Acórdão nº 02748/06.7BEPRT de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 03 de Dezembro de 2020

Magistrado ResponsávelSUZANA TAVARES DA SILVA
Data da Resolução03 de Dezembro de 2020
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam na secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo: I – Relatório 1 – Em 27 de Outubro de 2006, A……………… e B……………., por eles e na qualidade de legais representantes de seu filho menor C………………, todos com os sinais dos autos, propuseram no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (TAF do Porto), contra o Centro Hospitalar da Póvoa de Varzim e Vila do Conde, igualmente com os sinais dos autos, acção administrativa comum, pedindo a condenação do réu a liquidar aos autores a quantia de 1.071.670€ (um milhão e setenta um mil e seiscentos e setenta euros).

2 – Por sentença de 6 de Fevereiro de 2017, o TAF do Porto julgou a acção improcedente e absolveu o Réu pedido.

3 – Inconformados, os AA. recorreram dessa decisão para o Tribunal Central Administrativo Norte (TCA Norte), que, por acórdão de 18 de Outubro de 2019, concedeu parcial provimento ao recurso, revogou parcialmente a sentença do TAF do Porto e condenou o Réu a pagar aos AA. os seguintes montantes a título de danos não patrimoniais: 60.000,00 (sessenta mil euros) ao autor C…………. (menor); 40.000,00 (quarenta mil euros) à autora B……………. (mãe); e 20.000,00 (vinte mil euros) ao autor A………………. (pai).

4 – Inconformado com o acórdão do TCA Norte, o Centro Hospitalar da Póvoa de Varzim e Vila do Conde interpôs recurso de revista para este Supremo Tribunal Administrativo, o qual foi admitido por acórdão de 7 de Maio de 2020, com a seguinte fundamentação: «[P]resentes a divergência dos juízos firmados pelas instâncias, já indiciadora de complexidade jurídica; o concreto entendimento firmado no acórdão recorrido em torno das questões da repartição do ónus da prova na responsabilidade por atos médicos e o apelo à regra de inversão do ónus da prova que carecerão de elucidação e de melhor análise por este Supremo; e, bem assim, o uso neste contexto das presunções e da discussão em torno da natureza/regime e do nexo causal; somos confrontados, no caso, com quaestiones juris que assumem manifesto relevo jurídico [pois a resposta que a elas se dê tem consequências ao nível da apreciação e preenchimento dos pressupostos de responsabilidade] e social [visto que, tratando-se de situações com impacto e que se repetem, é de todo o interesse da comunidade que sobre elas exista o entendimento o mais estabilizado possível), sendo, igualmente, suscetíveis de serem repetíveis e recolocadas em casos futuros.

Flui do exposto a necessária a intervenção deste STA, e daí que se justifique a admissão das revistas».

5 – O R. e aqui Recorrente apresentou alegações nos seguintes termos: «[…] A - A Ré, antes Recorrida, e ora Recorrente, vem interpor recurso do Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte (ora TCAN), cujo objecto é limitado à parte que lhe é desfavorável, com a qual não se conforma pois julgou parcialmente procedente o recurso e revogou parcialmente a sentença, condenando a Ré, aqui Recorrente, a pagar aos A. o montante global 120.000,00€ (cento e vinte mil euros) de indemnização, a título de danos não patrimoniais, contrariando a Sentença de 1ª instância que não padece de qualquer erro de julgamento, de interpretação e aplicação das normas legais, nomeadamente aqueles que são apontados pelo Acórdão.

B - Para alcançar a conclusão inserida no Acórdão ora posto em crise pelo presente Recurso, o Tribunal a quo parte de um raciocínio jurídico que implica um desvio ao princípio do ónus da prova previsto e aplicável ao regime da responsabilidade extracontratual, para tanto desconsiderando os factos provados nos autos e desvalorizando a conduta processual da Ré, de obediência aos princípios da cooperação, da colaboração e da boa-fé, ao aplicar a cominação prevista no n.º 2 do art. 344º do Código Civil (adiante CC) ex vi art. 417º/2 do Código de Processo Civil (adiante CPC).

C - A inversão do ónus da prova surge como uma sanção civil à violação do princípio da cooperação das partes para a descoberta da verdade material, consagrado no art. 417º do CPC, e acontece quando a falta de colaboração de uma parte vai ao ponto de tornar impossível ou particularmente difícil a produção da prova ao sujeito processual onerado com esse ónus nos termos gerais e que essa falta seja culposa, no sentido de que a parte não colaborante podia e devia agir de outro modo.

D - Dependendo a inversão do ónus da prova da verificação cumulativa de dois pressupostos: «(i) a prova de determinada factualidade, por acção da parte contrária se tornou, se tenha tornado impossível de fazer ou, pelo menos, se tenha tornado particularmente difícil de fazer; (ii) que tal comportamento, da mesma parte contrária, lhe seja imputável a título de culpa, não bastando a mera negligência.»(cfr. Acórdão do STJ de 10-09-2019, in www.dgsi.pt).

E - No caso em apreço, os A. tiveram total cooperação e colaboração da Ré, pois a aqui Recorrente juntou ao processo judicial o processo clínico completo, com todos os dados clínicos dos A. B…………. e C……….., desde o internamento e até ao momento da alta, o qual foi alvo das perícias das especialidades de Obstetrícia/Ginecologia e de Pediatria, sendo que estas não solicitaram qualquer outra documentação adicional.

F - Ou seja, não estamos perante uma falta de registos clínicos ou sequer uma recusa de junção dos elementos clínicos, sendo errado concluir - como faz o TCAN - que pelo facto dos registos não estarem inscritos na forma detalhada como este Tribunal entende conveniente que haja uma falta de colaboração culposa (da Recorrente) com vista a tornar impossível a prova dos A.

G - Conforme resulta dos autos, que nesta parte se consideram reproduzidos para os devidos efeitos, o comportamento da Recorrente não é susceptível de determinar a inversão do ónus da prova nos termos do n.º 2 do art. 344º do CC, porquanto não existe nenhuma conduta dolosa ou omissão deliberada ou sequer culposa, não se bastando a Lei com uma mera negligência, que aqui também não se verifica, mas exige a intencionalidade da falta de cooperação (cfr. Ac. do STJ de 23-02-2012, proc. 994/06.2TBVFR.P1.S1, in dgsi) – é um “castigo” por um comportamento deliberado e censurável para prejudicar e impedir a realização do ónus da prova da contraparte.

H - E isso, o TCAN não alegou nem provou, nem o poderia fazer pois tal facto colidiria com a verdade material e com a actuação da Ré pautada e estribada nos princípios da boa-fé e cooperação, conforme resulta cristalino dos autos, razão pela qual o TCAN apenas se sustenta sobre «pontuais omissões de elementos clínicos», para verificar os pressupostos relativos à inversão do ónus da prova.

I - De facto a lei não determina exactamente qual o conteúdo específico do dever de documentação, cabendo ao médico (enfermeiros) em concreto, face à situação mais ou menos complexa do doente/utente, definir qual a informação que deverá constar da ficha clínica detalhadamente e a que se bastará com uma sintética referência, e que informação deverá ser considerada irrelevante.

J - Sendo certo que, em 2003, os registos médicos e de enfermagem ainda eram efectuados manualmente (em papel), consumindo mais tempo e recursos aos profissionais, ao contrário de agora (2019), em que os profissionais de saúde têm à sua disposição outros recursos, como programas informáticos próprios, mais modernos, ágeis, rápidos e capazes que tornam a tarefa de registo mais eficaz. Não obstante, o processo clínico junto aos autos retracta todos acontecimentos relevantes, desde o internamento até à alta de cada um dos A., da mãe B…………. e do menor C……………….., com a informação pertinente, em conformidade com as normas em vigor.

K - Sendo absolutamente forçado (e irrazoável) concluir, com todos os elementos clínicos e informações procedimentais, que foram registados sem reserva ou condicionante, objecto de perícias e amplo debate poderão ser qualificados como violação, pela Ré ora Recorrente, do dever de cooperação para a descoberta da verdade ou sequer subsumível como uma conduta que de forma culposa tenham tornado impossível a prova aos A.

L - Ainda assim, não basta ao TCAN, para obter o desiderato pretendido, invocar a putativa deficiência no preenchimento dos registos clínicos dos A. B…………. e C…………., ou ainda que os registos/documentação devam ser tidos por insuficientes (o que não se concede), pois sempre se torna imprescindível afirmar positivamente uma conduta culposa da Ré, como exige o previsto no n.º 2 do art.º 344º do CC, o que manifestamente não acontece, pelo que se deve concluir que a situação vertida nos autos não permite, sequer razoavelmente, imputar à Recorrente um comportamento que preencha os requisitos previstos no n.º 2 do art. 344º do CC e n.º 2 do art. 417º do CPC e a consequente inversão do ónus da prova.

M - De realçar que, ainda que se entendesse que o TCAN tinha fundamento para considerar que a Ré tornou culposamente a prova impossível ou particularmente difícil - o que não se concede -, essa circunstância não importa, sem mais, que o facto controvertido se tenha por verdadeiro ou se tenha como provado contra a parte recusante, pois se assim fosse, então estaríamos perante um meio de prova com força probatória plena, o que não é o caso; N - Significa tão só que passou a caber à parte recusante a prova da falta de realidade desse facto, não estando as instâncias (o TCAN) dispensado de valorar essa recusa para efeitos de formação da sua convicção com vista a dar, como provado, ou não, o facto em causa, sendo que neste âmbito a Ré, ainda assim, produziu prova tendente a infirmar as afirmações de facto vertidas nos aludidos factos controvertidos, pelo que ter-se-ão de considerar como não provados os quesitos 2º, 3º e 4º da BI, aliás em consonância com a Sentença, conforme dispomos nos pontos 63 e seguintes das alegações.

O - O TCAN vem admitir a invocação dos A., em sede de Recurso, da aplicabilidade ao caso do regime da responsabilidade contratual, fazendo referência ao Ac. de 30-11-2012 desse Tribunal, onde se privilegia a «tese...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT