Acórdão nº 353/21 de Tribunal Constitucional (Port, 27 de Maio de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Gonçalo Almeida Ribeiro
Data da Resolução27 de Maio de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 353/2021

Processo n.º 471/2020

3ª Secção

Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, em que é recorrente o Ministério Público e recorrida A., foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), da decisão daquele tribunal, de 7 de janeiro de 2020, na parte em que recusou aplicar o «n.° 8 do art.º 738.° do CPC, por ofender, de forma desproporcional e desajustada, o valor da Dignidade da Pessoa Humana contido no princípio do Estado de Direito e o direito à proteção da família, tal como resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 1.° e 67.°, n°s. 1 e 2, alínea a) da Constituição.»

2. No âmbito de um processo de execução fiscal instaurado contra a ora recorrida, a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante «AT») determinou a penhora de um crédito, relativo a serviços de advocacia prestados pela executada ao Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I.P., (adiante «IGFEJ»). A recorrida deduziu oposição à execução (que foi objeto de convolação em reclamação de ato do órgão de execução fiscal), pugnando pela anulação dessa decisão e pela reposição do montante cuja penhora defendeu ser ilegal, por ofender os n.ºs 1 a 3 do artigo 738.º do Código de Processo Civil (aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro), que versam sobre a impenhorabilidade parcial de «vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado.» (v. o n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil).

Sem questionar que o crédito cuja penhora foi determinada se encontraria em princípio abrangido pelo n.º 8 do artigo 738.º do Código de Processo Civil – por estarem em causa rendimentos devidos pelo exercício de uma atividade incluída na tabela a que se refere o artigo 151.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (adiante designado «Código do IRS») –, a AT contrapôs que a aplicação desse regime de impenhorabilidade «depende de opção do executado a apresentar por via eletrónica no Portal das Finanças» e da observância do ónus de comunicação dos elementos a que se referem as subalíneas da alínea d) do n.º 8 do artigo 738.º. Não tendo a ora recorrida observado este ónus, foi imediatamente aplicado à executada o regime da penhora de créditos.

O Tribunal a quo começou por dar por demonstrado que a ora recorrida «tem a seu cargo dois filhos menores» e «apenas possui rendimentos provenientes de prestações de serviços de advocacia», os quais «são ocasionais, de valor incerto, e provêm, no essencial, de honorários pagos pelo IGFEJ» e, portanto, «essenciais para garantir o sustento do respectivo agregado familiar e, por isso, para assegurar a sua subsistência.» Reconhecendo a inobservância, pela recorrida, do ónus a que se refere a alínea d) do n.º 8 do artigo 738.º, afirmou a decisão recorrida que «[n]ão se vê, neste caso concreto, como possa o incumprimento do referido dever (de natureza instrumental) de comunicação perante a AT pôr em causa a boa cobrança das dívidas exequendas.» E concluiu que «perante estes bens em conflito, não poderá deixar de prevalecer, como defendeu a Reclamante, o direito à impenhorabilidade dos rendimentos essenciais ao sustento do seu agregado familiar», razão pela qual se determinou que fosse anulado o ato de penhora de créditos praticado pela AT.

3. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório desta decisão para o Tribunal Constitucional. Notificado para indicar com precisão a norma que constitui o objeto do presente recurso, nos termos previstos nos n.º s 5 e 6 do artigo 75.º-A da LTC, veio o recorrente esclarecer que pretendia ver apreciada «a questão da constitucionalidade da norma do n.º 8 do artigo 738.º do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual, aplicando-se aos rendimentos auferidos no âmbito das atividades especificamente previstas na tabela a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS o disposto nos n.ºs 1 a 3, o incumprimento do dever de comunicação perante a Autoridade Tributária, previsto na alínea d), afasta a aplicação daquele regime de impenhorabilidade.»

4. Notificado para produzir alegações, o recorrente apresentou, as seguintes conclusões:

«V. Conclusões

24º

Em face do defendido ao longo das presentes alegações, julga-se, assim, que se poderão retirar, agora, as conclusões que em seguida se enunciam.

Nos presentes autos, a Autoridade Tributária efetuou, no âmbito de processo de execução fiscal instaurado pelo Serviço de Finanças de Sintra – 2, a penhora de créditos provenientes de honorários pagos à Reclamante, A. por parte do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (IGFEJ), no valor de € 586, a título de prestação de serviços como defensora oficiosa e/ou advogada.

Em causa, a cobrança coerciva de dívida proveniente de IVA de 2011, bem como de dívidas de IRS, IVA e coimas fiscais, no valor total de € 5.254,76.

25º

A Reclamante não concordou, porém, com este entendimento e apresentou, em consequência, reclamação de atos do órgão de execução fiscal perante o TAF de Sintra.

Alegou, designadamente, ser o seu único rendimento o proveniente dos pagamentos recebidos através do IGFEJ, a título de prestação de serviços como defensora oficiosa e/ou advogada, estando, por isso, em causa a sua subsistência, bem como a possibilidade de prover ao sustento dos menores a seu cargo, importando, pois, dar prevalência, nos termos do artigo 738.º do Código de Processo Civil, à necessidade de lhe ser assegurada uma sobrevivência condigna, por razões que se prendem com a preservação da dignidade da pessoa humana, ainda que isso implicasse o eventual sacrifício do direito do credor.

(…)

31º

A sentença recorrida refere-se, em seguida, à condição introduzida, através da inclusão de um nº 8 ao artigo 738º do Código de Processo Civil pela Lei do Orçamento do Estado para 2018, à aplicação de um “mínimo de subsistência” para os profissionais liberais, que ficava dependente do exercício de uma comunicação prévia, através do Portal das Finanças, em que o executado deveria identificar, não só as entidades devedoras dos seus rendimentos, mas também os montantes de rendimentos que, previsivelmente, iria auferir em cada mês.

32º

Todavia, a sentença recorrida veio sublinhar, a este propósito:

Ora, em grande parte das situações, poderá, desde logo, ser difícil a um profissional que exerça uma das atividades especificamente previstas na tabela a que se refere o art.º 151.º do Código do IRS – que tem profissões tão díspares, como as de eletricista, arquiteto, advogado, topógrafo, artista plástico, pintor, fisioterapeuta, nutricionista, terapeuta da fala, médico analista, engomador, esteticista, perito-avaliador – possa saber, antecipadamente, quem serão as pessoas ou entidades devedoras de rendimentos e o montante previsível dos mesmos.

Assim, para todos os profissionais que não obtenham rendimentos certos ou previsíveis – ou que não tenham uma carteira de clientes estável – pode ser totalmente inviável dar cumprimento a este dever de comunicação.

33º

E a sentença recorrida acrescenta, logo em seguida:

Na verdade, ainda que o legislador refira na alínea d) do atual nº 8 do normativo legal que a aplicação da impenhorabilidade depende da “opção do executado”, essa não é...

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