Acórdão nº 3278/16.4T8GMR.G1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 14 de Julho de 2020

Magistrado ResponsávelMARIA CLARA SOTTOMAYOR
Data da Resolução14 de Julho de 2020
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Proc. n.º 3278/16.4T8GMR.G1.S1 Acordam, em Conferência, no Supremo Tribunal de Justiça I – Relatório 1.

A recorrente AA, notificada do acórdão deste Supremo Tribunal, datado de 2 de junho de 2020, que confirmou o acórdão recorrido e considerou improcedente a ação de investigação de paternidade, vem arguir nulidades do mesmo e suscitar a inconstitucionalidade da interpretação dada ao artigo 1871º, n.º 1, al.

e) e n.º 2, do Código Civil (CC), por violação do disposto nos artigos 26º, n.º 1 e 36º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP), o que fez nos termos e com os seguintes fundamentos, que agora se transcrevem: «1- Decide o acórdão recorrido que as nulidades imputadas à sentença que o acórdão da relação julgou inexistirem não podem ser objeto de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Com efeito, expressamente se refere no acórdão produzido que “enquanto causas de nulidade de uma decisão, apenas é competente para as conhecer o tribunal ad quem, ou seja, o tribunal da Relação a quem cabe competência para declarar a nulidade da sentença de primeira instância e para a revogar, não o Supremo Tribunal de Justiça que exerce a sua competência apenas sobre o acórdão recorrido proferido pelo tribunal da Relação”.

Para além disso, defende ainda o acórdão que quanto às nulidades processuais invocadas pela recorrente em relação à prática ou omissão de atos processuais no decurso da tramitação do processo, no tribunal da primeira instância, “não é admissível qualquer pronúncia deste Supremo Tribunal, por extemporaneidade”.

As duas afirmações constantes da decisão não são legalmente justificadas, e não se conhece justificação legal que possa caber-lhes, uma vez que dentro das regras de competência jurisdicente do Supremo não se encontra nenhuma que exclua a possibilidade de ser reapreciada a decisão sobre nulidades produzida na segunda instância, nem qualquer princípio de preclusão em relação à decisão de nulidades cometidas pelo tribunal de primeira instância e que não tenham transitado em julgado.

A decisão nesta parte afigura-se, assim, a enfermar da nulidade a que se refere o artigo 615º n.º 1 al. b) do Código de Processo Civil, uma vez que não especifica os fundamentos de direito em que se deveria estribar.

Nestes termos deve conhecer-se da apontada nulidade, com a consequência de, a julgar-se inexistente justificação legal para aquelas decisões, ser produzida nova decisão que aprecie as nulidades em causa.

2- O acórdão, por outro lado, a partir da decisão sobre a matéria de facto produzida na segunda instância, entendeu acertado dizer que “um resultado de exclusão da paternidade não tenha valor absoluto”, mas isso não significa que se justifique a verificação da paternidade, por essa hipótese ser “quase nula”, conclusão que extraiu das declarações dos peritos em audiência de julgamento, uma vez que estes “reconheceram que o resultado de um exame de exclusão de paternidade não é em abstrato absoluto, mas esclareceram que no caso concreto, a hipótese de o reu ser de facto o progenitor biológico da criança era, na expressão de um dos peritos “quase nula””.

Analisando a questão sustenta o acórdão deste STJ, concordantemente com a posição do acórdão recorrido que “não se pode considerar provada a paternidade, independentemente da prova da exclusividade das relações sexuais entre a autora (mãe) e o réu (pretenso pai), uma vez que os exames hematológicos esclarecem que está excluída a paternidade do réu”, e daí que “tem de se entender que não era exigível ao tribunal da Relação exercer sobre a questão da exclusividade do relacionamento sexual os seus poderes de modificação ou de ampliação da matéria de facto, pois estaria a praticar um ato inútil”.

No entanto, ao justificar a decisão, nessa parte, o acórdão deste Supremo Tribunal considera que, de facto, não está excluída de todo a paternidade, uma vez que não é possível excluí-la em absoluto, mas não pode censurar o tribunal recorrido por excluir a paternidade, uma vez que esta é de excluir, embora com uma margem de erro quase nula, “para considerar que, mesmo sendo feita a prova da exclusividade das relações sexuais entre a mãe e o pretenso pai, sempre se estaria perante uma situação em que a paternidade do réu não poderia ficar estabelecida”, pois “a atribuição de um maior valor probatório a um parecer técnico jurídico quando comparado com a prova testemunhal, ao abrigo dos juízos de ponderação que as instâncias podem usar na livre apreciação da prova não é sindicável por este Supremo Tribunal”.

Essa decisão é manifestamente contraditória em si mesma, porque não pode considerar-se por um lado correta a decisão que exclui a paternidade e ao mesmo tempo considerar-se que a paternidade pode ser excluída, apesar de, embora numa hipótese remota, ela pudesse ser atribuída.

A recorrente não é a Virgem Maria.

Teve um filho, e esse filho foi gerado pela recorrente conjuntamente com um homem.

Não se conhece nem ninguém lhe apontou qualquer outro relacionamento sexual, para além do que teve com o réu.

Daí que, remota ou não, a possibilidade de o réu ser o pai do filho da recorrente, não pode deixar de ser-lhe atribuída a paternidade, porque foi o único homem que se relacionou sexualmente no período legal da conceção.

O artigo 26º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa prescreve que “a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, do desenvolvimento da personalidade, da capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação”.

Por sua vez, o artigo 36 n.º 4 da Constituição da República Portuguesa estabelece o princípio de que “os filhos nascidos fora do casamento não podem por esse motivo ser objeto de qualquer discriminação”.

Congruentemente o Código Civil, no artigo 1871º n.º 1 al. e) estabelece o principio de que a paternidade se presume quando se prove que o pretenso pai teve relações sexuais com a mãe durante o período legal da conceção, presunção que, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, só pode considerar-se ilidida se existirem dúvidas sérias sobre a paternidade do investigado.

As dúvidas a que se refere o citado acórdão só podem ser as que resultem da possibilidade de existir qualquer “concorrência” de hipóteses de paternidade, não podem resultar de qualquer exame hematológico, conclua ele o que concluir.

Não é, por isso, possível excluir a paternidade de quem teve relações sexuais com a mãe no período legal da conceção, a não ser que, através de um juízo fundado na...

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