Acórdão nº 815/21 de Tribunal Constitucional (Port, 27 de Outubro de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Joana Fernandes Costa
Data da Resolução27 de Outubro de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 815/2021

Processo n.º 520/2021

3ª Secção

Relator: Conselheira Joana Fernandes Costa

Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. No âmbito dos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (doravante, «LTC»), do acórdão proferido por aquele Tribunal, em 28 de abril de 2021, que negou provimento ao recurso interposto da decisão proferida pelo Juízo Central Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, que indeferiu o pedido de realização de audiência para aplicação do perdão previsto no artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 9/2020, formulado pela ora recorrente.

2. Através da Decisão Sumária n.º 506/2021, decidiu-se, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso.

Tal decisão tem a seguinte fundamentação:

«II. Fundamentação

4. O recurso de constitucionalidade interposto nos presentes autos funda-se na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, nos termos da qual cabe recurso para o Tribunal Constitucional «das decisões dos tribunais (…) que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo».

Tal como delimitado pela recorrente, o objeto do recurso é integrado: i) pela «norma constante do artigo 2.°/6 al. j) da Lei 9/2020 de 10.04, […] ao excluir do perdão genéricos de penas o crime de corrupção ativa p. p. pelo artigo 374.°/1 do Código Penal»; ii) pela «norma extraída do artigo 1.°/l al. a) da Lei 9/2020 de 10.04, […] na parte em que troca a saúde de uns reclusos pela de outros»; iii) pela «norma constante do artigo 2.°/l da Lei 9/2020 de 10.04, […] na parte em que exige o trânsito em julgado da decisão condenatória»; iv) pela «norma extraída do artigo 2.°/1 da Lei 9/2020 de 10.04, […] na parte em que exige o trânsito em julgado da decisão para diferentes condenados, mas que estão na mesma situação»; v) pela «norma constante no artigo 2.°/2 da Lei 9/2020 de 10.04, […] na parte em que exige que o condenado tenha cumprido metade da pena»; vi) pela «norma constante do artigo 2.°/2 da Lei 9/2020, de 10.04, por violar o non bis idem, consignado no artigo 29.°/5 da Constituição, já que as exigências de prevenção são próprias e exclusivas da medida da pena e não à sua execução, havendo, pois, uma dupla punição pelo mesmo fato».

5. Conforme resulta do acórdão recorrido, o Tribunal da Relação de Coimbra concluiu que a recorrente não reunia as condições legalmente exigidas para poder beneficiar da aplicação do perdão previsto no artigo 2.° da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, com base em três fundamentos distintos, que podem sintetizar-se nos termos seguintes: i) o perdão apenas pode ser concedido a condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da entrada da Lei n.º 9/2020 — é o que resulta expressamente do n.º 7 do artigo 2.º da Lei n.º 9/2020 —, tendo a recorrente sido «condenada por acórdão transitado em julgado muito depois da entrada em vigor da referida lei»; ii) em virtude do disposto nos n.º 1 e 2 do artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, o perdão apenas pode ser aplicado a reclusos, «excluindo assim os condenados que», como a recorrente, «não tenham ainda ingressado fisicamente no estabelecimento prisional»; e iii) por força do disposto na alínea j) do n.º 6 do artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, não beneficiam do perdão referido nos respetivos n.ºs 1 e 2 os condenados pela prática de «crime de corrupção», como é o caso da recorrente.

Uma vez que os pressupostos, positivos e negativos, de aplicação do perdão previsto no artigo 2.º da Lei n.º 9/2020 são de verificação cumulativa, as três razões enunciadas pelo Tribunal recorrido para julgar improcedente o recurso interposto da decisão proferida em primeira instância constituem fundamentos alternativos do julgado, sendo qualquer deles apto, por si só, a suportar a conclusão de que a recorrente não reúne a totalidade das condições necessárias para poder beneficiar da medida de clemência cuja aplicação requereu nos autos.

Ora, nos casos em que a decisão recorrida é integrada por uma fundamentação alternativa, a utilidade na apreciação do recurso de constitucionalidade apenas se encontrará assegurada se o recorrente tiver impugnado perante o Tribunal Constitucional a validade constitucional da base normativa em que assenta cada um dos diversos fundamentos jurídicos do juízo decisório formulado pelo tribunal a quo. Perante o triplo fundamento que integra a ratio decidendi do acórdão recorrido, significa isto que o julgamento do presente recurso apenas revestirá utilidade se a recorrente tiver pedido a apreciação da constitucionalidade de cada uma das três normas aplicadas pelo Tribunal da Relação de Coimbra para confirmar a decisão proferida em primeira instância e o objeto do recurso puder ser conhecido quanto à totalidade das questões de constitucionalidade.

Pelas razões que seguidamente se exporão, tal não se verifica no caso presente.

6. Para além de não constituir um resultado interpretativo possível do preceito indicado pela recorrente, a «norma extraída do artigo l.°/l al. a) da Lei 9/2020 de 10.04», «na parte em que troca a saúde de uns reclusos pela de outros», não integra o conceito funcional de norma desde há muito assente na jurisprudência deste Tribunal (cf. Acórdão n.º 26/85). Sob incidência de tal conceito, o sistema de fiscalização concreta da constitucionalidade visa o controlo dos atos que contenham uma «regra de conduta» para os particulares ou para a Administração, um «critério de decisão» para esta última ou para o juiz ou, em geral, um «padrão de valoração de comportamentos», emanado de um poder normativo público e detendo, por isso, natureza heterónoma (heteronomia normativa) (vide, por todos Acórdão n.º 508/99).

A asserção «[n]a parte em que troca a saúde de uns reclusos pela de outros» não reúne qualquer uma destas propriedades, o que, no segmento respeitante à questão de constitucionalidade identificada em ii), torna inidóneo o objeto do recurso.

7. A «norma constante do artigo 2.°/1 da Lei 9/2020 de 10.04, […] na parte em que exige o trânsito em julgado da decisão condenatória», assim como a «norma extraída do artigo 2.°/1 da Lei 9/2020 de 10.04, […] na parte em que exige o trânsito em julgado da decisão para diferentes condenados, mas que estão na mesma situação», não integram os fundamentos com base nos quais foi recusada a concessão à recorrente do perdão previsto no referido diploma.

Ao contrário do que vem pressuposto, o Tribunal recorrido não considerou inverificada no caso a exigência de que a condenação na pena a perdoar haja transitado em julgado. Pelo contrário, consta do acórdão recorrido que «a arguida», ora recorrente, «foi condenada por acórdão transitado em julgado». O pressuposto legal que se teve por inverificado nos autos foi a da anterioridade do trânsito em julgado da condenação por referência ao momento da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020. Tal elemento — imposto, aliás, pelo n.º 7 do artigo 2.º da mesma Lei — não integra, todavia, qualquer uma das normas cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada, pelo que, quanto aos enunciados reproduzidos em iii) e iv), o conhecimento do objeto do recurso não reveste utilidade.

8. O mesmo vale, mutatis mutandis, quanto à questão identificada em v), que tem por objeto a «norma constante do artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 9/2020, na parte em que exige que o condenado tenha cumprido metade da pena».

Lido o acórdão recorrido, verifica-se que, ao contrário do Tribunal de primeira instância, a Relação de Coimbra não fez depender a recusa de aplicação do perdão previsto no artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 9/2020 ainda da circunstância de a recorrente não ter cumprido metade da pena de prisão, de duração superior a dois anos, em que fora condenada.

Constatando que a condenação da recorrente transitara em julgado após a entrada em vigor da Lei n.º 9/2020 e que a mesma não ingressara ainda no estabelecimento prisional, o Tribunal recorrido terá considerado certamente dispensável a invocação autónoma deste quarto fundamento para concluir pela inaplicabilidade do perdão previsto no artigo 2.º do referido diploma, não obstante igualmente mencionado na decisão proferida pelo Tribunal de primeira instância.

Não tendo o acórdão recorrido aplicado o segmento do n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, que exige que o condenado tenha cumprido metade da pena, o julgamento da questão de constitucionalidade identificada em v) não reveste utilidade, o que obsta, também nesta parte, à admissibilidade do recurso.

9. A questão identificada em vi), que tem como objeto a norma constante do artigo 2.º, n.º 2, da Lei 9/2020, por originar uma «dupla punição pelo mesmo facto», foi assim suscitada nas conclusões do recurso interposto para Tribunal da Relação de Coimbra:

«ff) É vedado ao legislador na elaboração da lei de perdão genérico de penas utilizar as circunstâncias que já tenham sido utilizadas aquando da construção do tipo legal de crime, e que tenha tido em consideração na construção da moldura abstrata da pena, pois só assim se assegura o cumprimento da proibição da dupla valoração.

gg) A norma do artigo 2.°/2 da Lei 9/2020, de 10.04, é inconstitucional, por violar o non bis idem, consignado no artigo 29.°/5 da Constituição, já que as exigências de prevenção são próprias e exclusivas da medida da pena e não à sua execução, havendo, pois, uma dupla punição pelo mesmo facto. »

Ao imputar a «dupla punição pelo mesmo facto» à convocação de circunstâncias relativas à relevância criminal da conduta para delimitar o âmbito de aplicação do perdão...

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