Acórdão nº 105/20.1GCCUB.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 12 de Outubro de 2021
Magistrado Responsável | MARTINHO CARDOSO |
Data da Resolução | 12 de Outubro de 2021 |
Emissor | Tribunal da Relação de Évora |
IAcordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: Nos presentes autos de Processo Comum com intervenção de tribunal singular acima identificados, do Juízo de Competência Genérica de Cuba, do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, o arguido (...) respondeu, acusado de ter cometido um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1 al.ª b), 2 al.ª a), 4 e 5; e dois crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos art.º 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1 al.ª a), todos do Código Penal.
Realizado o julgamento, foi o arguido absolvido daquele crime de violência doméstica e condenado, além do mais, pela prática de: -- Um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art.º 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1 al.ª a) e 2 e 132.º, n.º 2 al.ª b), do Código Penal, cometido na pessoa de (...), na pena de 10 meses de prisão, substituídos por 300 dias de multa, à razão diária de 5,50 €, o que perfaz o total de 1.650,00 €; e -- Dois crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos art.º 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1 al.ª a), do Código Penal, cometidos na pessoa de (...), na pena de 90 dias de multa para cada um deles.
Em cúmulo jurídico, pena única de 120 dias de multa, à razão 5,50 €, num total de 660,00 €, e na pena de 10 meses de prisão, substituídos por 300 dias de multa, à razão diária de 5,50 €, o que perfaz o total de 1.650,00 €.
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O arguido e a ofendida viveram, em comunhão de habitação, mesa e leito, de 2010 até 24/05/2020, data em que cessou a relação amorosa, seguindo cada um a sua vida.
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O arguido aceitou a separação, nunca mais interpelou ou procurou a (...).
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O arguido não está vinculado a nenhum dever jurídico em relação à ex-companheira (...), o mesmo sucede a esta em relação a ele.
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A situação que está descrita, nos factos 5, 6 e 7 da sentença de 03/03/2021, foi motivada pelo facto da (...) não lhe ter falado / cumprimentado, ao passar por ele.
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Foi o desprezo ou indiferença da (...) , em relação ao arguido, que o deixou muito ofendido e emocionalmente muito perturbado.
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O facto da (...) ter ignorado o arguido é um facto idóneo a desencadear um estado de perturbação emocional, cuja intensidade depende da concreta personalidade do arguido e do seu funcionamento psicológico .
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É uma reacção automática, que não é racionalizada, actuando instintivamente, face ao que o arguido sentiu como um sentimento de profunda injustiça e uma afronta imerecida.
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A reacção do arguido nada tem a ver com a situação passada de vida em comum.
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O artigo 132.º do Código Penal contém, no n.º 1, uma cláusula geral e, no n.º 2, exemplifica as situações suscetíveis de desencadearem um efeito indiciador de qualificação, recorrendo à técnica dos exemplos padrão.
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Não operam automaticamente, motivo por que é necessária uma cuidada ponderação, para aferir se se verifica um fundamento para fazer operar o efeito indiciador, tendo presente a imagem global do facto.
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É necessário articular os exemplos padrão ( n.º 2) com a cláusula geral ( n.º 1).
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Cessada a relação não existe nenhum dever da solidariedade nem qualquer outro dever, sendo que o fundamento indiciador da qualificação previsto no artigo 132.º nº1 e 2 b) do Código Penal é o dever de solidariedade.
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Esse dever terá que ser um dever jurídico, ser válido e existir, o que não sucede, razão pela qual não há fundamento para qualificar o crime.
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Como esse fundamento não existe, não poderá operar o efeito indiciador.
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Também, sucede que a emoção violenta, que acometeu o arguido, é compreensível e afasta o efeito indiciador de qualquer qualificação.
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Não se verifica, in casu, nenhum fundamento indiciador do exemplo-padrão consagrado na alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, o que faz com que a sentença de 03/03/2021 seja injusta e desproporcionada.
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Violou os artigos 145.º n.ºs 1 alínea a) e 2, por referência ao artigo 132.º n.ºs 1 e 2 alínea b) do Código Penal, e o artigo 18.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, porque o arguido não está vinculado ao dever de solidariedade ou qualquer outro dever jurídico que possa fundamentar a qualificação.
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Assim, a sentença de 03/03/2021 violou o artigo 145.º n.ºs 1, alínea a) e 2, por referência ao artigo 132.º, n.º2, alínea b), todos do Código Penal, porque o arguido não estava em 17/08/2021 vinculado a nenhum “dever acrescido de respeito “ para com a ofendida (...), porque a relação amorosa já tinha cessado em 24/05/2021 (vide facto 1 da sentença).
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A sentença de 03/03/2021 deve ser revogada e, em consequência, o arguido deve ser condenado pelo crime de ofensa à integridade física simples previsto e punido pelo artigo 143.º n.º 1 do Código Penal, na pessoa da ofendida (...).
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Não há nenhum fundamento para fazer operar o efeito indiciador previsto no artigo 145.º n.ºs 1 alínea a) e 2 , por referência ao artigo 132.º nºs 1 e 2 alínea b) do Código Penal, que não é automático.
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A qualificação operada, na sentença, fez uma interpretação e aplicação do artigo 145.º nºs 1 alínea a) e 2, por referência ao artigo 132.º n.ºs 1 e 2 alínea b) do Código Penal é materialmente inconstitucional por violação: a) Do direito à liberdade consagrado no artigo 27.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa; b) Da liberdade geral de acção ínsita no direito ao desenvolvimento da personalidade consagrado no artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa; c) Do princípio da Justiça ínsito no princípio do estado de direito democrático consagrado nos artigos 2.º e 9.º alínea b ) da Constituição da República Portuguesa; d) Do princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, por falta de lesão de bem jurídico e restrição injustificada do direito à liberdade consagrado no artigo 27.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, a liberdade e da liberdade geral de acção ínsita no direito ao desenvolvimento da personalidade consagrado no artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa; e) Do princípio da ofensividade de bens jurídicos consagrado no artigo 18.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa; f) Do princípio da determinabilidade das leis ínsito no princípio do estado de direito democrático consagrado nos artigos 2.º e 9.º alínea b ) da Constituição da República Portuguesa.
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A liberdade é um bem jurídico fundamental, que é imprescindível à realização pessoal de cada um, ou seja, à construção do respectivo projecto de vida – realização pessoal.
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Só pode ser restringido, através de tipificação de crimes e da aplicação de penas criminais, para salvaguardar outros bens jurídicos fundamentais, que, também, tenha dignidade penal, na medida necessária à salvaguarda desses bens jurídicos .
25.ºO artigo 145.º nºs 1 alínea a), por referência ao artigo 132.º nºs 1 e 2 alínea b) do Código Penal, interpretado no sentido que a qualificação da ofensa à integridade física opera mesmo que a relação em união de facto já tenha cessado e haja conformação com tal situação é, pois, materialmente inconstitucional , nos termos indicados na conclusão 22.ª supra.
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Em consequência, o artigo 145.º nºs 1 alínea a) e 2 , por referência ao artigo 132.º nºs 1 e 2 alínea b) do Código Penal, deve ser desaplicado, determinando-se a reforma da sentença de 03/03/2021 , de acordo com o apontado juízo de inconstitucionalidade.
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Quanto aos crimes de ameaças agravadas, importa relevar todo o contexto em que os alegados factos ocorreram.
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O (...) disse, na audiência de julgamento, que não está zangado com o arguido, que só não lhe fala porque o arguido deixou de lhe falar.
29 .ªO (...) tem uma companheira (vide facto 10 da sentença).
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O (...) não apresentou queixa conta o arguido.
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Quando foi ouvido declarou que não pretende procedimento criminal contra o arguido ( vide folhas 169).
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O 153º n.º 1 do Código Penal protege a liberdade de decisão e de acção.
33 .ªO crime de ameaça é sempre crime semi-público, dependendo o procedimento criminal de apresentação de queixa34.ªÉ um crime de perigo concreto.
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O critério da adequação, no crime de ameaça, é objectivo – individual.
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Tem que ser objectivamente apto a intimidar ou provocar intranquilidade a qualquer pessoa.
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No aspecto individual, devem relevar as qualidades da pessoa ameaçada e o seu contexto.
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A ameaça não pode estar dependente duma condição concreta, ou seja, não pode estar subordinada a uma situação de namoro do (...) com a ofendida (...) ( vide os factos 11 e 12 da sentença), situação essa que não existe.
39 .ªO (...) tem uma companheira, situação que é mais que namoro, visto que é união de facto ( vide facto 10).
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É um dado da experiência comum que, na sociedade portuguesa, que a palavra “companheira” é usada, na língua portuguesa, que é usada para designar uma união de facto, ou seja, uma situação análoga à de cônjuges.
41 .ªDado que tem uma companheira, não é crível, atentos os padrões morais vigentes na sociedade, que o (...) queira sequer namorar com a ofendida (...) nem isso dependeria só da vontade dele, obviamente, porque também releva , a vontade da (...).
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In casu, é impossível afetar a liberdade de decisão e de acção do (...) de namorar com a (...), porque não há nenhuma situação nem se prevê que venha a existir.
43 .ªEstamos perante um crime impossível, porque não há nenhuma possibilidade de lesar ou de colocar em perigo de lesão um bem jurídico que, in casu, nem existe – liberdade de decisão e de acção do (…) namorar com a (...).
O direito penal só protege bens existentes.
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O Direito Penal só tutela verdadeiros bens jurídicos...
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