Acórdão nº 350/21 de Tribunal Constitucional (Port, 27 de Maio de 2021

Data27 Maio 2021
Órgãohttp://vlex.com/desc1/2000_01,Tribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 350/2021

3.ª Secção

Relator: Conselheira Maria José Rangel de Mesquita

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte - Juízo Local de Pequena Criminalidade de Loures, em que é recorrente o Ministério Público e é recorrido A., o primeiro interpôs recurso para o Tribunal Constitucional (cf. fl. 41), ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º e nos artigos 72.º, n.ºs 1 e 3, e 75.º-A, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (Lei do Tribunal Constitucional, adiante designada pela sigla LTC), da decisão proferida por aquele Tribunal Judicial em 5 de maio de 2020 (a fls. 64-70) que decidiu desaplicar a norma constante do artigo 46.º, n.º 7, do Decreto n.º 2-C/2020, de 17 de abril, por violação do disposto nos artigos 165.º, n.º 1, alínea c) e 29.º da Constituição da República Portuguesa.

2. O requerimento de interposição de recurso tem o seguinte teor (cf. fl. 41):

«O Ministério Público vem, nos termos do disposto nos artigos 3º n.° 1 al. f) e 2. do Estatuto do Ministério Público, 280° n.°s 1 al. a) e 3 da Constituição da República Portuguesa e 70° n.° 1 al. a), 71° n.° 1, 72° n.° 1 e 3 e 75°-A n.° 1 da Lei n° 28/82, de 15.11, por imperativo legal, nos autos acima identificados, interpor recurso para o Venerando Tribunal Constitucional da douta sentença proferida nos presentes autos.

O presente recurso tem em vista a apreciação da inconstitucionalidade das normas constantes nos artigos 46°, n° 1, alíneas a) e c) e n° 7 do Decreto n° 2-C/2020 de 17 de abril, cuja aplicabilidade foi recusada no referido despacho com o fundamento que tais disposições são inconstitucionais por violação do disposto no artigo 165°, n° 1, al. c) e artigo 29° ambos da Constituição da República Portuguesa.

O presente recurso sobe nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo, nos termos do artigo 78° da Lei 28/82 de 15 de novembro.».

3. O recurso foi admitido por despacho do Tribunal a quo de 8/5/2020 (cf. fl. 42).

4. Verificando-se que no teor da ata de audiência de discussão e julgamento constante dos autos não havia referência expressa à desaplicação da norma sindicada (ou de qualquer outra), foi proferido despacho pela relatora solicitando ao tribunal recorrido a transcrição integral da sentença (fl. 49).

5. Após a receção da sentença recorrida, na sua transcrição integral, foi proferido pela relatora despacho de alegações, nos seguintes termos (cf. fl. 72):

«Notifiquem-se as partes para alegar, no prazo de 30 (trinta) dias, nos termos dos artigos 78.º-A, n.º 5, e 79.°, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, advertindo-se as mesmas para se pronunciarem, querendo, sobre a possibilidade de não se conhecer do objeto do recurso, por inutilidade, face à invocação, na fundamentação da decisão recorrida para o Tribunal Constitucional, de um fundamento alternativo do sentido decisório (cf. transcrição da sentença recorrida, p. 2, a fl. 65 dos autos e despacho da Juíza Relatora nas instâncias, a fls. 57-59 dos presentes autos, em particular fl. 58).

Junte-se cópia da transcrição da sentença recorrida e do despacho acima identificado. (...)»

5.1 O recorrente Ministério Público apresentou alegações com o seguinte teor (cf. fls. 74-97):

«I

1. Interpôs o Ministério Público, em 8 de Maio de 2020, a fls. 41 dos autos supra-epigrafados, recurso obrigatório, para este Tribunal Constitucional, do teor da douta decisão judicial de fls. 36 a 38, em conjugação com fls. 64 a 70 (cuja pertinência processual não é alterada pelo escrito de fls. 57 a 59), proferida pelo Juízo Local de Pequena Criminalidade de Loures – Juiz 1, do Tribunal judicial da Comarca de Lisboa Norte - Processo n.º 252/20.0PGLRS, “(…) nos termos do disposto nos artigos 3º n.º 1 al. f) e 2. do Estatuto do Ministério Público, 280º n.ºs 1 al. a) e 3 da Constituição da República Portuguesa e 70º n.º 1 al. a), 71º n.º 1, 72º n.º 1 e 3 e 75º-A n.º 1 da Lei nº 28/82, de 15.11 (…)”.

2. Este recurso “tem em vista a apreciação da inconstitucionalidade das normas constantes nos artigos 46º, nº 1, alíneas a) e c) e nº 7 do Decreto nº 2-C/2020 de 17 de abril, cuja aplicabilidade foi recusada no referido despacho (…)”.

3. Os parâmetros de constitucionalidade cuja violação se invoca são os constantes do “(…) artigo 165º, nº 1, al. c) e artigo 29º ambos da Constituição da República Portuguesa”.

II

4. A douta sentença recorrida, prolatada pela Mm.ª Juiz do Juízo Local de Pequena Criminalidade de Loures – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, pronunciou-se sobre a acusação deduzida contra A., ao qual o Ministério Público imputava o cometimento “em autoria material, [de] um crime de desobediência agravada, previsto e punido pelo artigo 348º n.º 1 al. b) do Código Penal, com referência aos artigos 5º e 46º nº 1 al. c) e d) e n.º 7 do Decreto nº 2-C/2020 de 17.04, 7º da Lei n.º 44/86 de 30.09 e 6º n.º 1 e 4 da Lei nº 27/2006 de 03.07”.

5. Sustentando o seu entendimento sobre a questão de constitucionalidade, começou a Mm.ª decisora “a quo” por identificar o objecto do processo, nos seguintes termos:

“[O] Arguido A. melhor identificado nos autos, [que] vem pelo Ministério Público, acusado dum crime de desobediência agravada, previsto e punido pelos artigos 348 número 1, alínea a) e b) do Código Penal com referência as artigos 9.° a 46.° número 1, alínea c) e d) número 7 do Decreto 2C/2020 do 7 do 4, 7.° da Lei 4486 de 30/09, e 6.° número 1 e 4 da Lei 27/ 2006 de 03 /07, e da resolução da Assembleia da República número 23 A/2017 do 04/2020”.

6. Continuando a explanação dos pressupostos da decisão, passou a douta decisora “a quo” a fundamentá-la constitucionalmente nos seguintes termos:

“Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo e o arguido não apresentou contestação nem arrolou testemunhas. Quanto a uma questão prévia que o tribunal entende oficiosamente apreciar, a arguida vem acusada pelo Ministério Público da prática de crime de desobediência agravada por referência ao disposto no artigo 46.° número 7, do Decreto número 2C/2020 de 17/04, nos termos do qual a desobediência e resistência ás ordens legítimas das entidades competentes quando praticado em violação do disposto presente decreto são sancionadas nos termos da Lei Penal, e as respectivas penas são sempre agravadas em um terço, nos seus, nos seus limites mínimos e máximo nos termos do número 4 do Artigo 6.° da Lei 27/2006 de 3 de Julho, todavia o referido preceito legal encontra-se, ferido em nosso entender de inconstitucionalidade formal e orgânica uma vez de que modo inovador legislou pela forma de decreto e sem autorização legislativa da Assembleia da República, o Governo, através do Conselho de Ministros, à agravação de consequências jurídico penais”.

7. Prosseguindo o seu excurso, esclareceu a douta julgadora “a quo” que:

“É certo que tal preceito remete para a Lei 27/2006 de 3 Julho, a Lei de Bases de Protecção Civil, contudo bem como refere o autor Alexandre de Oliveira, no estudo do caderno especial do CEJ, acerca do estado de emergência COVID 19, implicações na justiça, dedicado ao crime de desobediência no actual estado de emergência, a agravação em causa, apesar de tal remissão, não deixa de ser inovadora, porquanto resulta como o processo citado ... imperceptível ... da violação do Decreto número 2C/2020 e não daquele outro diploma. Entende-se assim salvo melhor opinião e acompanhado o referido autor. Início de citação "que o Governo excedeu os poderes administrativos que no momento vestia para se cumprir de forma ilegítima com as vestes do legislador que fora portanto da sua competência legislativa prevista no Artigo 198 da Constituição da República Portuguesa" fim de citação” .

8. Mais acrescentou a douta decisora recorrida, que:

“[N]o caso concreto entende-se que a aplicação da norma prevista no Artigo 46, número 7 do Decreto de 2 C/2020 de 2/4 aprovado pelo presidência do Conselho de Ministros, conduzindo ao agravamento da pena aplicável ao crime imputado ao arguidos, se traduziria numa clara violação do princípio nula plena sins legis constitucionalmente consagrado no Artigo 29 número 1 da Constituição da República Portuguesa, uma vez que se trata de matéria que se inclui no âmbito da reserva exclusiva da Assembleia da República. Acresce que ao arguido foi imputada uma conduta abstractamente enquadrável no âmbito do disposto no artigo 348 alínea D do Código Penal, a qual exige que lhe seja feita uma cominação, sendo certo que até, que a referida combinação foi feita com referência a dia 14 de, de 2020, data em que ainda não havia entrado em vigor, o decreto n.° 2C/2020 de 17 de Abril, pelo que a referida cominação não lhe podia ter sido dirigida nos termos do artigo 46 n.° 7 do referido decreto 2C/e 2020”.

9. Desta fundamentação, retirou a Mm.ª Juíza “a quo” a seguinte conclusão:

“[P]elo exposto ao abrigo do disposto n.° 1 artigo 204 da Constituição da República Portuguesa, de desaplicar a norma revista no artigo 46 ... imperceptível ... 17/04 face à sua inconstitucionalmente orgânica e formal por violação dos dispostos artigos 165 e c), e 29 n.° 1 da ... imperceptível... da Constituição da República Portuguesa (…)” .

10. Em consequência do demonstrado, deliberou a Mm.ª Juíza recorrida no segmento relevante, a final, que:

“[A]ssim face ao exposto, decide o tribunal condenar o arguido A., pela prática como autor material de desobediência previsto e punido pelo artigo 348, n.° 1, alínea B do Código Penal, portanto referente ao dia 19/04/2020, na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de 5 euros, no...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT