Acórdão nº 868/21 de Tribunal Constitucional (Port, 10 de Novembro de 2021

Data10 Novembro 2021
Órgãohttp://vlex.com/desc1/2000_01,Tribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 868/2021

Processo n.º 937/2020

3ª Secção

Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro

Acordam na 3.ª secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte – Juízo Local Criminal de Alenquer, em que é recorrente o Ministério Público e recorrida A., foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), da sentença daquele Tribunal, de 5 de novembro de 2020.

2. A ora recorrida, na qualidade de arguida, foi acusada da prática de um crime de desobediência agravada, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, do Código Penal, conjugado com o artigo 9.º, n.º 1, e o Anexo II do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março, com o artigo 7.º da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, e com o artigo 6.º, n.º 4, da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho.

Pela sentença recorrida, foi a arguida absolvida da prática do crime de desobediência, tendo a juíza recusado, com fundamento na violação da alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º e do n.º 1 do artigo 29.º da Constituição, a aplicação das normas dos artigos 9.º e 32.º, n.º 1, alínea b), do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março.

Com interesse para os autos, pode ler-se em tal sentença:

«Da constitucionalidade das normas imputadas à arguida quanto ao crime de desobediência agravada

Em 11.03.2020, a Organização Mundial da Saúde qualificou a emergência de saúde pública (pandemia), em razão da propagação de infecções do aparelho respiratório de origem virai, causadas pelo agente Coronavírus (SARS-Cov-2 e COVID-19).

Por tal circunstância, a Assembleia da República, ao abrigo do disposto nos art.ºs 161.°, n.° 1, al. I), e 166.°, n.° 5, da Constituição da República Portuguesa, e 15.°, da Lei n.° 44/86, de 30 de Setembro, na sua atual redação (que estabelece o Regime de Estado de Sítio e do Estado de Emergência, doravante RESEE), através da Resolução n.° 15-A/2020 de 18.03.2020, declarou o estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, abrangendo todo o território nacional, com a duração de quinze dias, "[...] iniciando-se às 0:00 horas do dia (...) de março de 2020 e cessando às 23:59 horas do dia (...) de abril de 2020, sem prejuízo de eventuais renovações, nos termos da lei." (cfr. art.ºs 1.°, 2.° e 3.°, da mencionada Resolução).

A Resolução da Assembleia da República suspendeu, no artº. 4.°, parcialmente, os direitos de deslocação e fixação, de propriedade e de iniciativa económica privada, dos trabalhadores, de circulação internacional, de liberdade de culto, na sua dimensão coletiva e o direito de resistência, sendo que, em caso algum, podia ser posto em causa o princípio do Estado unitário (cfr. art.º 5.°, n.° 4, da mencionada Resolução), ali não se consagrando qualquer referência à criminalização de condutas.

Nos termos do art. 8.°, da Resolução, a mesma entrava em vigor com o Decreto do Presidente da República, produzindo efeitos nos mesmos termos.

Também em 18.03.2020, através do Decreto do Presidente da República n.° 14-A/2020,.na sequência da audição do Governo e obtida a autorização da Assembleia da República, através da Resolução da Assembleia da República n.° 15-A/2020, de 18 de Março, o Presidente da República declarou o estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, abrangendo todo o território nacional, com início às 00:00 horas do dia 19.03.2020 e cessando às 23:59 horas do dia 02.04.2020, sem prejuízo de eventuais renovações, nos termos da lei (cfr. art.ºs 1.°, a 3.°, do Decreto Presidente da República).

Nessa sequência, foram suspendidos, parcialmente, os direitos de deslocação e fixação, de propriedade e de iniciativa económica privada, dos trabalhadores, de circulação internacional, de liberdade de culto, na sua dimensão coletiva e o direito de resistência, sendo que, em caso algum, podia ser posto em causa o princípio do Estado unitário (cfr. art.ºs. 4.°, e 5.°, n.° 4, do Decreto do Presidente da República).

No dia 20.03.2020, foi publicado o Decreto n.° 2-A/2020, da Presidência do Conselho de Ministros, o qual procedeu à execução da declaração do estado de emergência efetuada pelo Decreto do Presidente da República n.° 14-A/2020, de 18 de março.

Tal Decreto, ao abrigo do disposto no art.º 199.°, al. g), da Constituição da República Portuguesa, procedeu à execução da declaração do estado de emergência efetuada pelo Decreto do Presidente da República n.° 14-A/2020, de 18 de Março, com aplicação em todo o território nacional.

Nos termos do art. 9.°, n.° 1, do mencionado Decreto, ficaram suspensas as atividades de prestação de serviços em estabelecimentos abertos ao público, com exceção daquelas que prestem serviços de primeira necessidade ou outros serviços considerados essenciais na presente conjuntura, as quais se encontram elencadas no anexo II, do Decreto, onde não se encontrava englobado os serviços prestados pelas barbearias e salões de cabeleireiro (para homens e senhoras), cujas atividades incidem principalmente no corte, lavagem, penteação, pintura, ondulação, desfrisagem, estética computorizada, extensão de unhas e cabelos, aplicação de madeixas e atividades similares do cabelo, assim como o corte e o aparo da barba (CAE 96021 do CAE Rev.3).

Dispõe o art. 32.°, n.° 1, al. b), do referido Decreto, "1 - Compete às forças e serviços de segurança fiscalizar o cumprimento do disposto no presente decreto, mediante: [...] b) A emanação das ordens legítimas, nos termos do presente decreto, a cominação e a participação por crime de desobediência, nos termos e para os efeitos do artigo 348.° do Código Penal, por violação do disposto nos artigos 7.° a 9.° do presente decreto e do confinamento obrigatório de quem a ele esteja sujeito nos termos do artigo 3.°, bem como a condução ao respetivo domicílio;".

Cumpre, antes de mais, aferir da constitucionalidade de tal diploma, uma vez que, nos termos do art.º 204.°, da Constituição da República Portuguesa, "Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.".

Nos termos do art. 29.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa, "1. Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.", consagrando o princípio da legalidade, na vertente nulla poena sine lege.

A Assembleia da República tem competência exclusiva, salvo autorização ao Governo, na definição de crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo penal [cfr. art.º 165.°, n.° 1, al. c), da Constituição da República Portuguesa].

Ora, o Decreto n.° 2-A/2020, de 20 de março, através da conjugação dos art.ºs 9.° e 32.°, n.° 1, al. b), está, de forma inovadora, a definir determinada realidade como crime, porquanto está a cominar com o crime de desobediência, previsto e punido pelo 348.°, do Código Penal, o agente que, no caso em que releva para os autos, viole a suspensão das atividades de prestação de serviços em estabelecimentos abertos ao público, com exceção daquelas que prestem serviços de primeira necessidade ou outros serviços considerados essenciais na presente conjuntura, elencadas no Anexo II ao Decreto.

Considerando que a al. a), do n.° 1, do art. 348.°, do Código Penal, respeita a disposição legal, a mesma apenas pode ser atendida a diploma legal que respeite os...

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