Acórdão nº 53/19.8GACUB-B.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 08 de Março de 2022

Magistrado ResponsávelMARIA CLARA FIGUEIREDO
Data da Resolução08 de Março de 2022
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I - Relatório.

Nos autos de processo comum com intervenção do Tribunal Singular que correm termos no Juízo de Competência Genérica de Cuba, do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, com o n.º 53/19.8GACUB-B, foi proferido despacho indeferindo o requerimento apresentado pelo arguido de verificação das nulidades decorrentes da falta de nomeação de intérprete ou da omissão de tradução - sendo o arguido de nacionalidade moldava e não entendendo, nem se expressando na língua portuguesa - aquando do ato de prestação de T.I.R., bem como aquando da notificação nos termos do artigo 495º, nº 2 do CPP e da notificação do despacho de revogação de suspensão da execução da pena, por ter entendido que, constituindo nulidades relativas ou dependentes de arguição, as mesmas se encontravam sanadas, nos termos do disposto no artigo 120.º, n.º 2, alínea c) e nº 3, alíneas a) e d) do C.P.P., por não terem sido suscitadas aquando da constituição de arguido, no início da audiência de julgamento ou até ao trânsito em julgado do despacho que revogou a suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido.

*Inconformado com tal decisão, veio o arguido interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever: “I) Primeiramente, o presente recurso vem interposto do despacho proferido pelo Juízo de Competência Genérica de Cuba, pertencente ao Tribunal Judicial da Comarca de Beja, datado de 20/11/2021, que decidiu inferir as invalidades invocadas pelo Arguido no seu requerimento de 18/11/2021.

II) De facto, entendeu o Tribunal a quo que as nulidades de falta de nomeação de intérprete ou a omissão de tradução a arguido que não entenda ou se expresse na Língua Portuguesa, aquando dos actos de constituição de arguido e da prestação de T.I.R., bem como do despacho de revogação de suspensão da execução da pena e respectiva notificação, constituem nulidades relativas ou dependentes de arguição, nos termos do disposto no artigo 120.º, n.º 2, alínea c), do C.P.P.

III) Tendo ainda entendido o Tribunal recorrido que tais nulidades consideram-se sanadas, segundo o disposto no artigo 120.º, n.º 3, alíneas a) e d) do C.P.P., porquanto não foram suscitadas aquando da constituição de arguido, no início da audiência de julgamento ou até ao trânsito em julgado do despacho que revogou a suspensão da pena de prisão aplicada ao Arguido, o que, salvo o devido respeito por opinião contrária, não pode o merecer o acompanhamento e o aplauso do Recorrente em qualquer medida.

IV) Por outra banda, constitui entendimento do Tribunal a quo que as Directivas n.º 2010/64/EU e 2012/13/EU não podem implicar a revogação directa e expressa do direito interno, designadamente o artigo 120.º, n.º 1, alínea c) do C.P.P.

V) Considerando ainda o Tribunal recorrido que tal interpretação, de modo geral e abstracto, seria alegadamente ab-rogativa do direito interno, sem conferir qualquer efeito útil ao preceito legal supra indicado, sendo ilegal por alegadamente não se compadecer com os princípios constitucionais a que o Estado Português e os Tribunais Nacionais se encontram vinculados, designadamente o princípio da interpretação conforme.

VI) Todavia, uma vez mais, tal entendimento do Tribunal a quo não merece acolhimento, tendo o mesmo incorrido em erro de julgamento de direito.

VII) Na realidade, na hierarquia das fontes de direito, convém realçar que a doutrina e jurisprudência nacionais defendem maioritariamente que a C.E.D.H. assume uma posição intermédia entre a C.R.P. e as Leis Ordinárias.

VIII) Razão pela qual, ainda que vigore na ordem jurídica interna portuguesa com valor infra constitucional, a C.E.D.H., face ao preceituado no artigo 8.º, n.º 2 da C.R.P., apresenta valor superior às leis ordinárias, pelo que, no caso de confronto com o C.P.P., a Convenção Europeia prevalece sobre a mesma.

IX) Além disso, diga-se ainda que a C.E.D.H. integra não só o texto da Convenção e seus protocolos, como também a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, pelo que o estudo e ponderação de tal jurisprudência é uma sequência lógica da obrigação assumida pelo Estado Português, implicando a obrigação de os Magistrados Judiciais terem presentes as suas linhas evolutivas.

X) Neste seguimento, tais medidas e regras mínimas seguidas pelos órgãos da União Europeia vieram dar origem à Directiva n.º 2010/64/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho e da Directiva n.º 2010/64/EU.

XI) Assim, a primeira Directiva n.º 2010/64/EU, cuja publicação no Jornal Oficial da União Europeia ocorreu a 26/10/2010 e cujo prazo final de transposição para Portugal ocorreu em 27/10/2010, tem aplicação directa em Portugal desde 28/10/2013, sendo assim aplicável ao caso concreto atenta a data da ocorrência dos factos.

XII) Todavia, ainda que esta directiva não tenha sido transposta pelo Estado Português, tal não significa que a mesma não vigore no nosso ordenamento jurídico e no da União Europeia, porquanto se encontra há muito consolidado o princípio da interpretação conforme.

XIII) Determinando este princípio que sempre que se interpretar uma norma de direito interno, é obrigatório escolher o resultado interpretativo que dê execução às obrigações constantes da directiva (Cfr. artigo 4.º, n.º 3 do T.U.E. e artigo 288.º do T.F.U.E. e pelas especificidades com o direito processual penal o Acórdão Pupino, de 16/06/2005 (Caso C- 105-03), acessível in www.curia.europa.eu).

XIV) Sem conceder, mesmo no caso de não ser possível esta interpretação conforme, uma Directiva pode ter aplicação directa, sem que seja objecto de transposição, desde que já tenha decorrido o prazo de transposição e desde que, conferindo direitos, o conteúdo da norma que confere esses direitos seja suficientemente claro, preciso e incondicional (Veja- se neste sentido o Acórdão Van Gend en Loos, de 06/10/1970 (Caso 26/62) e Van Duyn, de 04/12/1974 (Caso 41/74)), o que se verifica no caso concreto.

XV) Deste modo, não obstante não ter sido transposta pela República Portuguesa, verificam-se todos os requisitos para a Directiva em apreço, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal, vigorar directamente na nossa ordem jurídica interna e produzir efeitos directos, concretamente efeito directo vertical, podendo assim o Recorrente invocar a sua aplicabilidade directa perante qualquer Tribunal no âmbito do território da União Europeia.

XVI) Assim, a definição clara da aplicabilidade e exigibilidade do acautelar do direito a intérprete ao longo de todo o processo é algo de essencial, como os presentes autos demonstram, em que o Arguido só teve intérprete em audiência de julgamento.

XVII) Como refere Sandra Oliveira e Silva, in “The right to interpretation and translation in criminal proceedings: the situation in Portugal.”, pág. 90, acessível através do sítio http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/13620.pdf: “(…) No exercício do seu poder discricionário, os juízes devem sempre presumir de boa-fé a necessidade de um intérprete (…). O «ónus da prova» referente à capacidade do arguido de entender a linguagem do Tribunal recai sobre as autoridades judiciais e não sobre o arguido – refere o TEDH (Brozieck contra a Itália).” XVIII) Por seu turno, ainda que se verifique uma resistência à aceitabilidade da tradução de actos, o certo é que esta Directiva prevê um regime próprio que se encontra vigente desde o momento em que o seu efeito directo vertical se impôs face ao nosso direito interno.

XIX) Na realidade, a Directiva n.º 2010/64/EU, no que concerne à tradução de actos processuais, é clara ao estabelecer um catálogo de actos que devem ser objecto de tradução, definidos como “direitos mínimos”, à imagem sistemática dos “minimum rights” do artigo 6.º, n.º 3 da C.E.D.H.

XX) Ora, a este respeito, no Acórdão Frank Sleutjes, de 12/10/2017, referente ao Proc. C- 278/16, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que: “(…) o artigo 3.º da Directiva 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Outubro de 2010, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal, deve ser interpretado no sentido de que um acto como um despacho de condenação previsto no direito nacional com vista a sancionar infrações penais menores e proferido por um juiz no termo de um processo unilateral simplificado constitui «documento essencial», na aceção do n.º 1 deste artigo, do qual deve, em conformidade com os requisitos formais estabelecidos nessa disposição, ser facultada uma tradução escrita aos suspeitos ou aos acusados que não compreendam a língua do processo em causa, por forma a salvaguardar a possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e garantir a equidade do processo.” XXI) Nesta medida, esta Directiva apresenta um catálogo, análogo ao dos “minimum rights” do artigo 6.º, n.º 3 da C.E.D.H, concretizado num número mínimo de documentos que a ordem jurídica comunitária entendeu como adequado e razoável estabelecer para o ordenamento jurídico da União Europeia.

XXII) Porém, na Lei Processual Penal portuguesa não existe em vigor qualquer norma que preveja directamente um catálogo semelhante de direitos mínimos ou documentos sujeitos a tradução, não se prevendo sequer um mínimo comunitário de documentos que devem ser traduzidos.

XXIII) O que, infelizmente, conduz uma prática judiciária nacional que exclui sistematicamente as traduções em todos os casos, sendo aqui que a não transposição da Directiva mais se faz notar, fazendo-nos equiparar a qualquer outro Estado pouco exigente nos mínimos processuais penais e pouco defensor do Estado de Direito Democrático.

XXIV) Sucede porém que este direito do Arguido de tradução de documentos essenciais impõe-se directamente ao Estado Português e aos seus Tribunais, os quais se vêm obrigados a determinar como regra geral a de determinar a tradução de todas as “(…) as decisões que imponham uma medida privativa da liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as...

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