Acórdão nº 148/21 de Tribunal Constitucional (Port, 19 de Março de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Gonçalo Almeida Ribeiro
Data da Resolução19 de Março de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 148/2021

Processo n.º 621/2020

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro

Acordam na 3.ª secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é recorrente A. e recorridos o Ministério Público e B., foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), do acórdão daquele Tribunal, de 3 de junho de 2020.

2. O aqui recorrido, na qualidade de arguido em processo-crime, foi condenado pelo Tribunal de 1.ª instância numa pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período e sujeita a determinadas condições, pela prática de um crime de violência doméstica. Mais foi condenado no pagamento à aqui recorrente, que tem a posição processual de assistente e lesada, de uma determinada quantia pecuniária a título de indemnização civil.

Inconformada com tal decisão, a assistente dela interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra.

Por decisão singular do relator no Tribunal da Relação de Coimbra, datada de 23 de abril de 2020, o recurso da assistente foi rejeitado, com fundamento em ilegitimidade, na vertente criminal; e com fundamento no valor da causa, na vertente civil.

A assistente reclamou para a conferência, o que originou a prolação da decisão ora recorrida, a qual, na parte com relevo para os presentes autos, indeferiu a reclamação, confirmando a decisão de rejeição do recurso.

Pode ler-se na fundamentação de tal decisão:

«2. Vejamos, então.

Brevitatis causa, diremos que o despacho reclamado tem por suporte legal o disposto no art.º 401.°, n.°s 1, b) e 2, do C. Processo Penal, interpretados pela jurisprudência fixada pelo Assento n.° 8/99, de 30 de Outubro de 1997 [O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Publico, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir].

A assistente, ora reclamante, entende que a circunstância de ser a vítima do crime por cuja prática foi o arguido condenado nos autos, a circunstância de recear que o arguido, face à pena que lhe foi imposta e à data em que os factos que a determinaram foram praticados [vigência do período de suspensão da execução de pena de prisão pela prática de crime da mesma natureza], volte a perturbá-la, a agredi-la e a ameaça-la, a circunstância de a pena aplicada ao arguido violar de forma significativa o seu interesse na atribuição de uma pena justa ao agente, decorrente da circunstância de ter acompanhado a acusação pública, de ter deduzido pedido de indemnização civil e de ter tido, através de mandatário, intervenção relevante para a descoberta da verdade, o que demonstra o seu interesse na condenação do arguido, e na circunstância de, ao ter deduzido pedido de indemnização civil, ter interesse na medida da culpa do arguido, maxime, em sede da sua eventual repartição e graduação, com reflexo no pedido formulado, uma vez que a medida da culpa é o limite da medida da pena, tudo isto revelando a sua necessidade de usar o meio do recurso como instrumento para reagir contra uma decisão que representa uma desvantagem para um interesse seu, legítimo e juridicamente protegido.

Como se vê, a argumentação da assistente ignora a jurisprudência fixada pelo Assento n.° 8/99, na medida em que não demonstra a existência de um interesse concreto e próprio, carecido de tutela. Explicando.

E verdade que a assistente é a vítima do crime praticado pelo arguido e que determinou a sua condenação nos presentes autos.

É também verdade que a assistente, quer porque como tal se constituiu, quer porque aderiu à acusação pública, quer porque deduziu pedido de indemnização civil, assumiu nos autos um posicionamento processualmente ativo, em prol da condenação do arguido. E este interesse da assistente na condenação, penal e civil, do arguido, foi contemplado na decisão recorrida, por via da condenação que nesta lhe foi imposta.

Acontece que, tal como se deixou referido no despacho reclamado, a necessária demonstração do concreto e próprio interesse em agir do assistente, imposta pela jurisprudência fixada no Assento n° 8/99, determina que a sua demonstração tenha que ser feita em função do caso concreto. Pois bem.

Sendo o ius puniendi um poder do Estado, prosseguido pelo Ministério Público, que assegura o interesse coletivo da punição do agente do crime (cfr. art.º 219.°, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa), não existe um direito pessoal público do assistente a uma concreta punição que o habilite, como forma de reparação moral, a exigir do tribunal uma determinada prestação punitiva. Com efeito, estando a punição do agente do crime dominada por um interesse público, não cabe ao assistente interpretar este interesse, sobretudo, quando conflitue com o Ministério Público de quem é, estatutariamente, um colaborador (cfr. art.º 69.°, n.° 1, do C. Processo Penal).

É certo que, em tese, pode questionar-se a bondade da decisão quanto à medida concreta da pena de prisão e respetiva substituição, mas, face ao figurino processual penal vigente, compete ao Ministério Público assumir a discordância o que, in casu, não aconteceu.

Em suma, o assistente não tem legitimidade para recorrer quando a sua pretensão se limita ao interesse coletivo do sancionamento penal do agente do crime, precisamente porque, nestes casos, não se trata de fazer valer um interesse pessoal, um direito próprio, carecido de tutela.

3. Atentemos agora na afirmada violação dos art.ºs 2.° (Estado de Direito Democrático), 9.°, al. b) e c) (Tarefas fundamentais do Estado), 20.°, n.° l (Acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva) e 32.°, n.° l (Garantias de processo criminal) da Constituição da República Portuguesa.

Começamos por dizer que a dita alegação não foi densificada pela assistente com argumentação complementar, para além da que segue:

«Ao assistente são concedidos os poderes processuais para colaborar nessa tarefa, situação que explicita preceitos constitucionais, mesmo antes da atual revisão constitucional. Na verdade, decorre do art.º 2.º da Constituição, que «A República Portuguesa é um Estado de direito democrático [...] que tem por objetivo a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa», prevendo-se no artigo 9.º , alíneas b) e c), como tarefas fundamentais do Estado, «garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático», «defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais». A democracia participativa que assim se explicita também se justifica no processo penal, temperando a efetivação estatizante do direito penal, o exclusivo do Estado no desenvolvimento da administração da justiça penal. Após a revisão constitucional operada pela Lei Constitucional n.º 1/97 (Diário da República de 20 de Setembro de 1997), foi reconhecido ao ofendido o direito (com a respetiva garantia) de intervir no processo, nos termos da lei (artigo 32.°, n.° 7), reconhecendo-se-lhe, pois, um direito fundamental com esse conteúdo, não havendo razão para não considerar o conceito de «ofendido» nos termos restritos, típicos. A autonomia do assistente nos recursos impõe-se por si e a respetiva legitimidade não pode ser vista fora do quadro do instituto da assistência, participante do interesse público, colaborante do Estado, razão da atribuição dos amplos poderes que a lei lhe confere, ao contrário da parte civil que desenvolve atividade meramente privada.».

Com ressalva do respeito devido, não vemos como possa o despacho reclamado ter violado o princípio do Estado de direito democrático, na perspetiva do aprofundamento da democracia participativa, nem em que medida possa ter desrespeitado o disposto nas alíneas b) e c) do art.º 9.º da Lei Fundamental, quando é manifesto que a assistente, porque ofendida e vítima, teve acesso ao tribunal, onde defendeu o direito que entende assistir-lhe, exercendo os direitos processuais que a lei lhe confere, conforme é garantido pelo disposto nos art.ºs 20.°, n.° 1 e 32.°, n.°s 1 e 7, todos da Constituição da República Portuguesa.

O que não pode esquecer-se, é que o direito conferido ao ofendido de intervir no processo não é ilimitado, pois está sujeito aos termos fixados na lei (n.° 7, do art.º 32.°, citado), como o direito ao recurso, constitucionalmente garantido, não é absolutamente ilimitado, podendo o legislador ordinário conformar o seu conteúdo.

Em suma, não se reconhecem as violações, pelo despacho reclamado, das normas constitucionais invocadas.

4. Deste modo, pelas razões sobreditas, que dispensam maiores considerações, deve improceder a reclamação apresentada pela assistente.»

3. Foi então interposto o presente recurso de constitucionalidade, através de requerimento onde se pode ler o seguinte:

«A., Assistente e Recorrente, nos presentes autos e nestes já devidamente identificada, NÃO SE CONFORMANDO. com o teor da Decisão Proferida em 3 de junho de 2020, vem interpor, RECURSO, para o VENERANDO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 75°-A da Lei do Tribunal Constitucional.

O presente Recurso deverá ser admitido a subir, NOS PRÓPRIOS AUTOS E COM EFEITO SUSPENSIVO (art.° 78.º n.° 4 da LTC), porque interposto por SUJEITO DOTADO DE LEGITIMIDADE (art.° 72.° n.° 1 al. b e n.° 2 da LTC) de DECISÃO RECORRÍVEL (art.° 70.° n.° 1 al b) da LTC).

O presente Recurso é interposto ao abrigo do disposto no art.° 70.° n.° 1 al. b) da Lei do Tribunal...

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