Acórdão nº 0480/19.0BEMDL de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 18 de Fevereiro de 2021

Magistrado ResponsávelANA PAULA PORTELA
Data da Resolução18 de Fevereiro de 2021
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam na secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo: RELATÓRIO: 1. A………., LDA. vem interpor recurso jurisdicional de revista para este STA do acórdão do TCA/N, de 18.09.2020, que negou provimento ao recurso interposto da sentença do TAF de Mirandela, que julgara improcedente a ação administrativa urgente de contencioso pré-contratual intentada pela ora Recorrente contra CIMDOURO-COMUNIDADE INTERMUNICIPAL DO DOURO, e as contrainteressadas B…..…….., LDA. e C…………, SA.

  1. Para tanto, alegou em conclusão: “1. No que concerne à invocada violação do caso julgado resultante da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela em 25 de março de 2018, a admissão do presente recurso é “claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”.

  2. A anulação do ato de adjudicação por parte da referida sentença implicava a reconstituição do momento de preparação da decisão referente à análise das propostas — e da análise (logicamente simultânea) das justificações para o preço anormalmente baixo —, e não a retroação ao momento instrutório dessa análise, i.e., da recolha dos factos e informações que permitem ponderar e decidir.

  3. O problema agora enunciado justifica a admissão de revista, pois como julgou recentemente este Supremo Tribunal Administrativo, “a delimitação do dever de executar uma decisão anulatória do ato final de um procedimento poderá vir a colocar-se no futuro. As questões relativas ao âmbito do julgado anulatório e conteúdo do dever de executar são frequentes, geralmente complexas, localizadas numa zona de articulação do exercício do poder administrativo e do respeito pelo caso julgado, portanto justificativas da intervenção do STA para a sua clarificação” (cf. Acórdão de 11 de fevereiro de 2019, proc. 01486/11.3BEBRG, disponível em www.dgsi.pt ).

  4. Além disso, o facto de a interpretação do Tribunal recorrido se mostrar manifestamente errada do ponto de vista jurídico, em face do bloco de legalidade vigente, justifica, só por si, que se chame este Colendo Tribunal a sanar tamanha ilegalidade, ideia que tem aliás respaldo na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, e de que é paradigma o acórdão de 14 de março de 2018, proferido no proc. 053/18 (disponível em www.dgsi.pt ).

  5. De resto, o thema decidendum da presente revista coloca-se no contexto de um procedimento pré-contratual (nisto se apartando da maioria das decisões de revista que incidem sobre a eficácia do caso julgado anulatório, inclusive da já referida), contexto esse que, pela elevada litigiosidade que consabidamente produz, reclama uma adaptação do raciocínio geral sobre o alcance do caso julgado anulatório às suas particularidades procedimentais, em benefício da certeza jurídica e de uma maior facilidade de transposição para outros casos.

  6. Além disso, e tendo presente que a decisão do Tribunal recorrido contraria jurisprudência já firmada por este Colendo Tribunal, “a circunstância de o acórdão do TCA (…) contrariar a orientação uniforme deste STA (…) justifica o recebimento da presente revista, em ordem a possibilitar uma melhor aplicação do direito” (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 11 de março de 2009, proc. 0208/09, disponível em www.dgsi.pt ).

  7. Por fim, “[a] questão a dirimir implica operações jurídicas complexas decorrentes da delimitação da função jurisdicional e da função administrativa, pelo que se reveste de importância jurídica fundamental. E a intervenção deste Tribunal, em sede de revista, tem a possibilidade de contribuir para a estabilidade e segurança do direito em casos como o presente” (cf. Acórdão do Tribunal Administrativo, de 27 de novembro de 2013, proc. 01501/13, disponível em www.dgsi.pt).

  8. Noutro plano, é firme opinião da Recorrente que uma resposta positiva à questão vinda de colocar se traduz numa interpretação corretiva da lei ou mesmo uma interpretação ab-rogante - independentemente de se pretender que tal interpretação seria necessária para uma conformidade da lei com o Direito da União Europeia -, uma vez que implica uma interpretação que não encontra “na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” (cf. artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil).

  9. Face a este horizonte de ideias, compreende-se que a presente revista deva ser admitida, e isto apesar de o regime composto pelos artigos 57.º, n.º 1, alínea d), e 71.º, n.ºs 2, 3 e 4, do CCP, já não se encontrar hoje em vigor com a configuração inerente a estes autos.

  10. Primo, é este um caso em que claramente, “por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável”, se revela “objetivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema” (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 14 de março de 2018, proc. 053/18, disponível em www.dgsi.pt ).

  11. Secundo, “a circunstância de o acórdão do TCA (…) contrariar a orientação uniforme deste STA (…) [e igualmente dos tribunais administrativos de segunda instância] justifica o recebimento da presente revista, em ordem a possibilitar uma melhor aplicação do direito” (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 11 de março de 2009, proc. 0208/09, disponível em www.dgsi.pt ).

  12. Tertio, uma análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, se bem que evidencia uma recusa clara da interpretação corretiva que não tenha um mínimo de correspondência na letra da lei, ou da interpretação ab-rogante, revela também que a questão não foi ainda tratada com toda a profundidade metodológica que seria desejável para efeitos de orientação das demais instâncias judiciais e da comunidade jurídica, sendo certo que, no caso sub judice, o problema até assume contornos particulares e recorrentes: pode uma interpretação jurídica alegadamente conforme ao Direito da União Europeia implicar uma interpretação corretiva que não tem na letra da lei o mínimo de correspondência? Como se pode ver, é esta uma questão metodológica complexa e de interesse prático inegável, que a ser apreciada por este Supremo Tribunal Administrativo poderá ficar esclarecida para inúmeros casos futuros, i.e., assumirá “um carácter paradigmático e exemplar, transponível para outras situações, assumindo relevância autónoma e independente em relação às partes envolvidas” (cf. ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p. 296).

  13. No momento em que o ato anulado foi praticado, o Júri e a entidade adjudicante, ora Recorrida, tinham já entendido em termos definitivos que a instrução da fase de análise das propostas tinha tido o seu término, e muito em particular que não necessitavam de mais dados, documentos, informações, acerca dos preços propostos pelos concorrentes.

  14. Segundo as próprias declarações do Júri do Concurso, vertidas no Relatório Final que foi posteriormente aprovado pelo órgão competente para a decisão de adjudicação, a instrução necessária à análise dos preços anormalmente baixos e à análise das justificações destes preços já tinha findado.

  15. Numa palavra, a discricionariedade instrutória do Júri do Concurso, para efeitos da análise das propostas e da análise das justificações apresentadas para os preços anormalmente baixos, já se tinha esgotado, pois já tinha sido exercida.

  16. Ora, no quadro do reexercício dos seus poderes, a Administração está sujeita ao que a doutrina vem denominando de um “efeito preclusivo procedimental” da sentença anulatória.

  17. A sentença anulatória do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, de 25 de março de 2018, não determinou, no dispositivo ou em qualquer outra parte, a revisão da instrução necessária à análise das propostas e da justificação dos preços anormalmente baixos.

  18. Como é bom de ver, não constituía objeto do processo a validade do exercício da discricionariedade instrutória do Júri do Concurso para efeitos de análise das propostas, mas tão-somente a falta de fundamentação inerente à análise (que, como se sabe, é posterior à instrução de que depende) realizada.

  19. Desta forma, a pronúncia do Tribunal, ao ter dado como provada a atividade instrutória do Júri do Concurso para efeitos de análise dos preços anormalmente baixos, e ao não ter incidido o seu juízo crítico sobre essa atividade, porquanto a mesma não foi posta em causa (quando é certo que, em abstrato, não estava vedado às partes questioná-la judicialmente), cristalizou-a, não podendo agora o Júri do Concurso contestar a sua suficiência, quando é certo que já tinha asseverado, de forma perentória, a sua completude.

  20. Da sentença anulatória resultava somente a obrigação de o Júri fazer retroagir o procedimento à fase em que se constatou a ilegalidade que fundou a anulação; ora, essa fase corresponde à fase de análise das propostas e, mais concretamente, de análise das justificações dos preços anormalmente baixos, e não à fase, logicamente anterior, da instrução para efeitos daquela análise.

  21. Como tal, ao pedir esclarecimentos com base no disposto no artigo 71.º, n.º 3, do CCP, o Júri incorreu em ofensa do caso julgado, porquanto reconduziu-se a uma fase do procedimento já consolidada, sendo o ato de adjudicação posterior, como tal, ilegal.

  22. Ao assim não entender, o acórdão recorrido faz errada interpretação dos efeitos do caso julgado que dimana da sentença do TAF de Mirandela de sentença de 25 de março de 2018 (Doc. 2 junto com a petição inicial) e viola os artigos 173.º, n.º 1 do CPTA e 161.º, n.º 2, alínea i), do CPA e 158.º, n.º 2 do CPTA.

  23. A letra dos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 71.º do CCP, não autoriza o intérprete a admitir que o mecanismo previsto no n.º 3 do artigo 71.º do CCP pode ter aplicação aos procedimentos nos quais o limiar do preço anormalmente baixo foi definido nas peças do procedimento.

  24. A interpretação que o Tribunal a quo propugna consiste numa interpretação corretiva ou mesmo ab-rogante que atenta contra a lei interpretada bem como contra os critérios de...

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