Acórdão nº 535/14.8TDEVR.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 24 de Novembro de 2020
Magistrado Responsável | JOS |
Data da Resolução | 24 de Novembro de 2020 |
Emissor | Tribunal da Relação de Évora |
Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I- Relatório Nos presentes autos de processo Comum Colectivo, com o número acima mencionado, do Tribunal Judicial da Comarca de Évora (Juízo Central Cível e Criminal de Évora – Juiz 2) a acusação foi julgada parcialmente procedente por provada e em consequência, por Acórdão de 5 de Fevereiro de 2020 deliberou-se: a)Absolver o Arguido A…da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de participação económica em negócio, p. e p. pelo artigo 377.º n.º 1, do Código Penal; b) Condenar o arguido A… da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de participação em negócio, p. e p. pelo artº 377º nº 2, do Cód.Penal na pena de 30 (trinta) dias de multa, à taxa diária de € 12,00; c) b) Condenar o arguido A… da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artº 382º do Cód.Penal na pena duzentos e sessenta (260) dias de multa, à taxa diária de € 12,00; d) Em cúmulo jurídico, condenar o Arguido na pena única de duzentos (200) dias de multa, à taxa diária de € 12,00, no valor global de € 2 400,00 (dois mil e quatrocentos euros); e) Declarar perdida a favor do Estado a quantia de € 109 889,58 (cento e nove mil, oitocentos e oitenta e nove euros e cinquenta e oito cêntimos, por corresponder à vantagem global obtida pelo arguido pela prática dos crimes por que vai condenado; Inconformado o arguido recorreu, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões: «1ª. O arguido foi condenado pelo crime de participação económica em negócio tal como previsto no n.º 2 do artigo 377º do Código Penal, quando vinha acusado pelo n.º 1 do referido preceito
-
O acórdão recorrido, ao ter dado como preenchido o requisito típico «vantagem», essencial à incriminação prevista no referido n.º 2 do artigo 377º do Código Penal, enferma de erro de Direito, na interpretação e aplicação deste preceito, porquanto a verificação do mesmo, numa relação jurídica comutativa, como é o caso, por tratar-se de uma compra e venda imobiliária, exige, ao tratar-se de crime de avantajamento, que o agente receba o que não lhe é devido ou mais do que lhe era devido, e não o que resulte do valor mutuamente acordado entre as partes como o preço adequado ao acto, tendo o negócio vantagem para o comprador
-
O acórdão sob recurso incorre no mesmo erro de Direito e por idênticas razões relativamente às rendas pagas pela S…, e recebidas pelo arguido, devidas pelo uso que lhe foi permitido dos terrenos cuja compra prometera e que, aliás, já vinha usufruindo, em função de um arrendamento [e dado como existente no facto provado 29], já que esse valor mais não era do que o devido como obrigação jurídica e não uma «vantagem» para efeitos jurídico-criminais, mormente na vertente do crime de participação económica em negócio
-
O n.º 2 do artigo 377º do Código Penal quando, para além da indeterminação na descrição da conduta típica, previr que o requisito típico “vantagem” seja integrado pelo preço, livremente acertado entre as partes, devido por um contrato de compra e venda de imóvel celebrado entre o agente e a entidade em que exerce funções, bem como rendas pelo uso do referido imóvel entre a promessa de venda e a escritura prometida, sem que o valor pago signifique prejuízo para a entidade compradora» e o correspectivo avantajamento do vendedor, é materialmente inconstitucional, por estender os limites da tipicidade para além dos limites decorrentes da regra da legalidade incriminatória e da necessidade da criminalização [artigos 29º, n.º 1 e 18º, n.º 2 da Constituição] 4ª. O acórdão recorrido enferma também de erro de Direito na interpretação e aplicação do artigo 382º do Código Penal no segmento normativo «violar deveres inerentes às suas funções» e no segmento normativo «com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa», porquanto no caso, conjugando as disposições legais pertinentes [o artigo 18º, n.º 2 do Estatuto das IPSS [Decreto-Lei n.º 119/83 de 25 de Fevereiro e o deliberação pelo órgão estatutário Assembleia Geral] tratava-se de remuneração devida e ocorria no caso inexistência de violação de dever ou abuso de poder, bem como se verificava inexistência de dolo específico de benefício ilegítimo ou prejuízo para terceiro
-
Quando assim se não entenda, ante a opinião jurídica disseminada na própria U..,, de que se tratava de remuneração devida que o arguido acolheu, tal integra erro sobre requisito típico essencial da norma incriminadora, excludente do dolo, pelo que o aresto em causa enferma de erro de Direito relativamente ao estatuído no artigo 16º, n.º 1 do Código Penal
-
O acórdão recorrido enferma de erro de Direito na interpretação e na aplicação da alínea b), do n.º 1 do artigo 110.º, do Código Penal, referente à perda de vantagens do crime, no que respeita ao segmento normativo «vantagem» e também no outro segmento «através do facto ilícito típico», porquanto nem um nem outro se verificam no caso em apreço, pelas razões expostas relativamente a cada um dos tipos de crime
-
O aresto sobre recurso enferma de erro de Direito relativamente ao artigo 386º do Código Penal, nisso incluindo o estatuído na alínea d) do seu n.º 1, ao considerar que o requisito típico “funcionário” abrange o Provedor de uma S…, instituição particular de solidariedade social, com estatuto privado e oriunda de erecção canónica
-
O aresto recorrido está ferido de nulidade, nos termos dos artigos 368º, n.º 2 e 374º, n.º 2 e 379º, n.º 1, a), ao não se ter pronunciado quanto a estar provado [ou não provado] o consignado no n.º 23 da contestação
-
O acórdão sob recurso julgou incorrectamente a matéria de facto respeitante à remuneração do ora recorrente como contrapartida do trabalho que o mesmo desenvolveu em prol da S…, concretamente ao ter omitido dar como provado que «o pagamento mensal feito ao arguido decorre de acto tomado em Assembleia Geral e no pressuposto de que se trata de situação legal […] o que foi aceite sem questão no seio da instituição.» [matéria que constava do artigo 23º da contestação] e deveria ter sido dada como assente, ou por complemento ao consignado no facto 53 dos provados, ou [mais apropriadamente] por aditamento ao catálogo dos factos provados da contestação
-
A factualidade da qual resulta que a atribuição ao Provedor ora recorrente de uma remuneração decorreu de acto [desnecessário, aliás] deliberativo da Assembleia Geral da S… como a sua atribuição e recebimento decorreram do «pressuposto de que se trata de situação legal», como se afirmou na contestação, deveria ter sido dada como provada
-
São provas que impõem decisão diversa da recorrida [artigo 412º, n.º 3, b) do CPP], os depoimentos de duas testemunhas altamente qualificadas, com funções dirigentes na U…, o segundo com funções actuais de Provedor da S… e que se transcrevem na parte relevante [C…, AJ de 14.11.2019, 20191114142923_1464234_2870780-1 e F…, AJ de 14.11.2019, 20191114151225_1464234_2870780, nas partes que ficaram transcritas na motivação deste recurso e se dão aqui por reproduzidas] Nestes termos, deve ser proferida decisão no sentido de revogação do acórdão recorrido, decretando-se a absolvição do recorrente com as consequências legais, como é de JUSTIÇA!»
O Digno Procurador da República respondeu ao recurso, dizendo: «1. Exigindo os tipos penais dos arts 377º, nº 2 e 382º do C.Penal, pelos quais o arguido foi condenado em primeira instância que o agente do crime seja funcionário, nos termos definidos pelo artrº 386º, do C.Penal, não possuindo o arguido essa qualidade à luz do Ac. do Supremo Tribunal de Justiça nº 3/20, de 18.05, não poderá o arguido ser condenado por esses crimes
-
E não havendo, no caso do artº 377º, nº 2 do C.Penal incriminação geral correspondente para idênticos actos cometidos por não funcionários, que dispense o elemento típico “funcionário”, também não poderá ser condenado, por esses mesmos factos, com outro enquadramento legal
-
No que tange ao crime de abuso de poder, p. e p. pelo artº 382º, do Cód. Penal, que exige, de idêntica forma, que o agente dos factos seja “funcionário”, à luz do disposto no artº 386º, daquele mesmo código, afigura-se que os factos julgados provados, preenchem todos os elementos típicos do crime de infidelidade, p. e p. pelo artº 224º, nº 1, do Cód. Penal –vejam-se os factos provados sob os nºs. 1 a 11, 45 a 56 e 65 a 67
-
Ilícito penal de natureza semi-pública, nos termos previstos no nº 3, daquele preceito penal, pelo que a legitimidade do Ministério Público para a promoção do procedimento criminal depende da apresentação de queixa pelo titular do interesse protegido pela incriminação –artº 49º, do C.P.P.
-
Nos presentes autos a investigação iniciou-se com a apresentação de denúncia por J… –cfr. fls. 13, do apenso I– sendo que em nenhum momento a S…, entidade lesada com a conduta do arguido, veio a manifestar a vontade de procedimento criminal contra o arguido, nem tal ocorreu por manifestação de vontade de algum dos membros da sua Mesa, nem o Ministério Público procedeu ao registo nos autos da utilização do disposto no nº 5, do artº 113º, do Cód. Penal. Consequentemente, 6. Não se verificam todos os pressupostos para a promoção do procedimento criminal contra o arguido A… pela prática do crime de infidelidade, p. e p. pelo artº 224º, nº 1, do Cód. Penal que, assim, também não poderá ser condenado pelo cometimento desse crime
-
No que tange às vantagens obtidas pelo arguido A…afigura-se ao Ministério Público que deve ser mantida a sua perda a favor do Estado, no que concerne à parte referente às remunerações auferidas pelo arguido, descritas nos nºs. 50 a 52 da matéria de facto julgada provada, porquanto, nessa parte, a factualidade provada preenche todos os elementos típicos do crime de infidelidade p. e p. pelo artº 124º, nº 1, do Cód. Penal bem como a ilicitude da conduta do arguido...
-
Para continuar a ler
PEÇA SUA AVALIAÇÃO