Acórdão nº 1592/19.6T8FAR.E1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 17 de Junho de 2021

Magistrado ResponsávelMARIA DA GRAÇA TRIGO
Data da Resolução17 de Junho de 2021
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 1. AA instaurou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra UCHALGAR – Promoção de Habitação Cooperativa, U.C.R.L.

, BB e CC, pedindo a condenação dos RR. a pagar-lhe a quantia de € 308.000,00 (trezentos e oito mil euros), acrescida de juros moratórios à taxa civil desde a data da cobrança dos cheques a que correspondem os documentos n.

os 24 e 25, até integral pagamento, que, à data da propositura da acção, somavam € 31 761,97 (trinta e um mil, setecentos e sessenta e um euros e noventa e sete cêntimos).

Para o efeito alegou, em síntese, que: em 23.09.2016 celebrou, por escrito, com a 1.ª R., representada pelos 2.º e 3.º RR., respectivamente, na qualidade de tesoureiro e de vogal da direcção, um contrato-promessa de compra e venda de lotes de terreno para construção, pelo preço de € 4.900.000,00; os lotes prometidos vender estavam hipotecados a favor da Caixa Económica Montepio Geral, e foi expressamente acordado que a 1.ª R. ficava obrigava a conseguir o efectivo cancelamento das hipotecas que incidiam sobre os lotes prometidos vender, o que deveria concretizar no prazo de 60 dias, decorridos os quais, na falta de cancelamento, o “acordo de compra e venda” seria resolvido e ficaria sem efeito. Entregou aos 2.º e 3.º RR., a título de sinal, as quantias de € 245.000,00 e € 63.000,00, respectivamente, na data de assinatura do contrato e no dia 07.10.2016, destinadas à 1.ª R..

Os RR. nunca marcaram a escritura de compra e venda prometida e devidamente instruída com os documentos legalmente necessários, assim como não prepararam qualquer documentação interna da cooperativa tendo em vista o cumprimento do negócio.

Mais alegou que os 2.º e 3.º RR. sabiam que a 1.ª R. não tinha qualquer possibilidade de fazer cancelar as hipotecas que incidiam sobre os lotes, por falta de liquidez e que a 1.ª R. não podia vender os lotes a um terceiro, como o autor, numa operação comercial, por tal negócio atentar contra o escopo cooperativo e ainda por carecer de deliberações prévias das cooperativas cooperadoras e da sua própria assembleia geral, sendo que entretanto os lotes em causa foram penhorados e vendidos a outrem, em acção executiva, pelo que a promessa não pode ser já cumprida.

Por isso, seja por via de declaração de nulidade, seja por via de resolução, seja por via da impossibilidade de incumprimento, fundamentos subsidiária e sucessivamente aplicáveis – o que expressamente invoca – devem os RR. restituir ao A. o valor do sinal e dos reforços de sinal entregues.

Contestaram os RR.: o 2.º e 3.º RR. suscitaram a sua ilegitimidade, dado terem assinado o contrato-promessa na qualidade de representantes da 1.ª R. e não a título pessoal, invocando ser o contrato válido e ter sido celebrado pelos representantes da 1.ª R., ter a escritura pública sido várias vezes agendada, tendo sido o A. que sucessivamente a ela faltou por não ter meios financeiros para pagar o remanescente, e sendo que havia sido acordado, incluindo com o credor hipotecário, que o cancelamento das hipotecas seria feito mediante o pagamento que o A. tinha de efectuar para liquidação do preço da compra e venda.

Imputaram ao A. o incumprimento definitivo do contrato-promessa e pugnaram pela improcedência da ação.

Em sede de audiência prévia de 10.10.2019, foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a excepção de ilegitimidade dos 2.º e 3.º RR..

Por sentença de 23 de Janeiro de 2020, foi proferida a seguinte decisão: «Face ao exposto, decido julgar a ação parcialmente procedente, por parcialmente provada e, por conseguinte, condenar os réus, em regime de solidariedade, ao pagamento da quantia peticionada (€ 308 000,00 – trezentos e oito mil euros), acrescida dos juros vencidos a contar da data da citação e vincendos, à taxa legal, até integral pagamento, absolvendo do demais peticionado».

Inconformados, interpuseram os RR. recurso para o Tribunal da Relação ….., pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de 24 de Setembro de 2020, foi proferida a seguinte decisão: «Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando a sentença na parte em que condenou os Réus BB e CC, que vão absolvidos dos pedidos contra si deduzidos, mantendo a condenação da Ré UCHALGAR – PROMOÇÃO DE HABITAÇÃO COOPERATIVA, U.C.R.L.” nos termos sentenciados.» 2.

Vem o A. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões: «

  1. O douto acórdão recorrido fez errado julgamento de direito quando declarou que o negócio proposto pelos réus não era nulo, que os réus BB e CC não violaram deveres que lhes estavam impostos por lei e pelos estatutos da cooperativa 1ª ré, quando julgou que aqueles dois réus tinham poderes para fazer por si o negócio, sem intervenção do presidente da direção, sendo eles tesoureiro e secretário da mesma, e ainda quando decidiu pelo abuso de direito; b) Dos factos provados 2, 11 e 23 apura-se que o objeto da 1ª ré cooperativa apenas lhe permitia fazer negócios com terrenos destinados a membros das cooperativas suas filiadas e que a venda de lotes prometida ao autor não foi autorizada por qualquer deliberação; c) Dos factos 8 e 12 apura-se que os réus BB e CC prometeram vender ao autor, por € 4.900.000,00, 18 lotes de terreno da cooperativa 1ª ré, que estavam hipotecados por € 5 363 425,98; d) Dos factos 13, 14 e 22 apura-se que aqueles réus agiram sem dar conhecimento ao presidente da direcção da cooperativa 1ª ré, sem estarem autorizados por deliberação da assembleia geral e que não entregaram à 1ª ré os € 308.000,00 que receberam do autor a título de sinal da prometida venda; e) Aqueles réus “sabiam que a 1ª ré não tinha qualquer possibilidade de fazer cancelar as hipotecas que incidiam sobre os lotes, por falta de liquidez” (facto 19) e “sabiam que não podiam vender os prédios que prometeram vender e não informaram a cooperativa e os órgãos competentes da mesma para aprovar tal negócio, tal como jamais reuniram a documentação necessária à celebração do negócio ou sequer conducente à autorização para a venda a terceiro de prédios destinados a fins cooperativos” (facto 21); f) “O 2º réu confirmou diversas vezes que procederia à devolução do dinheiro do sinal pago pelo autor pela entrega e cobrança dos cheques em causa” (facto 37).

  2. Não há no caso supletividade do Código das Sociedades Comerciais, que só ocorre, como dispõe o art. 9 do Código Cooperativo, “na medida em que se não desrespeitem os princípios cooperativos” e não haja norma cooperativa expressa; h) A cooperativa prossegue fins sociais, não visa o lucro e não pratica atos de comércio, salvo na estrita medida em que o seu objeto social o permita; i) Em caso algum é admitida a transferência do capital comum da cooperativa para fora do sector social, sob cominação da nulidade estabelecida no artigo 111 do Código Cooperativo, tanto para os atos de transformação jurídica das cooperativas em sociedade comerciais, como para as operações que afetem bens cooperativos a fins privados; j) As operações das cooperativas com terceiros apenas são permitidas quando a legislação do sector e os respetivos estatutos as prevêem (art. 2, nº 2 do Código Cooperativo) e não podem desvirtuar o mesmo objecto nem prejudicar as posições adquiridas pelos seus cooperadores, devendo o seu montante ser escriturado em separado do realizado com os cooperadores” (art. 14, nº 1, do Decreto-Lei n.º 502/99, de 19/11); k) Os estatutos da cooperativa ré não prevêem operações com terceiros e o seu objeto social restringe toda a atuação à realização dos interesses das cooperativas associadas, sendo os terrenos e fogos destinados aos membros destas (art. 6, nº 1); l) No caso concreto dos autos, a venda dos lotes contrariava a deliberação da assembleia geral da Uchalgar, mencionada no facto provado nº 11, que mandava a direção da cooperativa edificar habitações nos lotes de terreno, destinados aos cooperadores, pelo que a compra e venda e a sua promessa, que nunca havia sido deliberada pelos órgãos da cooperativa (facto provado nº 23); m) O negócio prometido é nulo, por ofensa ao disposto no art. 111 do Código Cooperativo, com violação do objeto social e não prevista nos estatutos da Uchalgar, além de que envolvia a transferência para o sector privado de todo o património votado a fins cooperativos; n) Os 2º e 3º réus vez alguma tomaram medidas conducentes à concretização ou convalidação, designadamente promovendo as necessárias deliberações internas da Uchalgar e desipotecando os prédios ou demonstrando que a venda a terceiro não excedia os limites legais, não reuniram os documentos necessários para o efeito e que nem sequer o presidente da direção conheceu do negócio (factos provados nºs 21 e 22); o) Como ensina Antunes Varela, corroborando o acórdão do STJ de 15/10/1981, quando o contrato definitivo é proibido por lei, também será proibido, e portanto nulo, o contrato-promessa correspondente; p) É inaplicável ao caso o disposto no art. 409 do Código das Sociedades Comerciais, respeitante às sociedades anónimas, que se refere à liberdade contratual privatística, onde se presume a correspondência do ato de administração com o interesse de lucro da sociedade, enquanto critério da boa fé nos negócios com terceiros; q) Nas cooperativas, os administradores têm o dever de “Praticar os atos necessários à defesa dos interesses da cooperativa e dos cooperadores, bem como à salvaguarda dos princípios cooperativos” (art. 46, nº 1, a), do Código Cooperativo); r) Os 2º e 3º réus, secretário e tesoureiro da direcção da cooperativa, não tinham poderes para outorgar a promessa, sem intervenção do presidente da direção (factos provados nºs 5, 13 e 23) e nada fizeram para convalidar tais poderes ou para justificarem tal atuação, pelo que o ato que praticaram não tem eficácia externa (art. 49 do Código Cooperativo); s)...

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