Acórdão nº 519/18.7PBGMR.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 10 de Fevereiro de 2020
Magistrado Responsável | AUSENDA GONÇALVES |
Data da Resolução | 10 de Fevereiro de 2020 |
Emissor | Tribunal da Relação de Guimarães |
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães: I – Relatório No identificado processo, o arguido L. F.
foi submetido a julgamento e condenado, como autor de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do C. Penal, na pena de 2 anos e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, sob a condição de o mesmo se apresentar mensalmente ao técnico de reinserção social que para o efeito for nomeado pela DGRSP.
Inconformado com essa decisão, o arguido interpôs recurso cujo objecto delimitou com as conclusões que a seguir se transcrevem: «1. Para se avaliar da prática de um crime de violência doméstica, necessário se torna averiguar as circunstâncias concretas de que depende a conduta do agente, e que permitam a qualificação desta conduta como visando a prática daquele tipo de crime.
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Na análise dos factos dados como provados e na sua concatenação tendente ao estabelecimento de um juízo sobre o elemento interno do agente, teriam de relevar as condições concretas do relacionamento entre o arguido e a queixosa, a forma como se relacionavam fisicamente e verbalmente, a eventual existência de domínio de um sobre o outro, o grau de autonomia – incluindo do ponto de vista económico - de um em relação ao outro, etc.
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No entender do recorrente, tal não foi feito na douta sentença recorrida.
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O recorrente entende que não deviam ter sido dados como provados os factos nºs 14, 15, 16 e 17 da matéria de facto dada como provada, devendo antes ter sido dados como não provados.
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Esses factos são os seguintes: (…) 6. Estes factos foram dados como provados de forma indirecta, como se reconhece na própria sentença.
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Porém, a sentença não contém qualquer fundamentação para ter concluído dessa forma quanto ao elemento interior do arguido.
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Com efeito, o que a sentença diz é apenas o seguinte (…): 9. do simples cotejo entre o que consta dos factos dados como provados nºs 14, 15, 16 e 17 com o que consta da respectiva fundamentação, verifica-se que há uma mera repetição nos seus termos e até nas próprias palavras utilizadas, o que nada esclarece quanto à forma como o julgador formou a sua convicção acerca do elemento emocional.
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Tanto mais que do mesmo elenco dos factos provados constam outros que, se tivessem sido conjugados com os que acima identificámos, ajudariam a compreender e enquadrar o elemento emocional, o que a douta sentença recorrida não fez. 11. São eles os factos nºs 4, 22, 23, 24, 25, 26, 32, 33, 34 e 39, que a seguir se transcrevem (…) 12. Destes factos provados nºs 4, 22, 23, 24, 25, 26, 32, 33, 34 e 39 resulta evidente que: - O arguido, sempre que o casal vivia junto, trabalhava como colaborador informal da família da queixosa ou da própria queixosa, nas ourivesarias de que esta era proprietária; - Esta actividade empresarial era a base da economia familiar do casal; - Sempre que o casal se separava, o arguido procurava arranjar emprego e autonomizar-se, isto é, deixar de depender financeiramente da queixosa; - A relação entre o arguido e a queixosa foi sempre disfuncional e conflituosa; - A dinâmica entre ambos é instável e tensa, relacionada com problemas financeiros e, ultimamente, com o exercício do poder paternal.
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Do que ficou evidenciado supra resulta claro que não poderá nunca considerar-se que a queixosa vivesse economicamente dependente do arguido, pelo contrário, era este quem, sempre que o casal se encontrava junto, vivia dependente da actividade empresarial da queixosa, sendo colaborador informal dela e vivendo financeiramente na sujeição à sua vontade.
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Resulta igualmente claro do acervo de factos provados que a relação entre o casal foi sempre conflituosa, com permanentes discussões e constantes separações e reconciliações.
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Acresce que os episódios relatados pela queixosa e que vieram a ser acolhidos no elenco dos factos provados com os nºs 5 a 13 são desgarrados e não podem considerar-se como constituindo uma atitude sistemática ou uma conduta consistente do arguido no sentido de subjugar, vexar, agredir ou humilhar a queixosa.
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Antes essas situações constituem episódios pontuais sem qualquer continuidade entre si, que não justificam a conclusão de consistirem num “modus operandi” do arguido no sentido de infligir à saúde física e psíquica da queixosa qualquer dano ou sofrimento, consistindo apenas em reacções intempestivas e momentâneas do arguido.
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Atentas estas realidades da vida do casal, haveria que ponderar em que medida estariam preenchidas as condições para considerar a conduta do arguido como intencionalmente dirigida à prática de um crime de violência doméstica.
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É que uma coisa é uma constante propensão para discutir – e não há discussão sem duas pessoas -, ou para reagir impulsivamente a uma provocação, ainda que pequena.
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Outra coisa muito diferente é concluir que, por haver discussões, ou reacções impulsivas e impensadas, foi praticado um crime.
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Por outro lado, em cada relação existe um padrão de comportamento entre as duas pessoas: se esse padrão incluir permanentes discussões e insultos, seguido de reconciliações apaixonadas, separações e novas reconciliações, como era comprovadamente o caso, não poderá dizer-se que tenha sido cometido um crime.
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Repare-se que a douta sentença conclui que a queixosa “se sentia em permanente estado de terror e achincalhamento, receando pelas atitudes que o arguido pudesse tomar em relação a si” – facto provado nº 14; no entanto, não especifica de que elenco de factos retirou essa conclusão.
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Pelo contrário, das próprias gravações das chamadas telefónicas transcritas para os autos se percebe com toda a clareza que a queixosa não tinha qualquer receio do arguido.
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Em todas essas gravações a voz da queixosa mantém-se serena e sem qualquer réstia de medo ou pavor, não demonstrando qualquer receio relativamente à conduta do arguido.
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Pelo contrário, a queixosa assume sempre para com o arguido uma atitude maternal de tolerância e superioridade, que aliás tem o condão de irritar o arguido e de lhe provocar as ditas reacções impulsivas.
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A título de exemplo, ouça-se a gravação 2360060.amr na qual a queixosa, perante a insistência do arguido que lhe bate à porta e lhe diz que vai arrombá-la, responde tranquilamente: “fica aí o tempo que quiseres, eu vou tomar banho”.
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Esta não é uma reacção de quem tem medo; pelo contrário, é uma atitude de quem mantém tudo sob controle e sabe que a “ameaça” não é para concretizar.
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Do exposto resulta que não deveriam ter sido dados como provados os factos nºs 14, 15, 16 e 17, devendo antes ter sido dados como não provados.
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O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física psíquica e mental e a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e mesmo após cessar essa relação.
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A ação típica do crime de violência doméstica tanto se pode revestir de maus tratos físicos como psíquicos. No conceito de maus tratos físicos cabem as ofensas á integridade física; nos maus tratos psíquicos abrangem-se as humilhações, provocações, molestações e ameaças. Essencial é que os comportamentos assumam uma gravidade tal que justifique a sua autonomização relativamente aos ilícitos que as condutas individualmente consideradas possam integrar.
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O tipo legal do artº 152º, do CP previne e pune condutas perpetradas por quem afirme e actue, dos mais diversos modos, um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou sobre a sua honra ou sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação.
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Este é o verdadeiro traço distintivo deste crime relativamente aos demais onde igualmente se protege a integridade física, a honra ou a liberdade sexual.
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No caso vertente, resulta claro da prova produzida que não existem factos suficientes para integrarem o crime de violência doméstica.
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Se o crime de violência doméstica é punido mais gravemente que os ilícitos de ofensas a integridade física, ameaças, coacção, sequestro, difamação e injúrias, etc., e se é distinto o bem jurídico tutelado pela respectiva norma incriminadora, então, para a densificação do conceito de maus tratos, físicos e psíquicos, não pode servir toda e qualquer ofensa (cf. Acórdão da Relação de Lisboa, de 15-01-2013, processo 1 3 54/1 0.6TDLSB.L 1-5, www.dgsi.pt).
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O que importa e é decisivo, para efeitos de avaliar se uma conduta é subsumível ao tipo de violência doméstica é atentar no seu carácter violento ou na sua configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima, ou de desejo de prevalência, dominação e controlo sobre a mesma.
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As ofensas constantes dos pontos 8, 10 e 11 consistiram em palavras insultuosas normais no âmbito do tipo de relacionamento entre o arguido e a queixosa, não encerrando qualquer plus da qual se evidenciasse uma especial humilhação, ou degradação da dignidade da pessoa humana no âmbito desta particular relação interpessoal.
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Ou seja, estamos perante condutas que não têm a virtualidade de objectivamente, ultrapassar o amesquinhamento, o vexame e a humilhação inerentes aos crimes de injúria ou difamação, p. e p. pelos artigos 180.° e 181.° do Código Penal.
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Os factos apurados nos nºs 6, 7, 8, 9, 10 e 11 apenas poderiam integrar a prática de crimes de natureza particular, subsumíveis ao tipo legal de injúria pelo que, na falta de dedução de acusação particular e até de queixa, no prazo legal, não pode o arguido ser perseguido criminalmente pela prática dos mesmos.
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O crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças; está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo...
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