Acórdão nº 2906/17.9T8BCL-O.G1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 12 de Novembro de 2020

Magistrado ResponsávelNUNO PINTO OLIVEIRA
Data da Resolução12 de Novembro de 2020
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I. — RELATÓRIO 1.

AA instaurou procedimento tutelar comum contra BB, requerendo que seja decidido pelo Tribunal que as suas filhas menores CC, DD e EE deverão ser orientadas educativamente na religião católica cristã.

2.

Alegou, em síntese, o seguinte: I. — que na acta de conferência de pais de 20 de Dezembro de 2017 foi fixado o seguinte regime provisório: Cláusula primeira (Exercício das responsabilidades parentais) 1. — As crianças residirão habitualmente com a mãe, que exercerá as responsabilidades parentais relativas aos atos da vida corrente das filhas.

2. — As responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida da criança serão exercidas em comum por ambos os progenitores, salvo nos casos de manifesta urgência, em que qualquer dos progenitores pode agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível.

3. — Quando as crianças se encontrem temporariamente com o progenitor, as responsabilidades parentais relativas aos atos da vida corrente serão exercidas pelo pai, não devendo este, porém, contrariar as orientações educativas definidas pela progenitora.

II. — que as menores foram sempre, e continuam a ser, educadas na religião católica cristã, que professam e [em] que todas foram baptizadas; III. — que, a partir da separação dos progenitores, ocorrida em 04 de Dezembro de 2017, o progenitor varão alterou o seu comportamento, passando a ser “espírita” da casa de “…” IV. — que o progenitor varão contraria as orientações educativas da Requerente — “que no passado foram as orientações educativas de ambos” —, recusando transportar as menores à catequese ou à missa, nos fins-de-semana em que as mesmas estão à sua guarda.

3.

O Requerido BB respondeu, pugnando pelo indeferimento do requerido.

4.

O Tribunal de 1.ª instância decidiu, “a título cautelar e provisório”: I. — “atribuir à requerente a competência para decidir sobre a educação religiosa das crianças; II. — “reconhecer ao requerido a faculdade de partilhar com as menores os ideais e princípios religiosos com que se identifica”.

5.

Inconformados, a Requerente AA e o Requerido BB interpuseram recurso de apelação.

6.

A Requerente AA finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões: 1. — Justifica-se manifestamente a atribuição de efeito suspensivo ao presente recurso; 2. — Na verdade a sentença recorrida não analisa nem fundamenta o seu comando, na parte do dispositivo que corporiza o correspectivo “ius imperium” [mormente onde se dispõe «(…) reconhecer ao requerido a faculdade de partilhar com as menores os ideais e princípios religiosos com que se identifica»], com a efectiva e imprescindível satisfação e salvaguarda dos superiores interesses destas crianças sendo que, com a imediata exequibilidade da mesma sentença, tal superior interesse não só sai desprotegido como é seriamente afectado ao fazer impender sobre os ombros e a consciências das três crianças (de 04, 07 e 09 anos de idade…) as perturbações dualistas de constante e semanal confronto com duas doutrinações diversas de dois credos diversos, sujeitando-as a uma deformada educação para o “dupli-pensar” e para a interiorização progressiva de uma inconsciente hipocrisia psicológica e moral: relega-as, inconsideradamente, para o eterno e constante sopesar das comparações e da dúvida angustiante entre dois credos, cujo fardo não deve, pela sua violência psicológica e moral inominável, pesar sobre os ombros e a consciência de nenhuma criança; 3. — Determinou o Tribunal, no seu dispositivo (única parte em que se traduz o “ius imperium” da sua actividade soberana e única atendível para ter relevância perante as partes e a ordem jurídica em geral) que «8. Pelo exposto, a título cautelar e provisório, decido:- atribuir à requerente a competência para decidir sobre a educação religiosa das crianças; - reconhecer ao requerido a faculdade de partilhar com as menores os ideais e princípios religiosos com que se identifica. Notifique.» : tal sentença recorrida enferma de ambiguidade e obscuridade que a tornam ininteligível e, por via disso, Nula, Nulidade esta, prevista na norma da alª c) do nº1 do artº 615º do Código de Procº Civil em vigôr, que agora se invoca; 4. — A decisão provisória agora proferida tende a conflituar com o regime que já se encontrava assente nos autos, em que o pai não podia contrariar as orientações educativas definidas pela progenitora e tinha que respeitar as rotinas das menores, designadamente a catequese e as actividades inerentes à mesma. Assim tal contradição entre ambas as decisões não pode fazer carreira nas Decisões dos Tribunais e só resta declarar, sem tibieza, que a mesma, torna ainda a decisão recorrida ininteligível. É, pois, Nula tal sentença.

Nulidade esta, prevista na norma da alª c) do nº1 do artº615º do Código de Processo Civil em vigor, que agora se invoca.

5. — Se não se entender existir qualquer insanável obscuridade que torne ininteligível a Sentença (o que apenas se perfigura por mera hipótese e humildade intelectual) diga-se, então, que a mesma sentença (mormente no seu segundo segmento que permite ao Réu-pai partilhar e doutrinar as três filhas nas crenças do espiritismo) foi proferida sem invocação de correspondente fundamentação probatória que assegurasse a compatibilidade destas simultâneas catequeses, no credo católico e no credo espírita, e demonstrasse que este dualismo doutrinal servia o superior interesse das crianças e não ofendia nenhum direito fundamental que as mesmas são titulares, nomeadamente o direito constitucional à liberdade de consciência e à liberdade religiosa e de culto; 6. — Tal falta de fundamentação torna a sentença ora em crise, neste segundo segmento, Nula, Nulidade esta, prevista na norma da alª b) do nº1 do artº 615º do Código de Procº Civil em vigôr, que agora também se invoca; 7. — Ademais a sentença recorrida não observou e violou o princípio do “superior interesse da criança”; 8. — Tendo, igualmente, feito um errado uso da “Equidade” que foi assim também manifestamente violada.

9. — A sentença recorrida violou, também, a própria liberdade de consciência, de religião e de culto das próprias crianças que, no dizer do art.º 41.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, “é inviolável”; 10. — Porque também mais conforme à Equidade, no caso concreto, e durante a pendência da presente Acção Especial (prevista no artº44º do Regime Geral do Procº Tutelar Cível), deve ser estabelecida com clareza a disciplina cautelar e provisória de que cabe à Autora com quem vivem as três crianças transmitir as orientações educativas, valores, princípios e regras em matéria confessional e religiosa sem interferências de índole contrária e sem obstáculos do progenitor Réu.

11. — Deve ser julgada Nula a Sentença recorrida, a qual, viola, além do mais, o disposto nos artigos art. 615º nº1 alª b) e c) do Código de Procº Civil em vigôr, bem como do artº.987º do mesmo Código, e do artº 12º do Regime Geral do Procº Tutelar Cível, bem como do art.º 41.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa; 12. — Para além do mais, o Tribunal deixou de conhecer sobre a doutrina espírita e todos os malefícios da sua profissão, invocados pela Recorrente.

13. — Não existe o cristianismo espírita porque o espiritismo não é cristão.

14. — O “espiritismo” é uma seita, no sentido de que é um grupo que professa um sistema filosófico e doutrinal, de uma pessoa viva divergente da correspondente doutrina ou sistema dominantes, ou seja, a religião católica.

Como seita que é, trata-se de um grupo fechado, que considera hostil ou descrente a restante sociedade, maioria da população portuguesa, católica por natureza, que vê como inerentemente má ou pecadora.

Na seita, como no espiritismo, os seus membros tendem a exercer um controle sobre a vida individual e coletiva dos indivíduos, e a regulação tende a ser mais totalizante, devido ao rígido controle que exercem sobre os sujeitos.

15. — O Recorrido foi casado catolicamente, batizou as filhas, inscreveu-as num colégio católico, e transfigurou-se espírita depois de se ter casado com uma confessionária do Espiritismo, que exerce um elevado cargo dirigente na Associação espírita de … .

16. — E a douta sentença é omissa em relação a essa factualidade, que se acha demonstrada documentalmente, e não foi impugnada.

17. — Sobretudo a douta sentença é omissa, e parece pretender menosprezar, que o Recorrido ou se enganou ou procura enganar o Tribunal, ao confundir o Médium FF de …, com S. Francisco Xavier.

18. — De resto, tendo o Tribunal que acautelar uma decisão provisória, sem produção de prova, impunha-se-lhe que oficiosamente tivesse cuidado de conhecer melhor a doutrina espírita e as suas consequências para as crianças.

19. — Mas, sobretudo, impunha-se ao Tribunal conhecer que podem existir muitas crianças espíritas felizes, mas seguramente não existem crianças espíritas felizes a um fim-de-semana, e as mesmas crianças, transvertidas de católicas, felizes no outro fim-de-semana.

20. — Num fim de semana as crianças frequentariam a catequese, e no outro fim-de-semana frequentariam a Associação Espírita de …, ou outra qualquer, onde lhes seria ministrada a capacidade re-incarnatória, a falar com os mortos ou fantasmas camaradas, a escrever cartas psicografadas e a fazer girar mesas em transições psicóticas.

21. — Mas tinha o dever de as conhecer, estudar e decidir em conformidade e no superior interesse das menores, quer porque foram submetidas ao seu conhecimento, quer porque se trata de um processo de jurisdição voluntária, que sempre lhe imporia o conhecimento oficioso.

22. — Pelo que, ao decidir da forma como decidiu, violou o Tribunal recorrido o disposto ao n.º2 do artigo 608.º do C.P.C., sendo, por isso, a douta sentença recorrida, na parte correspondente ao segundo segmento decisório, NULA.

23. — Pede-se, pois, ao Venerando Tribunal da Relação, que declare as invocadas Nulidades e substitua desde agora a Decisão...

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