Ordenar à Bastonária da Ordem dos Enfermeiros, para que, sob pena de cometer o crime de desobediência previsto e punido pela alínea b) do nº 1 do artigo 348.º do Código Penal, retire, no prazo de 24 horas, as publicações em causa da página da Ordem no Facebook e do seu sítio na Internet;

c) Advertir para que, no decurso do presente período eleitoral e até à realização do ato eleitoral marcado para 30 de janeiro próximo, se abstenha de efetuar, por qualquer meio, todo e qualquer tipo violação dos deveres de neutralidade e de imparcialidade que sobre ela impendem, nos temos do previsto no artigo 57.º da LEAR.».

3. A Ordem dos Enfermeiros interpôs recurso dessa deliberação para o Tribunal Constitucional, com as seguintes alegações:

«A) Enquadramento

1. A Recorrente foi, na presente data, confrontada com o ato recorrido que muito a surpreendeu.

2. Com absoluta sinceridade, não é claro se o ato recorrido tem por objeto uma simples partilha, por parte de uma instituição, de um artigo publicado numa revista (naquilo que é um procedimento adotado pela ora recorrente há anos), ou se pretende sancionar a liberdade de expressão da Enf. Ana Rita Cavaco, Bastonária da Ordem dos Enfermeiros (caso em que a revista Sábado, eventualmente, também deveria ser interpelada para retirar o texto).

3. A surpresa resulta, igualmente, da circunstância de, não obstante ter dado 24 horas para a Recorrente exercer o direito ao contraditório, a Comissão Nacional de Eleições ter tardado uma semana (desde a alegada apresentação da queixa) para tomar uma decisão;

4. Sendo que quando a comunica percebe-se que, no seu entender, estaremos perante uma situação grave que pode indiciar a prática de um crime.

5. Finalmente, a surpresa resulta, igualmente, de não ser claro do ato recorrido qual o comportamento em concreto é que violou o dever de neutralidade e independência.

6. Tudo isto será analisado com maior detalhe no presente recurso.

B) dos factos

7. A Enf. Ana Rita Cavaco não é candidata nas presentes eleições legislativas.

8. A Enf. Ana Rita Cavaco publica, periodicamente, artigos de opinião na revista Sábado.

9. Isso ocorre pelo menos desde janeiro de 2020 tendo sido publicados cerca de 50 artigos nesse período (cfr. impressão do site da revista sábado que se junta como Documento 1 e se considera para todos os efeitos aqui reproduzida).

10. Refira-se que todos esses artigos foram partilhados nas redes sociais da Ordem dos Enfermeiros, resultando em várias dezenas de posts nos últimos anos (cfr. impressão que se junta como Documento 2 e se considera para todos os efeitos aqui reproduzidos).

11. No seguimento desse compromisso, a Enf. Ana Rita Cavaco escreveu e publicou um artigo, no passado dia 17 de janeiro de 2022, intitulado "Já passaram seis anos" (artigo que se junta como Documento 3 e se considera para todos os efeitos aqui reproduzidos).

12. Por facilidade, a Recorrente transcreve aqui o referido artigo:

"Quem ouve António Costa falar fica convencido de que chegou há seis meses e não há seis anos. Por mais ginástica política que faça, a herança deste Primeiro-Ministro na saúde é a maior vaga de sempre de enfermeiros emigrados, profissionais exaustos e desmotivados, sucessivas demissões nas direções hospitalares e a total incapacidade para resolver os problemas de acesso das pessoas ao SNS.

Os números não dizem tudo, mas quase. Desde 2016, altura em que António Costa chegou ao poder, emigraram 12.272 enfermeiros. Um número que compara com os 9.953 que deixaram o País entre 2011 e 2015. Este Governo conseguiu o feito de ter superado os tempos duros da Troika. Nunca emigraram tantos enfermeiros. Só em 2019, emigraram 4.506 enfermeiros....

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