Acórdão nº 111/19.9PBCVL.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 27 de Janeiro de 2021

Magistrado ResponsávelROSA PINTO
Data da Resolução27 de Janeiro de 2021
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam, em conferência, na 4ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

A – Relatório 1. Pela Comarca de Castelo Branco (Juízo Local Criminal da Covilhã), sob acusação do Ministério Público, por um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217º e 218º, nº 2, alínea b), ambos do Código Penal, foi submetido a julgamento o arguido RM.

2. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, a 8.6.2020, decidindo-se: - Condenar o arguido RM pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217º, nº 1, e 218º, nº 2, alínea b), do Código Penal, na pena de três anos e três meses de prisão.

(…) 3. Inconformado com a douta sentença, veio o arguido RM interpor recurso da mesma, terminando a motivação com as seguintes conclusões: “1 – Do teor da douta Sentença recorrida, resultou para o Arguido/Recorrente a sua condenação como «autor de um crime de burla qualificada p. p. pelos arts. 217º, nº 1, 218º, nº 2, al. b), todos do Cód. Penal, na pena de três anos e três meses de prisão».

2 – Não pode o Arguido conformar-se com a Douta Sentença, relativamente à qualificação do crime de burla e à escolha e determinação da concreta medida da pena.

3 - A Mmª Juiz “a quo” na matéria dos factos provados: No ponto 10º refere na sentença que: “Apesar de o arguido ter afirmado não ter profissão, faz da prática de burlas seu modo de vida, sendo uma das suas fontes de rendimento”.

4 - Com o devido respeito, não entende o arguido em que concreto meio de prova se estribou a Mmª Juiz para dar como provado o referido facto.

5 – Segundo o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (acessível em www.dgsi.pt), de 07.11.2018, no qual foi relatora a Exmª Srª Juiz Desembargadora Maria José Nogueira: “I – A circunstância qualificativa do crime de burla prevista na alínea b), nº 2, do artigo 218º do CP deve ser entendido como a maneira com que o agente logra obter os proveitos indispensáveis à sua vida em comunidade, não sendo absolutamente preciso que se trate de uma ocupação exclusiva ou contínua, podendo até ser intermitente ou esporádica, desde que ela contribua significativamente para o sustento do visado (…)” 6 - O Tribunal a quo subsumiu os factos e qualificou o crime praticado com fundamento nos arts. 217º, nº 1 e 218º, nº 2, al. b), ambos do Cód. Penal. De acordo com a alínea b), do nº 2, do referido preceito legal, o crime de burla é qualificado se “o agente fizer da burla modo de vida”.

7 - Para que uma atividade se possa concretizar como “modo de vida”, exige-se que seja uma atividade reiterada e que ocorra durante um lapso temporal alargado, que permita afirmar-se – com certeza – que o agente fez das suas condutas um modo de subsistência.

8 - Com o devido respeito, não se pode concluir indubitavelmente do que consta do processo que o arguido faz da burla o seu modo de vida; senão vejamos o que consta do relatório social elaborado pela DGRSP – no ponto II – condições sociais e pessoais.

“A nível laboral, o arguido trabalhou por contra própria como mecânico de automóveis e vendedor de peças de automóveis, num espaço arrendado em X... – Vila Nova de Cerveira. Em março de 2018, referiu estar coletado como empresário, em nome individual, na área do comércio a retalho de peças e acessórios para automóveis, alterando a sua atividade para Viana do Castelo, onde arrendou um espaço, encerrando a sua atividade em Vila Nova de Cerveira. Presentemente, RM afirma continuar coletado em nome individual, tendo um outro espaço de trabalho, desde agosto de 2018, nas proximidades de SC…., em Viana do Castelo, onde diz proceder à reparação de viaturas que adquire para venda. Paralelamente compra e venda de peças também para automóveis.

O arguido refere retirar uma média de 600 € a 700 € mensais e a companheira aufere o equivalente ao salário mínimo nacional.

As despesas do agregado são repartidas entre o casal, uma vez que a filha da companheira assegura a amortização do crédito contraído para a realização de obras na habitação (…)”.

9 - Aliás, na esteira da mesma jurisprudência dominante, seria necessário para qualificar o crime de burla, que se dessem como provados na sentença sob recurso, os concretos factos em que a Mma. Juiz fundamenta o facto provado “10.” que não apenas o historial dos processos nos quais o arguido foi julgado.

10 - Com efeito, do processo até resulta provado o contrário, ou seja, que o recorrente não faz da burla um modo de vida e, antes pelo contrário, exerce a profissão de mecânico de automóveis na cidade de Viana do Castelo, pela qual aufere uma média de 600 a 700 € mensais, vivendo com a sua companheira e com a filha desta, todos contribuindo com os rendimentos que auferem das suas profissões para o sustento do agregado familiar, tal como tudo melhor se encontra descrito no facto provado 15, als. e) e f).

(…) 20 – Acresce ainda que, o arguido pretende que seja declarada a inconstitucionalidade da interpretação levada a cabo pelo Tribunal “a quo” da norma do art. 218º, nº 2, al. b), do Cód. Penal: “Apesar do arguido ter afirmado não ter profissão, faz da prática de burlas seu modo de vida, sendo uma das suas fontes de rendimento.” 21 – In casu está provado que “… presentemente, o arguido continua coletado em nome individual, tem um outro espaço de trabalho, desde agosto de 2018, nas proximidades do SC…, em Viana do Castelo, onde procede à reparação de viaturas que adquire para venda. Paralelamente, compra e vende peças também para automóveis”.

“O arguido aufere uma média de 600 € a 700 € mensais e a companheira aufere o equivalente ao salário mínimo nacional.

As despesas do agregado são repartidas entre o casal, uma vez que a filha da companheira assegura a amortização do crédito contraído para a realização de obras na habitação”.

22 – Pelo que, segundo o tribunal a quo, da interpretação que faz daquela norma, ou seja, do concreto “modo de vida”, considerou que “atenta a factualidade dada como provada, verifica-se que a astúcia exercida pelo arguido no negócio encetado com o ofendido, integrada num complexo idêntico ao de infrações cometidas pelo arguido em moldes semelhantes à dos autos, é suscetível de revelar um sistema de vida (como é o caso do ladrão ou do burlão que viveu sem trabalhar) alicerçada no provento do delito”.

23 – Ora com o devido respeito, esta norma do artigo 218º, nº 2 al. b) do CP, deverá ser julgada inconstitucional, por possuir um teor incriminatório extremamente vago, quando não permite a delimitação exata das situações abrangidas por aquele conceito de “modo de vida”. Com efeito, a interpretação suprarreferida do artigo 218º, nº 2, al. b), do CP deve ser declarada inconstitucional, por violação das seguintes disposições, todas da Constituição da República Portuguesa: Artigo 2º, uma vez que ofende o subprincípio da confiança inerente ao princípio do Estado de direito democrático (princípio da precisão ou determinabilidade dos actos normativos); Artigo 202º, nº 1, na medida em que, assim, se impede a administração da justiça, a qual é um dever; Artigo 204º, já que aplica normas inconstitucionais.

24 – Além disso, aquela norma viola também o artigo 32º da CRP, uma vez que coloca em causa os direitos de defesa do arguido, Senão vejamos: Nas definições legais dos Crimes Contra o Património, o Código Penal não define “modo de vida”, o que, com o devido respeito, dá uma margem de liberdade para os Tribunais interpretarem a norma da forma que bem entenderem, dificultando desta forma que o arguido exerça o seu direito de defesa”.

(…) 7. Respeitando as formalidades aplicáveis, após o exame preliminar e depois de colhidos os vistos, o processo foi à conferência.

8. Dos trabalhos desta resultou a presente apreciação e decisão.

* B – Fundamentação (…) 2. No caso dos autos, face às conclusões da motivação apresentadas pelo recorrente, as questões a decidir são as seguintes: - se a situação sub judice pode subsumir-se na qualificativa “modo de vida”; (…) - se é inconstitucional a norma do artigo 218º, nº2, alínea b), do Código Penal, por violar os artigos 2º, 202º, nº 1, 204º e 32º todos da CRP, na interpretação que lhe foi dada pelo tribunal a quo e que conduziu ao facto provado nº 10 (“apesar do arguido ter afirmado não ter profissão, faz da prática de burlas seu modo de vida, sendo uma das suas fontes de rendimento) e ainda por possuir um teor incriminatório extremamente vago e não permitir a delimitação exacta das situações abrangidas pelo conceito “modo de vida”.

3. Para decidir das questões supra enunciadas, vejamos a factualidade e motivação da sentença recorrida: “FACTOS PROVADOS DA ACUSAÇÃO PÚBLICA: 1.

Em data anterior a 07.03.2019, o arguido RM, com o propósito de obter para si vantagem económica, publicitou para venda, na secção de classificados do jornal diário Correio da Manhã, um anúncio com os seguintes dizeres: “Peças usadas,VENDO, Motores, caixas velocidades, todo tipo material mecânica, eletricidade, chapa, airbags, etc. Entrega todo País. Sr. Marques. T: 92…”.

2.

Na sequência do anúncio mencionado em 1., no dia 07.03.2019, o ofendido MF contactou o arguido, através do número 92…, que se apresentou como sendo “RM” e acordou com este a compra de um motor para um veículo de marca Peugeot, modelo 206hdi, de 90cv.

3.

Assim, estipularam que o ofendido transferiria o valor de €650,00 para a conta com o IBAN (…), titulada pelo arguido RM e IB, para pagamento do dito motor.

4.

O arguido forneceu o seu IBAN ao ofendido, tendo para esse efeito enviado uma mensagem de correio eletrónico com tais dados, a partir do endereço (…) assinando aquela mensagem com o nome “RM”.

5.

Convicto do negócio celebrado e com o propósito de cumprir o acordado, nesse dia 07.03.2019, pelas 18.49h, o ofendido efetuou a transferência bancária da quantia de 650,00€ para a conta bancária com IBAN indicado em 3. e co titulada pelo arguido RM.

6.

Sucede que o arguido, até à data, não enviou o motor nos termos...

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