Acórdão nº 354/21 de Tribunal Constitucional (Port, 27 de Maio de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Gonçalo Almeida Ribeiro
Data da Resolução27 de Maio de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 354/2021

Processo n.º 548/2020

3ª Secção

Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), da sentença daquele Tribunal, de 30 de junho de 2020.

2. O ora recorrido intentou ação administrativa visando a declaração de nulidade do ato da sua inscrição no registo de identificação criminal de condenados pela prática de crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menor, previsto no artigo 4.º da Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto, e regulamentado no anexo que dela consta, com fundamento na ofensa ao conteúdo essencial do direito fundamental à não retroatividade da lei penal e das medidas de segurança.

O impugnante, ora recorrido, havia sido condenado por acórdão datado de 5 de julho de 2007 numa pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob condição de pagamento de determinadas quantias à ofendida, pela prática de três crimes de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punível pelos artigos 172.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, alínea a) e 30.º, todos do Código Penal, cometidos em dezembro de 2001. A pena foi declarada extinta em 23 de outubro de 2011. Notificado da sua inscrição no registo de identificação, nos termos do artigo 12.º do anexo à Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto, e após algumas vicissitudes, o ora recorrido instaurou ação de impugnação da respetiva legalidade.

Por sentença proferida em 30 de junho de 2020 – a decisão ora recorrida −, a ação administrativa foi julgada procedente, tendo o juiz recusado a aplicação da norma que resulta da conjugação do n.º 1 do artigo 2.º com o artigo 8.º do anexo à Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto, no sentido de que estão sujeitos a inscrição no registo de identificação criminal de condenados pela prática de crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menor os indivíduos condenados antes da entrada em vigor do referido regime.

Com interesse para os autos, pode ler-se na decisão:

«V - Fundamentação de direito

Como adiantado, a análise a empreender respeita à legalidade da inscrição do Autor no sistema de registo de identificação criminal de condenados por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menor, aprovado em anexo à Lei n.° 103/2015, de 24 de agosto.

O Autor não se insurge quanto à criação desse sistema de registo de identificação criminal em geral, mas apenas quanto à sua aplicação a factos e decisões judiciais anteriores à data da criação desse registo, como acontece no seu caso, em que, à data da publicação em Diário da República, a pena já se encontrava inclusivamente extinta (facto C)).

No fundamental, o Autor entende que a decisão administrativa de inscrição nesse registo, independentemente de se tratar de uma pena acessória ou de uma medida de segurança, viola o princípio da legalidade e da proibição de retroatividade da lei penal, previstos no n.° 3 do art.º 18.° e no n.° 3 do art.0 29.° da CRP, assim como no n.° 4 do art.° 2.° do Código Penal, sancionando uma conduta através de um efeito da pena que não estava previsto em lei anterior à prática do facto.

Por sua vez, a DGAJ começa por realçar que se encontrava obrigada a proceder à inscrição do Autor no registo, atenta a sua vinculação ao princípio da legalidade. De qualquer modo, afirma que, contrariamente ao alegado, o referido registo não constitui uma sanção de natureza penal, nem um efeito da pena, «mas sim uma medida preventiva de reincidência a qual se mantém confidencial para o público. »

O art.º 4.° da Lei n.° 103/2015 criou o sistema de registo de identificação criminal de condenados pela prática de crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menor, o qual fez constar em anexo.

De acordo com o art.° 1 desse anexo, «O sistema de registo de identificação criminal de condenados por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menor constitui uma base de recolha, tratamento e conservação de elementos de identificação de pessoas condenadas por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menor.»

O articulado do anexo é claro no sentido de que serão inscritas nesse registo as pessoas, independentemente da nacionalidade, que venham a ser, ou já tenham sido, condenadas pelos crimes aí enunciados, sendo a inscrição cancelada (não havendo também, portanto, lugar à inscrição de condenações anteriores) «decorridos os prazos referidos no n.° 3 do artigo 13.º, desde que entretanto não tenha ocorrido nova condenação por crime contra a autodeterminação» (art.º 11.°).

A inscrição de condenações anteriores à criação do registo resulta de forma inequívoca do n.° 1 do art.º 2.º, com a determinação de inscrição de pessoas com «antecedentes criminais relativamente aos crimes previstos no artigo anterior» e, ainda de forma mais clara, do n.° 2 do art.° 8.°, o qual dispõe que «Cabe à Direção-Geral da Administração da Justiça a inscrição das decisões anteriores à criação deste registo.»

Atento o exposto, resulta claro que o diploma em anexo não admite uma eventual leitura interpretativa em conformidade com a CRP no sentido de só permitir a inscrição de condenações posteriores ou de factos praticados posteriormente à criação do registo. Pelo contrário, o diploma é claro quanto à sua aplicação a condenações criminais anteriores, sendo materialmente inconstitucional se proceder a argumentação do Autor.

De qualquer forma, tem razão a Entidade Demandada quando afirma que, por força da sua vinculação ao princípio da legalidade, encontrava-se obrigada a inscrever o Autor no registo em apreço, porquanto, como é sabido, em regra, não podem as entidades administrativas invocar questões de constitucionalidade para recusar a aplicação de diplomas legislativos.

No entanto, tal condicionante não se aplica aos tribunais, os quais estão vinculados à apreciação concreta da constitucionalidade das normas, quando a sua conformidade constitucional relevar para efeitos da decisão da questão em litígio. Assim, de acordo com o art.° 204.° da CRP, «Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.»

O art.º 29.° da CRP, epigrafado aplicação da lei criminal, em especial os n.°s 1 e 3, consagra o princípio da proibição da retroatividade das sanções penais e das medidas de segurança mais desfavoráveis. Concretamente quanto às medidas de segurança, garante a Constituição que a sua criação e os seus pressupostos são obrigatoriamente fixados em lei anterior.

Importa, assim, analisar a natureza jurídica do ato de inscrição no sistema de registo de identificação criminal de condenados pela prática de crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menor, criado pelo art.º 4.° da Lei n.° 103/2015 e regulamentado no diploma a ele anexo, para efeitos de determinar se nele podem ser inscritos condenados em decisões anteriores à data da criação desse registo.

Para o efeito, importa atentar que as restrições que resultam da inserção no registo são as que foram indicadas ao Autor na notificação que lhe foi dirigida (factos D) e E)).

Assim, nos termos do art.º 13.º do diploma anexo, tem os deveres de, perante autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal:

a) Comunicar o sen local de residência e domicílio profissional, no prazo de 15 dias a contar da data do cumprimento da pena ou medida de segurança, ou da colocação em liberdade, e a confirmar estes dados com periodicidade anual;

b) Declarar qualquer alteração de residência, no prazo de 15 dias;

c) Comunicar, previamente, ausência do domicílio superior a cinco dias e seu paradeiro.

Mais deve ser realçado, e foi na referida notificação, que «Nos termos do disposto no artigo 14.° do Regulamento a falta de cumprimento dos deveres de comunicação a que se refere o n.° 3 da presente notificação é punida com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias sendo comunicada ao Ministério Público ou a órgão de polícia criminal, no prazo de oito dias a contar da comunicação devida.»

São indicadas como finalidades do registo «o acompanhamento da reinserção do agente na sociedade, obedecendo ao princípio do interesse superior das crianças e jovens, em ordem à concretização do direito destes a um desenvolvimento pleno e harmonioso, bem como auxiliar a investigação criminal» (art.° 3.°)

De acordo com o art.° 5.°, o registo é constituído, designadamente, pelos elementos de identificação do agente constantes do art.º 9.º, tendo a ele acesso, além do próprio (art.º 15.º), os terceiros a que se refere o art.º 16.º do anexo, nos termos também aí descritos.

A questão da natureza jurídica do registo criminal, nas suas várias vertentes, tem sido objeto de estudo doutrinal e, na jurisprudência, foi analisado, em especial, no acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 7-07-2016, proc. n.° 2314/07.0TAMTS-D.P1-A.S1.

De acordo com este aresto:

«Consoante a finalidade que preside à obtenção da informação nele contida, o registo ora se assume como um meio de prova (se efetuada por magistrados judiciais, do M. ° P. ° ou pelas polícias, com vista à instrução e julgamento de processos criminais, a relevar em sede de medida da pena, de reincidência, de pena relativamente indeterminada ou de medida de segurança), meio de prova esse sujeito aos princípios gerais do direito processual penal (onde o cancelamento para fins judiciais constitui verdadeira...

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