Acórdão nº 5/21 de Tribunal Constitucional (Port, 06 de Janeiro de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Pedro Machete
Data da Resolução06 de Janeiro de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 5/2021

Processo n.º 845/20

2.ª Secção

Relator: Conselheiro Pedro Machete

Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. A., reclamante nos presentes autos, em que são reclamados o Ministério Público e o Instituto da Segurança Social, IP, notificado da Decisão Sumária n.º 638/2020, que não conheceu do mérito do recurso de constitucionalidade por aquele interposto, vem reclamar para a conferência ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional – “LTC”).

O recorrente, ora reclamante, foi condenado, por acórdão proferido em primeira instância, pela prática de um crime de insolvência agravado na pena de dois anos e cinco meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de quatro anos, na condição de proceder ao pagamento, no prazo da suspensão, da quantia de € 2 400. Em tal acórdão foram ainda julgados procedentes seis pedidos de indemnização civil deduzidos contra o ora recorrente, tendo este sido condenado no pagamento das quantias neles peticionadas. Mais se declarou perdida a favor do Estado a quantia de € 210 746,26, condenando-se o arguido a proceder ao seu pagamento.

Inconformado, o arguido recorreu deste acórdão para o Tribunal da Relação do Porto, que, por acórdão de 29 de abril de 2020, decidiu: proceder, nos termos do artigo 380.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, do Código de Processo Penal (“CPP”), à correção de um lapso de escrita constante dos factos provados; conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, revogar o acórdão recorrido na parte em que havia declarado a citada quantia perdida a favor do Estado e condenava o recorrente a proceder ao respetivo pagamento; no mais, manter o acórdão recorrido.

O ora recorrente arguiu a nulidade deste acórdão, com fundamento em omissão de pronúncia, requereu a sua reforma e suscitou inconstitucionalidades. Por acórdão de 14 de julho de 2020, o Tribunal da Relação do Porto indeferiu a arguida nulidade e julgou inverificadas as invocadas inconstitucionalidades.

Dos referidos acórdãos foi interposto, pelo ora reclamante, o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC.

2. É a seguinte a fundamentação da decisão sumária reclamada:

«5. Conforme resulta do respetivo requerimento de interposição, o presente recurso tem por objeto as seguintes normas:

i) O artigo «127º [do CPP], na interpretação segundo a qual o pré-juízo do julgador pode, na falta de prova que gere convicção positiva quanto à prática dos factos constantes da acusação, fundamentar decisão de condenação»;

ii) O artigo «374º, nº 2 [do CPP], interpretado com o sentido de bastar qualquer fundamentação, dispensando concretização de meios de prova»;

iii) O artigo 410º, nº 2, al. b) [do CPP], interpretado com o sentido de inexistir contradição entre factos provados e fundamentação pese o tribunal reconhecer que não se convenceu por qualquer dos meios de prova, sem que tão pouco recorresse a qualquer presunção;

iv) O artigo «412º, nº 3, alíneas a) [do CPP], que interpretou exigindo mais do que a concretização individualizada dos factos impugnados»; e

v) O artigo «412º, nº 3, al. b) [do CPP], que interpretou exigindo a especificação de concretos meios de prova que destruam o valor de provas não produzidas nem valoradas».

Por outro lado, o recorrente indica, como decisões recorridas os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 29 de abril de 2020 e de 14 de julho de 2020, que, no seu entender, aplicaram as referidas normas.

6. No que respeita ao recurso interposto do acórdão de 14 de julho de 2020, não se pode conhecer do seu objeto, quanto a todas as questões acima enunciadas, uma vez que, no mesmo, o tribunal a quo não aplicou as normas a que se reportam tais questões, enquanto ratio decidendi da sua pronúncia.

Com efeito, em tal aresto, o Tribunal da Relação do Porto apreciou a arguição de nulidade do acórdão de 29 de abril de 2020, deduzida pelo recorrente, com fundamento em omissão de pronúncia. E, tendo aquele tribunal concluído que não se verificava tal nulidade, indeferindo a pretensão do ora recorrente, aplicou, para o efeito, apenas o disposto o disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), ex vi artigo 425.º, n.º 4, ambos do CPP, preceitos com base nos quais apreciou tal questão.

É certo que, na fundamentação desse acórdão de 14 de julho de 2020, o tribunal recorrido faz referência aos artigos 412.º, n.º 3, alíneas a) e b), 374.º, n.º 2, e 410.º, n.º 2, alínea b), todos do CPP. No entanto, tais referências, reportadas à aplicação desses preceitos efetuada pelo acórdão então reclamado – o acórdão de 29 de abril de 2020 –, destinam-se apenas a sustentar que este último acórdão, contrariamente ao invocado pelo recorrente, não havia omitido pronúncia relativamente a qualquer questão, não padecendo, por isso, da nulidade que lhe era apontada.

Finalmente, embora no acórdão de 14 de julho de 2020, o tribunal a quo faça a referência às inconstitucionalidades invocadas no requerimento de arguição de nulidade reportadas aos aludidos preceitos, tal circunstância não envolve uma efetiva aplicação dos mesmos, enquanto ratio decidendi, do aludido acórdão, no que respeita à questão aí apreciada (a aludida arguição de nulidade).

Assim, é manifesto que aquele tribunal, no mencionado acórdão de 14 de julho de 2020, não aplicou, enquanto fundamento da sua pronúncia, qualquer interpretação extraída dos preceitos a que o recorrente reporta as cinco questões de constitucionalidade acima identificadas.

Ora, considerando o caráter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade face ao processo-base, exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que haja ocorrido efetiva aplicação pela decisão recorrida da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é sindicada., pois, só assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar a reforma de tal decisão (cf. o artigo 80.º, n.º 2, da LTC).

Todavia, não é isso que se verifica in casu, quanto ao recurso interposto do acórdão de 14 de julho de 2020. Deste modo, forçoso é concluir que o presente recurso, na parte em que visa impugnar tal acórdão, é, nos termos já referidos, inútil, não devendo, por esta razão, conhecer-se do seu mérito.

7. Relativamente ao recurso interposto do acórdão de 29 de abril de 2020, não se pode também conhecer do mesmo, quanto à primeira questão, reportada ao artigo 127.º do CPP, «na interpretação segundo a qual o pré-juízo do julgador pode, na falta de prova que gere convicção positiva quanto à prática dos factos constantes da acusação, fundamentar decisão de condenação», por inidoneidade do objeto do recurso e por ilegitimidade do recorrente e, subsidiariamente, por inutilidade.

7.1. In casu, no que respeita a esta questão, o objeto do recurso prende-se exclusivamente com a eventual inconstitucionalidade da decisão recorrida.

Conforme referido, a fiscalização do Tribunal Constitucional português, no âmbito da fiscalização concreta, incide apenas sobre normas ou sobre determinadas interpretações normativas, não detendo este Tribunal competência para rever ou reexaminar, de qualquer outro modo, as decisões proferidas pelos outros tribunais, designadamente no que se reporta à seleção e interpretação do direito infraconstitucional e à sua posterior aplicação aos factos controvertidos. Assim não compete ao Tribunal Constitucional sindicar o puro ato de julgamento, de ponderação casuística efetuada pelo julgador no caso concreto, com as suas especificidades, procedendo a um controlo das operações subsuntivas efetuadas pelo tribunal a quo

Na situação em apreço, ao questionar o referido preceito do CPP, na “interpretação” acima enunciada, o que o recorrente pretende com a questão colocada é sindicar a decisão do caso concreto, no que respeita à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, em face das provas existentes nos autos, e não um qualquer critério normativo de decisão extraído de tal preceito e aplicado, autonomamente, pelo tribunal recorrido, face a qualquer parâmetro constitucional.

Com efeito, embora o recorrente invoque que pretende questionar uma dada interpretação normativa do referido artigo 127.º do CPP, resulta claro, pela própria enunciação de tal suposta interpretação, que pretende, na verdade, sindicar a própria decisão recorrida, que, em seu entender, face à inexistência da prova necessária a gerar a “convicção positiva quanto à prática dos factos constantes da acusação”, fundamentou a “decisão de condenação” no “pré-juízo do julgador”.

Ou seja, a enunciação da questão mais não é do que a expressão da discordância no que respeita ao modo como, na ótica do recorrente, o tribunal a quo apreciou a prova, bem como, em face da valoração da mesma, entendeu dar como provados os factos contantes da acusação. Por outras palavras, o propósito do recorrente é questionar o modo como, em face das circunstâncias específicas do caso concreto, o tribunal a quo apreciou e valorou as provas, bem como o resultado a que chegou na decorrência dessa apreciação. Para tanto, enuncia uma suposta interpretação normativa do referido artigos 127.º do CPP, a qual ilustra essa divergência quanto o decidido.

Assim, sob a aparência da enunciação de uma questão de constitucionalidade, o recorrente não pretende ver apreciada a conformidade constitucional de qualquer norma ou interpretação normativa aplicada pelo tribunal recorrido enquanto critério de decisão, mas sim a conformidade da própria decisão. Tal resulta claro, não só do modo como a questão se encontra enunciada no requerimento de interposição de recurso, mas também pelo modo como a mesma foi suscitada perante o tribunal a quo.

Assim...

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