Acórdão nº 173/20 de Tribunal Constitucional (Port, 11 de Março de 2020

Magistrado ResponsávelCons. Maria de Fátima Mata-Mouros
Data da Resolução11 de Março de 2020
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 173/2020

Processo n.º 202/18

1.ª Secção

Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros

Acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional,

I – Relatório

1. A. e B., ora recorridos, notificados da decisão administrativa proferida no âmbito de processo de contraordenação, pela Autoridade da Concorrência (AdC), apresentaram impugnação judicial dessa decisão junto do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão.

Por decisão de 6 de fevereiro de 2018, o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, após ouvir os aqui recorridos, bem como a AdC e o Ministério Público, relativamente à «eventual inconstitucionalidade do art.º 84.º, n.º 4 e 5» do Novo Regime Jurídico da Concorrência, aprovado pela Lei n.º 19/2012, de 08 de maio, decidiu recusar a sua aplicação ao caso, «com fundamento em inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 2.º, 16.º, 17.º, 18.º, 20.º, n.º 5, 32.º, n.º 2 e 10, todos da Constituição da República Portuguesa», na medida em que «faz depender a atribuição de efeito suspensivo ao recurso de impugnação da prestação substitutiva de caução em razão de prejuízo considerável causado pela execução da decisão».

Nesta sequência, o Ministério Público interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), disposição legal em que igualmente se sustentou o recurso interposto pela AdC, ambos com vista à apreciação da norma cuja aplicação foi recusada pelo tribunal a quo.

2. Tendo prosseguido os autos para a fase de alegações, o Ministério Público concluiu as suas alegações do seguinte modo:

«1. A norma do artigo 84.º, n.º 4 e 5 da Lei nº 19/2012, de 8 de Maio (Novo Regime Jurídico da Concorrência), enquanto determina que a impugnação judicial das decisões finais condenatórias aplicativas de coima da Autoridade da Concorrência em processo de contraordenação tem, por regra, efeito meramente devolutivo, ficando a atribuição de efeito suspensivo condicionada à prestação de caução substitutiva e à verificação de um prejuízo considerável, para a impugnante, decorrente da execução da decisão, não viola os artigos 2.º, 16.º, 17.º, 18.º, 20.º, n.º 5, 32.º, n.º2 e 10, todos da Constituição, não sendo, por isso, inconstitucional.

2. Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso».

3. Também a AdC apresentou alegações, que concluiu nos termos que se transcrevem:

«(…)

A. A questão que se coloca no presente recurso é o da constitucionalidade da solução consagrada nos n.os4 e 5 do artigo 84.° da Lei da Concorrência, de onde se extrai uma norma, nos termos da qual a impugnação judicial da decisão aplicativa de coima proferida pela AdC em processo contraordenacional tem efeito meramente devolutivo, ressalvados os casos em que a execução da decisão cause prejuízo significativo ao recorrente e em que este preste caução substitutiva do pagamento imediato da coima, casos em que o efeito da impugnação é suspensivo.

B. O TCRS sustenta o seu juízo de inconstitucionalidade material da norma aqui em causa, por entender que, (i) o referido preceito legal viola os princípios de acesso ao direito e de tutela jurisdicional efetiva na medida em que o efeito suspensivo de decisões judiciais vem sempre associado a consequências onerosas para o recorrente: patrimonialmente onerosas com a antecipação/caução ou processualmente onerosas com a alegação e prova do prejuízo considerável; (ii) o legislador, a coberto da fixação dos efeitos do recurso, fixa, como regra, a título cautelar, a execução antecipada da sanção, em violação do princípio da proporcionalidade, do princípio do Estado de direito e do princípio da proibição do excesso.

C. No acórdão n.° 376/2016, do TC, proferido em 8 de junho de 2016, que analisou a mesma norma da Lei da Concorrência, foi deliberado, não julgar inconstitucional a norma sobre escrutínio, segundo a qual a impugnação interposta de decisões da Autoridade da Concorrência que apliquem coimas tem, em regra, efeito devolutivo, apenas lhe podendo ser atribuído efeito suspensivo quando a execução da decisão cause ao visado prejuízo considerável e este preste caução.

D. O legislador ordinário em obediência às normas constitucionais goza de margem de liberdade legiferante em matéria de recursos, nos termos das alíneas b) e d) do n.° 1 do artigo 165.° da CRP e pode restringir, desde que respeitado o princípio da proporcionalidade, os direitos de defesa e a igualdade dos sujeitos processuais (onde também se incluem, necessariamente o acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva).

E. A solução legislativa processual consagrada no n.° 5 do artigo 84.° da Lei da Concorrência (obrigatoriedade prestação de caução para obtenção do efeito suspensivo do recurso) não é de resto única, podendo encontrar-se regime semelhante no âmbito do direito processual penal, contraordenacional ou tributário, em vigor no nosso ordenamento jurídico.

F. A AdC adere inteiramente à fundamentação e ao entendimento expressos no Acórdão n.° 376/2016, no qual, expressamente, se esclarece que a regra processual do n.° 5 do artigo 84,° da Lei da Concorrência não cria dificuldades excessivas e materialmente injustificadas aos visados Recorrentes e, como tal, não viola o acesso ao direito nem o direito à tutela jurisdicional efetiva (números 1 e 5 do artigo 20.° da CRP), os direitos de defesa (n.° 10 do artigo 32° da CRP), nem o princípio da proporcionalidade (n.°2 do artigo 18.° da CRP), não sendo, por isso, inconstitucional.

G. A possibilidade de um arguido requerer a atribuição de efeito suspensivo quando a execução da decisão condenatória lhe causar prejuízo considerável mediante prestação de caução, permite salvaguardar o exercício do direito de impugnação quando a execução imediata da sanção possa constituir um obstáculo relevante.

H. Cabe ao tribunal a faculdade de, face ao caso concreto, ponderar sobre a razoabilidade da suspensão, ou não, da execução, através do mecanismo da prestação da caução, a fixar no montante que o tribunal considere correto.

I. Em momento posterior ao referido Acórdão n.° 376/2016, foi decidido na 1 .a secção do TC, no acórdão n.° 674/2016 (com dois votos de vencido), onde também se analisa a (mesma) norma contida nos números 4 e 5, do artigo 84,° da Lei da Concorrência o seguinte juízo positivo de inconstitucionalidade:

"[...] julgar inconstitucional a norma que estabelece que a impugnação judicial de decisões da Autoridade da Concorrência que apliquem coima tem, em regra, efeito devolutivo, apenas lhe podendo ser atribuído efeito suspensivo quando a execução da decisão cause ao Visado prejuízo considerável e este preste caução, em sua substituição, no prazo fixado pelo tribunal, independentemente da sua disponibilidade económica, interpretativamente extraível dos n.os 4 e 5 do artigo 84. ° da Lei n. ° 19/2012, de 8 de maio".

J. A não uniformização de jurisprudência pelo TC quanto a esta questão permite que subsista a incerteza jurídica e que, na prática, subsistam dois regimes antagónicos quanto à fixação do efeito de recurso: pode o TCRS nuns casos desaplicar a norma em causa e permitir a uma arguida interpor recurso com efeito suspensivo sem prestação de caução e, noutros, fazer depender a atribuição desse efeito da prestação de caução, afetando o decurso normal do julgamento das contraordenações por violação das regras de concorrência, com manifesto impacto na contagem dos prazos de prescrição.

K. No Acórdão n.° 123/2018, do passado dia 6 de março de 2018, proferido pelo plenário do TC, decidiu-se não julgar inconstitucional a norma extraída dos n.os 4 e 5 do artigo 46.° do Regime Sancionatório do Setor Energético, aprovado pela Lei n.° 9/2013, de 28 de janeiro, cujo teor é em tudo idêntico ao dos n.os 4 e 5 do artigo 84.° da Lei da Concorrência.

L. Como bem se explicita no Acórdão:

"[...] a regra do efeito meramente devolutivo da impugnação judicial das decisões sancionatórias não constituí qualquer restrição direita ao direito de acesso à justiça. Entende-se, porém, que ela implica uma restrição oblíqua, na medida em que impõe um ónus significativo - a demonstração de prejuízo considerável e a prestação de caução substitutiva -, para a suspensão dos efeitos da decisão impugnada. Por outras palavras, a lei não interdita, mas condiciona, o acesso aos tribunais.

Ora tal argumento não releva a distinção entre ónus de acesso à justiça para impugnar a validade de uma decisão sancionatória e ónus de suspensão da execução da decisão sancionatória impugnada. Uma coisa é a lei levantar obstáculos no acesso à justiça ou onerar o recurso à tutela jurisdicional; [...] um ónus de acesso ao direito importa que o sujeito sobre o qual impede tenha de incorrer num prejuízo - ou, pelo menos, preencher por sua conta, determinada condição - para poder realizar o seu interesse em provocar a intervenção judicial. A taxa de justiça inicial é o paradigma de um ónus de acesso ao direito, [...] porque implica que o recurso aos tribunais está condicionado ao pagamento de uma quantia pecuniária.

Coisa bem diversa é a lei, sem impor qualquer ónus especial para que o impugnante discuta em juízo a validade de uma decisão sancionatória estabelecer um ónus para que essa impugnação tenha por efeito a suspensão da execução da sanção. Nesse caso [...] não se onera o acesso aos tribunais para que estes apreciem a justeza da condenação proferida e da sanção aplicada no procedimento contraordenacional; o que se onera é a obtenção de uma vantagem normalmente associada à impugnação judicial das decisões sancionatórias da Administração no âmbito de procedimento contraordenacional, mas que com ela indubitavelmente não se confunde - a suspensão da execução da sanção. Que tal ónus não diz respeito ao acesso à justiça, apenas aos seus efeitos imediatos na...

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