Acórdão nº 121/20 de Tribunal Constitucional (Port, 03 de Março de 2020

Magistrado ResponsávelCons. Joana Fernandes Costa
Data da Resolução03 de Março de 2020
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 121/2020

Processo n.º 1067/2019

3ª Secção

Relator: Conselheira Joana Fernandes Costa

Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. No âmbito dos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (doravante, «LTC»), da decisão, proferida pela Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, em 22 de outubro de 2019, que indeferiu a reclamação que recaiu sobre o despacho prolatado pelo Juiz Relator do Tribunal da Relação de Évora, de 10 de setembro de 2019, despacho esse que não admitiu o recurso interposto para aquele Supremo Tribunal do acórdão proferido pela mesma Relação, em 07 de maio de 2019.

2. Através da Decisão Sumária n.º 868/2019, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso.

Tal decisão tem a seguinte fundamentação:

«4. O recurso de constitucionalidade interposto nos presentes autos funda-se na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, nos termos da qual cabe recurso para o Tribunal Constitucional «das decisões dos tribunais (…) que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo» e incide, conforme indicação expressa do recorrente, sobre a «decisão datada de 22-10-2019 que indeferiu a reclamação deduzida pelo arguido», proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça neste apenso de reclamação (artigo 405.º do Código de Processo Penal, doravante «CPP»), tribunal ao qual o requerimento de interposição do recurso foi, em consonância, dirigido e que proferiu o competente despacho de admissão.

Tal como delimitado no requerimento de interposição, o recurso tem por objeto duas questões: i) «a inconstitucionalidade dos art.ºs 127.º e 345.º, ambos do Código de Processo Penal, já anteriormente suscitada em sede própria, se interpretados no sentido de ser possível a consideração, para efeitos de convicção do Tribunal, do depoimento de declaração de arguidos entretanto testemunhas, porquanto se entende que tal entendimento viola o artigo 32.º da nossa Constituição»; e ii) «o entendimento dado pela decisão recorrida ao artigo 400.º, n.º 1-f) do CPP, no sentido de que há dupla conforme quando haja confirmação da condenação in mellius, é inconstitucional, não só pela violação do princípio da legalidade como ainda pela ofensa do direito ao recurso consagrado no artigo 32.º n.º 1 da CRP, que é restringido em termos desproporcionais, irrazoáveis e iníquos».

5. Para além de revestirem natureza normativa, os recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC têm um caráter ou função instrumental, o que significa que apenas podem ter por objeto normas jurídicas, tomadas com o sentido que a decisão recorrida lhes tiver conferido enquanto ratio decidendi.

Tal pressuposto decorre do caráter instrumental dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade: não visando tais recursos dirimir questões meramente teóricas ou académicas, um eventual juízo de inconstitucionalidade, formulado nos termos reivindicados pelo recorrente, deverá poder “influir utilmente na decisão da questão de fundo” (cf. Acórdão n.º 169/92), o que apenas sucederá se o critério normativo cuja validade constitucional se questiona corresponder à interpretação feita pelo tribunal a quo dos preceitos legais indicados pelo recorrente, isto é, ao modo como o comando destes extraído foi efetivamente perspetivado e aplicado na composição do litígio.

A questão a que importa responder de imediato é a de saber se a primeira norma sindicada (identificada em i)) foi aplicada na decisão recorrida.

A resposta — adianta-se desde já — é indubitavelmente negativa: no âmbito daquela decisão, o Supremo Tribunal de Justiça não só não aplicou qualquer norma extraível dos artigos 127.º e 345.º, ambos do CPP, como não poderia, na verdade, ter aplicado. Pela simples razão de que tal pronunciamento teve por objeto unicamente a verificação dos pressupostos de admissibilidade de recurso para aquele Tribunal.

Ora, na medida em que, no despacho recorrido, o Tribunal a quo se limitou a considerar inverificadas as condições necessárias para que pudesse admitir-se o recurso para aquele Tribunal interposto pelo recorrente, não foi ali aplicado qualquer outro preceito para além daqueles que integram o regime previsto nos artigos 400.º, n.º 1, alínea f), 432.º e 438.º, todos do CPP.

Torna-se, assim, evidente que a norma impugnada, dizendo genericamente respeito à possibilidade de valoração do depoimento de testemunhas que assumiram, anteriormente, a qualidade de arguidos no processo, não só não foi aplicada na decisão recorrida, como se encontrava, pela própria natureza da matéria regulada, excluída do thema decidendum daquela decisão — que incidiu exclusivamente sobre a verificação dos pressupostos de admissibilidade do recurso interposto para aquele Tribunal —, o que obsta ao conhecimento do objeto do presente recurso, por falta de utilidade.

A própria decisão recorrida não deixa dúvida acerca desta questão, ao referir expressamente que «[q]uanto à arguição de inconstitucionalidade do acórdão em causa, por o ora reclamante, considerar que a interpretação dada aos artigos 127.º e 345. º, ambos do CPP, viola o artigo 32.º, n.º 1. da Constituição, não é a mesma de considerar no presente despacho, por respeitar à decisão do Tribunal a quo, de que não podemos cuidar».

Torna-se, assim, evidente que os preceitos legais que suportam a primeira interpretação impugnada não só não foram aplicados no despacho recorrido, como a sua aplicação se encontrava naturalmente excluída do thema decidendum daquela decisão.

6. Importa, agora, examinar a segunda norma que o recorrente pretende sindicar.

Entende o recorrente, a este respeito, que «o entendimento dado pela decisão recorrida ao artigo 400.º, n.º 1-f) do CPP, no sentido de que há dupla conforme quando haja confirmação da condenação in mellius, é inconstitucional, não só pela violação do princípio da legalidade como ainda pela ofensa do direito ao recurso consagrado no artigo 32.º n.º 1 da CRP, que é restringido em termos desproporcionais, irrazoáveis e iníquos».

Por força do disposto no n.º 2 do artigo 72.º da LTC, constitui pressuposto de admissibilidade dos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do respetivo artigo 70.º que a questão de constitucionalidade enunciada no requerimento de interposição do recurso haja sido suscitada «durante o processo» e «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (cf. artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, ambos da LTC). Para além de vincular o recorrente à antecipação da questão de constitucionalidade ulteriormente enunciada no requerimento de interposição do recurso, exigindo-lhe que a defina antes de esgotado o poder jurisdicional da instância recorrida, o requisito da suscitação atempada tem uma evidente dimensão formal, impondo ao recorrente um ónus de delimitação e especificação, perante o tribunal a quo, do objeto do recurso.

A suscitação prévia e adequada da questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido «em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º LTC), «visa facultar a reapreciação de uma questão julgada pelas instâncias e não a apreciação pelo Tribunal Constitucional de uma questão nova que não fora suscitada atempadamente perante o tribunal recorrido» (Miguel Teixeira de Sousa, “Legitimidade e interesse no recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Armando M. Marques Guedes, Almedina, 2004, pp. 947 e ss.).

É essa a razão pela qual o ónus de suscitação antecipada, imposto pelos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC, apenas pode ser afastado quando o recorrente não tenha tido oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida, o que apenas sucederá nos casos em que esta o confronta com uma opção interpretativa de conteúdo insólito ou imprevisível, e por isso, de todo em todo inesperada.

Acresce que, prendendo-se o requisito em causa com a legitimidade para recorrer, expressamente previsto no artigo 72.º, n.º 2, da LTC, é, de todo, irrelevante, para este efeito, que a decisão recorrida tenha apreciado a questão de inconstitucionalidade, como sucedeu no caso vertente, uma vez que para se reconhecer legitimidade ao recorrente não basta que a questão de constitucionalidade tenha sido apreciada pelo tribunal, oficiosamente ou por ter sido suscitada por outra parte, sendo antes decisivo que tenha sido o recorrente a suscitá-la perante esse tribunal (cf. Acórdãos n.ºs 119/00, 96/02, 308/07, 371/05 e 401/07).

Ora, compulsados os autos, com referência à reclamação apresentada pelo recorrente, nos termos do disposto no artigo 405.º do CPP, verifica-se que, naquele momento processual, não foi enunciada qualquer questão de constitucionalidade respeitante, quer ao artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, quer a qualquer outro preceito legal.

Ao invés de suscitar previamente uma questão de constitucionalidade normativa, relativamente ao regime decorrente do referido preceito, o ora recorrente limitou-se a contestar, perante o Supremo Tribunal de Justiça, o juízo decisório expresso no despacho então reclamado, ainda que para esse efeito o questionando na perspetiva da sua conformidade a princípios e normas constitucionais, sustentado que «não pode ser vedada a recorribilidade das decisões condenatórias proferidas pelo tribunal da Relação, por violação, entre outros, do n.º 1, do artigo 32.º, da nossa Constituição» e, ainda, que «face ao teor literal da norma inscrita no artigo 400.º, n.º 1, al. f), do CPP há que se...

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