Acórdão nº 0396/18.8BECTB de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 02 de Abril de 2020
Magistrado Responsável | MARIA DO CÉU NEVES |
Data da Resolução | 02 de Abril de 2020 |
Emissor | Supremo Tribunal Administrativo (Portugal) |
ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO: 1. RELATÓRIO A…………., inconformado com a decisão proferida em 10 de Outubro de 2019 [que negou provimento ao recurso por si interposto da decisão proferida pelo TAF de ………, no âmbito da presente acção de perda de mandato, e que declarou a perda de mandato do ora recorrente], interpôs o presente recurso.
*Apresentou, para o efeito, as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem: “1.
O douto acórdão impugnado confirmou a douta sentença proferida em primeira instância pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de …….. que julgou procedente a ação proposta pelo MINISTÉRIO PÚBLICO e decretou a perda do mandato que o Recorrente exerce como Presidente da Câmara Municipal de ……….
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Todavia, violou as normas imperativas de direito substantivo ordinário e constitucional que regulam o instituto da perda de mandato dos titulares de cargos autárquicos.
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Estão reunidos no caso os pressupostos que condicionam a admissibilidade da revista excecional, pelo que o presente recurso deve ser admitido.
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É inegável a relevância social da decisão impugnada e da questão da sua conformidade às regras legais.
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Tal decisão não interessa apenas ao Recorrente nem o afeta apenas a ele.
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Projeta um fortíssimo impacto na comunidade ……… que participou no escrutínio eleitoral que conferiu ao Recorrente o mandato que exerce.
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A extinção pela via judicial de um mandato conferido por eleição democrática assume, só por si, uma dimensão social do máximo relevo, que justifica e exige o seu controlo e legitimação pela instância mais elevada da hierarquia judicial, através do recurso de revista.
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De igual relevância e interesse comunitário se reveste a profunda e decisiva repercussão da questão a debater, na ótica da restrição de direitos de natureza politica que integram o catálogo constitucional de direitos, liberdades e garantias, i.a., o direito de participação na vida pública e o direito de acesso a cargos públicos - arts 48° e 50º, CRP.
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Outrossim, é indesmentível a relevância jurídica das questões que se pretende submeter à análise crítica deste colendo Supremo Tribunal e que, em síntese, abrangem: - a interpretação de um conjunto de normas jurídicas de natureza procedimental que se cruzam com normas de natureza sancionatória ou punitiva que contam a violação das primeiras com a drástica medida da perda de mandato; - as dificuldades implicadas na interpretação de tais normas, designadamente no que respeita à delimitação dos pressupostos objetivos e subjetivos da perda de mandato, - dificuldades essas que motivaram a publicação da recente Lei n° 52/2019, de 31 de julho, cuja aplicabilidade ao caso o Recorrente defende, o que constitui, só por si, uma questão jurídica relevante; e, - a frequência com que estas questões vêm surgindo perante a jurisdição administrativa, como o comprovam casos julgados nos últimos anos, em sentidos muitas vezes divergentes.
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Estão, por isso, reunidas as condições de admissibilidade da revista excecional, pelo que o recurso deve ser admitido - art° 150°, CPTA.
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A sanção da perda do mandato autárquico tem de obedecer aos pressupostos definidos por dois preceitos fulcrais: o art° 242°, 3, CRP e o art° 8° da LTA.
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Da conjugação desses normativos resulta que a perda de mandato assenta em quatro requisitos: - a intervenção do autarca em procedimento administrativo, ato ou contrato de direito público ou privado relativamente ao qual se verifique impedimento legal; - a culpa grave, na modalidade de dolo específico; - a gravidade da conduta; - a proporcionalidade entre a sanção e a natureza e os efeitos nocivos da conduta.
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Nenhum destes requisitos converge no caso vertente, pelo que o douto acórdão ofendeu sem remissa o regime legal decorrente daqueles preceitos.
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Desde logo, o requisito objetivo do impedimento legal.
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O regime legal dos impedimentos prescrito pelos arts 8°, 2, a), e 10°, 3, a), da Lei n° 64/93, de 26 de agosto, foi revogado pela Lei n° 52/2019, de julho, cujos arts 9° e 11°, ao contrário daqueles, não proíbem o autarca de intervir em procedimentos contratuais celebrados entre a autarquia e empresas geridas ou detidas, seja em que percentagem for, por ascendentes seus ou afins na linha reta, em qualquer grau, e colaterais até ao segundo grau.
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Nem cominam essa intervenção com a sanção da perda de mandato.
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A Lei n° 52/2019, de 31 de julho, tem natureza interpretativa e surgiu, como é do conhecimento público, em virtude das dúvidas suscitadas pelo regime previsto na Lei n° 64/93, de 26 de agosto, que foi revogada (cfr al. b) do 1 do art° 24°).
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Por força do disposto no art° 13°, 1 do Código Civil, aplica-se de imediato ao caso vertente.
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Ainda que assim não fosse, sempre o novo regime seria de aplicação imediata, por força do disposto na segunda parte do n° 4 do art° 29° da CRP, que consagra o princípio da aplicação retroativa da lei penal mais favorável e é aplicável a todo o direito sancionatório, no qual se insere de modo incisivo a sanção da perda do mandato dum autarca eleito.
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De onde resulta que a sanção da perda de mandato do Recorrente não pode fundar-se na previsão da Lei n° 64/93, de 2 de agosto.
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E não pode fundar-se nas previsões do art° 69° do Código de Procedimento Administrativo (CPA).
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Este diploma não prevê a perda de mandato do autarca como sanção para a violação dos impedimentos estabelecidos nesse preceito.
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Prevê apenas, no art° 76°, a anulabilidade dos atos praticados com ofensa do impedimento.
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Por razões históricas que são do domínio público (uma polémica recente que envolveu membros do Governo e justificou o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Gral da República citado no acórdão recorrido), a Lei n° 52/2019, de 31 de julho, retirou do seu âmbito de aplicação e do elenco dos impedimentos a intervenção do autarca no procedimento administrativo de contratos celebrados com os seus ascendentes, descendentes ou afins na linha reta.
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Por necessidade de congruência do sistema tem de considerar-se que a intervenção do autarca em procedimento contratual em que intervenham esses seus familiares deixou de integrar o elenco de impedimentos enunciado no art° 69° do CPA.
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Nessa parte, este preceito não pode senão ter sido revogado pela Lei n° 52/2019, de 31 de julho.
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Não ocorre o requisito objetivo do impedimento legal em que assenta a sanção e, portanto, o douto acórdão ofendeu o art° 8°, nº 2 da LTA (Lei n° 27/96, de 1 de agosto).
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Do elenco da matéria de facto assente não consta qualquer facto que permita afirmar que o Recorrente agiu com o dolo direito e específico de obter uma vantagem patrimonial para si ou para terceiro, 27.
Nem, muito menos, consta o próprio facto do dolo.
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Pelo contrário, ficaram provados vários factos que excluem em definitivo a existência desse dolo.
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Como está provado, o Recorrente não teve nenhuma influência nem participação: - nas propostas de abertura dos procedimentos; - na indicação das empresas a convidar; - na urgência ou não do procedimento a adotar; - na seleção dos concorrentes.
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Mais se provou que os contratos dos autos asseguraram o melhor preço, garantiram a qualidade dos serviços contratados e foram celebrados sob iniciativa e com escrupuloso respeito pelas iniciativas e pareceres dos técnicos municipais.
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Respeitando, por isso, o disposto no art° 248° da Lei n° 42/2017, de 28 de dezembro.
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Representa por isso, um erro clamoroso e uma ostensiva e chocante ofensa da lei substantiva (art° 8°, 2 LTA) considerar-se que o Recorrente agiu visando (e, portanto, com o dolo específico de) obter uma vantagem patrimonial fosse para quem fosse.
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Como erro de igual dimensão representa considerar-se ter o Recorrente agido com culpa por existir uma presunção inilidível de parcialidade e de culpa decorrente da simples intervenção em atos abrangidos por impedimento legal.
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Tal entendimento, que foi acolhido pelo douto acórdão impugnado representa a consagração de responsabilidade objetiva, que ofende o princípio da culpa que perpassa o direito sancionatório em que a perda de mandato se insere.
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Além disso, o douto acórdão ratificou uma sanção clamorosamente desproporcional que não encontra justificação: - na natureza dos atos - que, mesmo a supor que continua em vigor, nesta parte, o art° 69° do CPA, nem sequer padeceriam de nulidade, antes e apenas de anulabilidade; - no conteúdo dos atos - que não ofendeu a interesse público, antes o serviu e protegeu; - nem nas consequências dos atos - que foram eliminadas e reparadas até onde era possível.
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A desproporcionalidade gritante da sanção ratificada pelo douto acórdão recorrido implica a violação frontal do art° 242°, 3 CRP, e dos direitos e princípios constitucionais da restrição mínima dos direitos, liberdades é garantias (art° 18°, 2 CRP), do direito à cidadania, bom nome e reputação (art° 48°, 1 CRP) e de acesso e ao desempenho de cargos públicos (art° 50º, 1 e 2 RCP).
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Porque ofendeu os preceitos legais que ficaram identificados, deve o douto acórdão ser revogado, anulando-se a declaração de perda de mandato do Recorrente.
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Por mera• cautela, fica expressamente invocada a inconstitucionalidade material, por ofensa dos arts 18°, 2, 29°, 4, 48°,1, 50º,1, e 242°, 3 CRP, do conjunto normativo integrado pelos art° 8°, n° 2, da Lei 27/96, de 1 de agosto, 69° do Código de Procedimento Administrativo, 8°, 2, a), e 10°, 3, a), da Lei 64/93, de 26 de agosto, e 9° da Lei n° 52/2019, de 31 de julho, quando interpretados no sentido de que: - pode ser decretada a perda de mandato dum autarca democraticamente eleito sem que seja feita a prova do facto de ter visado a obtenção de vantagem patrimonial para si ou para outrem, ao intervir em procedimento administrativo, ato ou contrato de direito público ou privado relativamente ao qual se verifique impedimento; - existe uma presunção absoluta e inilidível de parcialidade e culpa grave decorrente da mera prática pelo autarca de ato em relação ao...
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