Acórdão nº 197/21 de Tribunal Constitucional (Port, 08 de Abril de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Mariana Canotilho
Data da Resolução08 de Abril de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 197/2021

Processo n.º 1185/19

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Mariana Canotilho

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi pelo primeiro interposto recurso de constitucionalidade ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada por LTC), do acórdão proferido por aquele Tribunal (fls. 1211-1236), em 23 de outubro de 2019, pretendendo ver apreciada a dimensão normativa ínsita ao artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal como adotada pelo juízo a quo.

2. No curso do processo originário, o ora recorrente apresentou contestação contra a acusação deduzida pelo Ministério Público pela prática, entre outros, de um crime de lenocínio na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 30.º e 169.º, n.º 1, do Código Penal. Em primeira instância, o Juízo de Competência Genérica de Seia (Tribunal Judicial da Comarca da Guarda) julgou procedente a acusação, condenando o recorrente pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de lenocínio. Inconformado, o recorrente interpôs recurso dessa decisão para o Tribunal da Relação de Coimbra. Com interesse para os autos, pode ler-se naquelas conclusões (fls. 1172, verso – 1190):

«1.a- Na contestação que apresentou na sequência da notificação do despacho que designou datas para o julgamento, para além do mais, o arguido invocou a inconstitucionalidade da norma do n.° l do artigo 169. ° do Cód. Penal com base na qual estava a ser acusado.

2.a-Ainda assim, indiferente aos seus argumentos, o Tribunal entendeu decidir pela constitucionalidade da norma - diga-se: de forma "simplista" e aligeirada, sem ponderar nem apreciar a maior parte dos argumentos ali expostos - condenando o arguido com base na mesma em função da matéria de facto dada como assente.

3.a-É precisamente com esta parte da decisão - com as inerentes consequências em sede de condenação pela prática do dito crime - que o arguido se não conforma e da qual vem recorrer.

4.a-O recorrente não vai por em causa a essencialidade matéria de facto dada como assente pelo Tribunal, ainda que tenha a perfeita noção que alguns dos factos ali foram consignado não têm qualquer suporte probatório à luz da prova produzida e analisada em audiência de julgamento.

5.a-Contudo, o arguido não se conforma nem pode admitir o segmento formal dos factos - psicológicos e do foro interior de cada dos arguidos - consignados na parte final do ponto 41 na parte onde se lê : "....bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal".

6.a-Com efeito, em momento algum o arguido - e a sua co-arguida - admitiu - ou admite - que os factos de que vêm acusados sejam contrários aos direito penal vigente e, como tal, suscetíveis de levar à comissão de um crime.

7.a-De resto, em audiência de julgamento não foi produzida ou analisada uma única prova que permita afirmar que os arguidos em algum momento tiveram (ou têm) essa convicção, e o Tribunal recorrido também não justifica onde formou a sua convicção acerca desse facto.

8.a-Antes pelo contrário, pelas razões que se irão aduzir infra, o recorrente tem a convicção de que as condutas descritas na matéria de facto dadas como provadas na sentença são licitas, e ao invés, a norma do n.°l do artigo 169.° do Cód. Penal, por desconforme com os parâmetros constitucionais, não pode ser-lhes aplicada.

9.a-Confrontado com a arguição da inconstitucionalidade da norma incriminadora, o Tribunal recorrido, arrimando-se na posição defendida pelo Tribunal da Relação de Coimbra no seu acórdão de 28.02.2018, concluiu pela improcedência daquela, por considerar que o bem jurídico por la tutelado não será tanto a liberdade de expressão sexual da pessoa, mas "...uma determinada conceção de vida inconciliável com a aceitação do exercício profissional ou com a aceitação do exercício profissional ou com a intenção lucrativa do fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição".

10.a-Na nossa modesta opinião, sai reforçada a posição por nós defendida de que a norma em causa é inconstitucional por violação dos artigos 9o, alínea b), 13°, n°s 1 e 2, 16°, n°2, 18°, n°s 2 e 3, e 26°, n°l, da Constituição da República Portuguesa.

11 .a- Conforme resulta à evidencia da matéria de facto consignada na parte final dos pontos 4 e 24 dos "factos provados" da sentença recorrida, subjacente à conduta levada a cabo pelos arguidos estava um acordo de vontades - um mutuo consenso - formado entre aqueles e cada uma das mulheres que ali se prostituíam, com vista à obtenção de rendimentos para ambas as partes.

12.a- Acordo de vontade esses a que as mulheres havia chegado deforma voluntária para assumir um projeto que, logo que assim entendessem, poderiam abandonai-, o que a maior parte delas fazia passado pouco tempo para "rumarem a novas paragens...".

13.a- Ou seja, estamos perante uma situação em que mera prática de relações de natureza sexual entre maiores onde inexiste qualquer preterição da sua liberdade e autodeterminação sexual, tendo a mulher domínio pleno da sua atuação e ação e tratamento condigno e condizente com a sua condição humana, ao nível de cordialidade, simpatia, liberdade e autodeterminação sexual, inexistindo assim qualquer ofensa a algum bem jurídico ou mesmo vítima;

14.a-Estamos perante um acordo formado pelas partes sem violência ou ameaça grave, ardil ou manobra fraudulenta, abuso de autoridade resultante de relação familiar, de tutela ou curatela, dependência hierárquica, económica ou de trabalho bem como aproveitamento de incapacidade psíquica ou especial vulnerabilidade, ocorrer a prática ou mera possibilidade de tal crime e existência de uma vítima!

15.a- Invocar "uma conceção de vida inconciliável com a aceitação do exercício profissional ou com a aceitação do exercício profissional ou com a intenção lucrativa do fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição" para justificar a condenação em pena de prisão de um cidadão, é o mesmo que invocar "bons costumes".

16.a-Importa, assim, que o Tribunal aquilate da conformidade à Lei fundamental da consagração do que se entenda por "bons costumes" nesta matéria, numa era de modernidade e evolução social, em que aquilo que era imoral há anos atrás hoje já o não é. Ou continuando a sê-lo, haverá muito menor resistência da sociedade em razão da tolerância crescente e aceitação como quase normalidade.

17.a-Em função da sua atual redação e evolução histórica da norma do n.°l do artigo 169.° do Cód. Penal, entendemos que a incriminação da conduta típica não está preordenada à salvaguarda - menos ainda é para tanto necessária - de quaisquer "direitos ou interesses constitucionalmente protegidos".

18.a - Ou dito em linguagem da doutrina penal, não é necessária à proteção de qualquer bem jurídico. Bem jurídico que não se descortina na pertinente área de tutela típica.

19.a-Noutra perspetiva, estamos perante uma manifestação concreta dos chamados "crimes sem vítima", no sentido criminológico do termo, na linha da E. SHUR (victimless crimes ou crimes without victims. Cf. EDWIN SCHUR, Crimes Without Victims: Deviant Behavior and Public Policy, Prentice Hall inc. 1965).

20.a-É seguramente assim a partir da reforma de 1998. Que inter alia eliminou o inciso exploração de situação de abandono ou de necessidade económica''' - constante da versão originária (de 1982/1995).

21.a-E deste modo abriu deliberadamente mão do momento da factualidade típica que associava a infração à ofensa à liberdade sexual e deixou atrás de si uma incriminação exclusivamente votada à punição de "quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar" uma prática em si mesma irrelevante e indiferente para o direito penal - a prostituição.

22.a-Assim, o afastamento da liberdade sexual da área de proteção da norma deixa apenas em campo a prevenção ou repressão do "pecado", um "exercício de moralismo atávico" travestido de uma "...uma determinada conceção de vida inconciliável com a aceitação do exercício profissional ou com a aceitação do exercício profissional ou com a intenção lucrativa do fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição ", com a qual o direito penal do Estado de Direito da sociedade secularizada e democrática dos nossos dias nada pode ter a ver.

23.a-Uma consideração das coisas contra a qual não pode pertinentemente invocar- se a ideia de obviar a perigos contra a dignidade ou a autonomia das pessoas - homens ou mulheres - envolvidas na prostituição.

24.a-Na certeza de que a incriminação é que pode, ela própria, configurar um atentado perverso à dignidade ou autonomia das pessoas. Que sendo adultas, esclarecidas e livres - no fundo a situação típica pressuposta pela incriminação - devem poder legitimamente escolher conduzir a sua vida tanto à sombra da "virtude" como do "pecado".

25.a-Uma escolha insindicável, que devem poder levar à prática, inteiramente resguardados contra a intromissão do direito penal.

26.a-De outro modo e acolhendo-nos à síntese de FIGUEIREDO DIAS, "teríamos uma situação absolutamente anormal e incompreensível: a de o direito penal, pretendendo tutelar o bem jurídico da eminente dignidade (sexual) da pessoa, sacrificá-lo ou violá-lo justamente em nome daquela dignidade.

27.a-O que colocaria o Estado (detentor do jus puniendi) na mais contraditória e perversa das situações: a de sacrificar a integridade pessoal invocando como legitimação o propósito de a tutelar!" (FIGUEIREDO DIAS, "O 'direito penal do bem jurídico' como princípio...

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