Acórdão nº 56/22 de Tribunal Constitucional (Port, 20 de Janeiro de 2022

Data20 Janeiro 2022
Órgãohttp://vlex.com/desc1/2000_01,Tribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 56/2022

Processo n.º 1060/20

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Assunção Raimundo

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. A., recorrente nos presentes autos em que é recorrido o Ministério Público, arguido no âmbito de um processo de inquérito por crime de violência doméstica no qual beneficiou do instituto da suspensão provisória do processo, deduziu incidente de reconhecimento de idoneidade para uso e porte de arma, previsto no artigo 14.º, n.ºs 3, 4 e 5 do Regime Jurídico de Armas e Munições (doravante, abreviadamente, «RJAM»), aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, com a última alteração introduzida pela Lei n.º 50/2019, de 24 de julho, que foi liminarmente indeferido, por despacho do Juiz de Instrução Criminal de Coimbra, com fundamento em falta de legitimidade do requerente.

Inconformado, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 4 de novembro de 2020, concedeu parcial provimento ao recurso e revogou a decisão recorrida, na parte em que indeferiu liminarmente o incidente, reconhecendo que o mesmo tinha legitimidade, nos termos do artigo 108.º, n.ºs 1, alínea c) e 5 do RJAM, e não concedeu provimento ao recurso, na parte em que requeria o prosseguimento do incidente, determinando o seu arquivamento, por não ter exercido tempestivamente o direito consagrado na norma.

2. Não se conformando com o decidido, vem deduzir o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, doravante «LTC»), delimitando o seu objeto nos seguintes termos (cf. fls. 119-121):

«[…] a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie se centra em

Sentido interpretativo resultante da conjugação dos arts. 108º nºs 1 e 5 e 14º nº 3 do Regime Jurídico das Armas e Munições na acepção que o decurso do prazo de 30 dias previsto naquele primeiro preceito obsta à propositura da ação de reconhecimento de idoneidade e é, por conseguinte, preclusivo para o arguido que beneficiou de suspensão provisória do processo .

A questão formulada foi objeto de suscitado prévia e adequada nas alegações (fls. 18 e 19 do recurso de apelação) e conclusões (20º a 22º) apresentadas junto do Tribunal da Relação de Coimbra.

O critério normativo enunciado corresponde à ratio decidendi assumida pelo Tribunal a quo, o qual, não obstante reconhecer que o recorrente A. tinha legitimidade para o incidente de reconhecimento de idoneidade para uso e porte de arma – e revogando, nessa vertente, a decisão de 1.a instância –, não concedeu provimento ao recursopor não ter sido exercido tempestivamente o direito consagrado nesta norma com consequente arquivamento do incidente.

Estabeleceu-se no Acórdão recorrido, para tanto, e designadamente, que:

“(...) não havendo um prazo para o requerente da manutenção da licença requerer o reconhecimento judicial da sua idoneidade, quando tenha beneficiado de suspensão provisória do processo de inquérito, o legislador concedeu-lhe um prazo de até 30 dias, após o trânsito em julgado da decisão da suspensão provisória do processo.

Este é um prazo razoável, que de modo nenhum constitui um ónus processual completamente despropositado à satisfação dos interesses de ordem pública que intenta proteger, como refere o ora recorrente.”

Considera o Recorrente A. que a dimensão normativa mobilizada pelo Tribunal a quo se encontra em preterição dos arts. 13º. 18º nº 2 e 20º nºs 1, 4 e 5 da Lei Fundamental .

Sem prejuízo da melhor densifícação dos motivos que subjazem a tal perspectiva em sede de alegações, importa clarificar perfunctoriamente - e para uma melhor compreensão da temática suscitada - alguns dados da questão judicanda.

O art. 108º do Regime Jurídico das Armas e Munições dispõe, sob a epígrafe «Cassação das licenças», que:

“1 - Sem prejuízo da cassação de licenças por autoridade Judiciária, o diretor nacional da PSP pode determinar a cassação:

(...)

c) De qualquer licença de uso ou porte de arma, quando o titular for condenado por crime de maus tratos ao cônjuge ou a quem com ele viva em condições análogas, aos filhos ou a menores ao seu cuidado ou guando pelo mesmo crime foi determinada a suspensão provisória do processo de inquérito;

d) De qualquer licença de uso ou porte de arma, quando ao titular for aplicada medida de coação de obrigação de não contatar com determinadas pessoas ou não frequentar determinados lugares ou meios;

e) De qualquer licença de uso ou porte de arma, quando ao titular for aplicada medida de suspensão provisória do processo de inquérito mediante a imposição de idênticas injunções ou regras de conduta;

(...)

5 – Para efeitos do disposto nas alíneas a), c), d) e e) do n.º 1, a cassação não ocorrerá se, observado o procedimento previsto no nº 3 do artigo 14.º, instaurado pelo interessado até 30 dias após o trânsito em julgado da condenação, medida de coação fixada ou da decisão da suspensão provisória do processo de inquérito, houver reconhecimento judicial da idoneidade do titular para a sua manutenção.

Já o art 14º do Regime Jurídico das Armas e Munições dispõe, no que releva, que:

“1 - A licença B1 pode ser concedida a maiores de 18 anos que reúnam, cumulativamente, as seguintes condições:

(...)

c) Sejam idóneos;

2- Sem prejuízo do disposto no artigo 30.º da Constituição e do número seguinte, para efeito de apreciação do requisito constante da alínea c) do número anterior é suscetível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outras razões devidamente fundamentadas, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão.

3- No decurso, do período anterior à verificação do cancelamento definitivo da inscrição no registo criminal das decisões judiciais em que o requerente foi condenado, pode este requerer que lhe seja reconhecida a idoneidade para os fins pretendidos, pelo tribunal da última condenação.

Ora,

Dos preceitos transcritos retira-se que o Diretor Nacional da Polícia de Segurança Pública PODE, a qualquer momento, decidir-se pela cassação de licença de uso e porte de arma quando ao correspondente titular for determinada a suspensão provisória do processo por crime de maus tratos a cônjuge, atual tipo legal de Violência Doméstica. Cassação essa que apenas não ocorrerá se o visado lograr que lhe seja judicialmente reconhecida a sua idoneidade para a manutenção da mesma licença.

Sucede que o critério normativo que conforma o objeto do recurso significa que o titular da licença apenas pode impulsionar o sobredito incidente de reconhecimento judicial da sua idoneidade no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado da decisão da suspensão provisória do processo.

Ou seja, o titular da licença é forçado a mobilizar incidente de idoneidade mesmo na ignorância se o Diretor Nacional da PSP irá tomar uma decisão que apenas surge como possível ou eventual, sendo, pois, constrangido a uma litigância potencialmente supérflua e desnecessária já que é espoletada em função de uma ocorrência incerta. E, na hipótese de não tomar tal iniciativa no sobredito prazo de 30 dias, deixa de ter na sua disponibilidade a faculdade de se opor a uma decisão de cassação de licença não obstante esta puder ser determinada em momento muito ulterior ao sobredito marco temporal.

Assim:

I. O critério normativo enunciado - ao forçar o recurso à máquina judicial mesmo que inexista, à data, um qualquer procedimento tendente à cassação de licença e. por conseguinte, para fazer face para fazer face a um evento futuro, eventual e que não se encontra na disponibilidade do visado - é violador do art. 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa lido à luz do precedente art. 2º, isto é, enquanto parâmetro em si mesmo considerado tendente à limitação dos poderes públicos e que obriga o Estado a adequar a sua ação aos fins pretendidos e não configurar medidas susceptíveis de afirmarem como desnecessárias ou excessivamente restritivas;

II. Dimensão normativa que igualmente ataca o art. 20º da Lei Fundamental quando em conjugação com o precedente art. 18º, pois revela que, quando o procedimento de cassação de licença é iniciado após o decurso do prazo de 30 dias subsequente ao trânsito em julgado da decisão de suspensão provisória do processo, o titular da licença deixa de ter possibilidade de reagir contra tal decisão com a consequente supressão da garantia de tutela jurisdicional efetiva;

III. E tal norma encontra-se também em preterição do princípio da igualdade estabelecido no art. 13º da CRP pois que, sem fundamento bastante, cria uma diferenciação injustificada e proporcional entre condenados e não condenados. Note-se que, quanto ao arguido condenado por sentença transitada em julgado, continuará sempre a reger o nº 3 do art. 14º do Regime Jurídico das Armas e Munições, no que o mesmo poderá requerer que lhe seja reconhecida a idoneidade até à verificação do cancelamento definitivo da inscrição no registo criminal das decisões, o que, por força do art. 11º da Lei n.º 37/2015, ocorrerá, no mínimo, 5 anos após o cumprimento/extinção da pena (e, por conseguinte, muitos anos após os 30 dias subsequentes ao trânsito em julgado da condenação). Já o arguido por reporte ao qual haja sido determinada a suspensão provisória do processo apenas poderá obter reconhecimento da idoneidade se peticionar esta nos 30 dias subsequentes ao trânsito em julgado da respectiva decisão. Estabelece-se. assim, um regime claramente mais gravoso para o arguido que seja alvo de suspensão provisória do que para um condenado, sem que se divise...

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