Acórdão nº 01640/08.5BELRS de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 02 de Dezembro de 2020

Magistrado ResponsávelANÍBAL FERRAZ
Data da Resolução02 de Dezembro de 2020
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acórdão proferido no Supremo Tribunal Administrativo (STA), com sede em Lisboa; # I.

B………… e Outras, com todos os sinais identificativos constantes dos autos, interpuseram recurso de revista (excecional), visando acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), datado de 11 de abril de 2019, que negou provimento ao recurso que haviam dirigido a sentença proferida, no Tribunal Tributário (TT) de Lisboa, julgando improcedente impugnação judicial de atos de autoliquidação do tributo, previsto no artigo 16.º n.º 1 da Portaria n.º 385/2004 de 16 de abril.

As recorrentes (rtes) apresentaram alegação, finalizada com as seguintes conclusões: « A. A decisão do TCAS de que se recorre (i) incide sobre uma questão que envolve todos os notários portugueses, (ii) diz respeito ao tema mais importante que se coloca à fiscalidade nesta década e (iii) padece de um erro judicial patente e ostensivo.

  1. Cada uma desta tríplice fundamentante reveste este caso, por si só, de importância essencial e faz com que a admissão deste recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito.

  2. Isto mesmo foi já reconhecido por este Venerando STA que, em dois casos juridicamente idênticos, admitiu os recursos de revista, encontrando-se os mesmos pendentes.

  3. Subjetivamente, o tema em causa nos autos afeta, como se referiu, todos os Notários portugueses (que, no conjunto, são 350, para sermos mais exatos), tendo, cada um deles, intentado impugnações judiciais, em coligação de autores, semelhantes à presente, e que correm nos tribunais tributários.

  4. Objetivamente, está em causa o tema fiscal mais importante desta década e que é a distinção entre imposto e taxa, mais concretamente no que diz respeito ao tributo previsto no artigo 16.º, n.º 1, da Portaria n.º 385/2004, de 16 de Abril.

  5. In casu, o TCAS, numa leitura grosseiramente equivocada (com todo o respeito, que é muito) sobre a diferença conceptual entre imposto e taxa, profere uma decisão que literalmente implode com décadas de doutrina e de jurisprudência.

  6. O tributo aqui em causa é manifestamente ilegal e inconstitucional, já que configura um imposto (sendo, por isso, organicamente inconstitucional) e, mesmo que assim não fosse, seria ostensivamente ilegal, na medida em que foi cobrado sem ter sido fornecida qualquer uma das contraprestações previstas na norma.

  7. No que respeita aos sistemas de comunicação, de tratamento e de armazenamento da informação do Ministério da Justiça - que seria, nos termos do artigo 16.º da Portaria n.º 385/2004, uma contraprestação pública enquadrada na taxa em causa -, a inconstitucionalidade é evidente, visto que o Estado nunca conferiu aos Notários o acesso a qualquer sistema que justificasse o pagamento de uma taxa.

    I. A utilização dos sistemas que, no entender do Secretário de Estado da Justiça, justifica o pagamento do tributo só foram disponibilizados muitos anos depois do início do pagamento do tributo e, o que é mais grave, são disponibilizados gratuitamente a todos os cidadãos e empresas (conforme resultou provado nos autos).

  8. Ou se considera que as quantias previstas no artigo 16.º da Portaria n.º 385/2004 são também imputáveis à utilização desses serviços ou sistemas (o que apenas se admite por dever de patrocínio e não resulta da factualidade assente), e então a taxa é inconstitucional por violação grosseira do princípio da igualdade, ou não se considera que tais quantias são imputáveis à utilização desses serviços, e então a taxa não terá qualquer causa ou serviço concreto que a justifique, e será consequentemente um imposto, logo, inconstitucional por violação do princípio da legalidade fiscal, previsto no do artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP e ilegal por violação do n.º 2 do artigo 4.º da LGT.

  9. Não há forma de escapar a um dos vícios sem cair no outro, ou então mais vale assumir, parafraseando o nome de um livro de Gomes Canotilho, que os princípios constitucionais nem sempre são para ser tomados a sério.

    L. O próprio Governo, reconhecendo tardiamente a iniquidade desta suposta “taxa”, procedeu à sua revogação, pela Portaria nº 574/2008, de 4 de Julho.

  10. O TCAS, diversamente, argumenta que o tributo aqui em causa é uma verdadeira taxa, devida uma vez que “os notários têm acesso a sistemas de informação diversos disponibilizados pelo Ministério da Justiça, bem como acesso ao arquivo (que se distingue da sua conservação) e são igualmente objeto de ação de fiscalização”.

  11. No que diz respeito aos Serviços de Auditoria e Inspeção, que também se encontram elencados no artigo 16.º da Portaria, igualmente aqui não há qualquer prestação de serviços, pelo que, também nesta parte, a “taxa” do artigo 16.º da Portaria n.º 385/2004 não consubstancia um tributo causal, mas um verdadeiro imposto “travestido” de taxa, que, nos termos da Constituição, só poderia ser criado por Lei da Assembleia da República, violando-se assim o artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Lei Fundamental.

  12. Na parte que se reporta a estes Serviços de Auditoria e Inspeção, esta taxa, se não for — como parece - puramente artificial, destina-se, no máximo, a financiar as estruturas orgânicas do Estado dedicadas a tais serviços, se é que elas existem, sendo que este financiamento torna o tributo num imposto (Ac. do TC n.º 473/99) ou torna-o ilegal por ausência de contraprestação.

  13. Tal como a inspeção tributária não justifica o pagamento de uma taxa aos potenciais inspecionados, também a inspeção dos Notários não o pode justificar.

  14. O TCAS nunca responde a esta patente ausência da contraprestação.

  15. A suposta utilização do Arquivo Público também não justifica o pagamento de uma taxa, visto que a guarda e conservação do arquivo notarial é um dever dos Notários, tal como dispõe a alínea m) do n.º 2 do artigo 4.º do Código do Notariado.

  16. Pretender cobrar uma taxa aos Notários pela utilização do arquivo notarial tem a mesma lógica subjacente a cobrar uma taxa aos Tribunais por estes guardarem e utilizarem os processos judiciais ou às entidades particulares certificadoras da inspeção automóvel por guardarem os processos administrativos.

  17. Se a referência a “arquivo público” constante do artigo 16.º da Portaria dissesse (também ou apenas) respeito ao acervo documental que constava dos cartórios notariais públicos que foram objeto do processo de privatização e que ficaram à guarda dos Notários “privados”, vislumbrar-se-iam duas inconstitucionalidades: a primeira, resultante da cumulação das despesas, no património do particular (do Notário), da despesa com a taxa e da despesa com a manutenção do Arquivo, em grosseira violação do princípio da proporcionalidade (previsto no artigo 266.º, n.º 2 da CRP); a segunda, resultante de, também aqui, nesta parte do Arquivo Público, não haver qualquer prestação de serviço público.

  18. A isto o TCAS respondeu que não se verifica a falta de serviço público… porque a verificação do cumprimento do dever que recai sobre os notários cabe ao Estado! V. Mas a verificação do cumprimento dos deveres legais não cabe sempre ao Estado? E por isso alguém tem de pagar uma taxa?? W. Uma demonstração de que esta “taxa” é um imposto (uma “taxa” desligada de qualquer utilização especial de um serviço público) é o modo (e critério) do apuramento do seu valor, pois recai sobre todos os atos praticados por todos os Notários, independentemente de qualquer outro facto.

    X. Mesmo que assim não se considere (o que não se vê como), a “taxa” em apreço sempre seria manifesta e gritantemente desproporcional - e é tanto mais desproporcional quanto mais se dessem por inexistentes as diferentes causas que supostamente a justificam, elencadas no artigo 16.º da Portaria n.º 385/2004.

  19. Se o Governo criou uma “taxa” devida supostamente por três contraprestações públicas e lhes fez corresponder um montante proporcional de € 10 por cada escritura e de € 3 por cada um dos demais atos que o Notário pratica, essa taxa é inevitavelmente inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, mesmo que venha a constatar-se que afinal há uma contraprestação pública - não se vê qual -, então os montantes em causa, estabelecidos para as três contraprestações, são necessariamente desajustados à realidade, pecando por excesso.

  20. A desproporcionalidade elimina ou desvirtua a correspetividade inerente ao conceito de taxa, de onde se conclui que o tributo em causa nos autos constitui um imposto.

    AA. Face ao acima exposto, os atos de autoliquidação aqui em causa representam uma injustiça grave e notória e foram efetuados em erro, imputável aos serviços nos termos do n.º 2 do artigo 78.º da LGT.

    BB. Como este Venerando STA certamente reconhecerá, a criação, por Portaria, de uma suposta taxa com violação grosseira da CRP e do disposto no n.º 2 do artigo 4.º da LGT e é a questão mais importante da fiscalidade atual, revestindo assim uma relevância fundamental para efeitos do artigo 150.º do CPTA.

    CC. A questão nos autos é a questão fiscal mais essencial para uma melhor aplicação do Direito pois, para além de ser uma questão complexa que implica o preenchimento de um conceito indeterminado, encontra-se na confluência entre o princípio da legalidade, o princípio da proporcionalidade, o princípio do não abuso das autoridades administrativas e até do princípio da propriedade privada.

    DD. Para além de violar ostensivamente aqueles princípios constitucionais, a decisão do TCAS representa um perigo evidente para a comunidade, abrindo as portas a todos os atropelos em matéria de taxas.

    EE. Não pode existir uma boa aplicação do Direito quando a solução encontrada pelo TCAS para defender a legalidade do tributo tem por consequência a grosseira violação da Lei de Autorização Legislativa n.º 49/2003, de 22 de agosto, e também do Decreto-Lei n.º 26/2004, de 4 de fevereiro.

    FF. Caberá a este STA pronunciar-se, como órgão de cúpula, sobre se pode um tributo ser cobrado, na qualidade de taxa, quando inexistem as contraprestações concretas previstas na lei.

    GG. Caberá...

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